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À deriva pelas ruas: as transformações cariocas nas crônicas de João do Rio

À deriva pelas ruas: as transformações cariocas nas crônicas de

João do Rio

Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por aí, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas da populaça, admirar o menino da gaitinha ali à esquina, seguir com os garotos o lutador do Cassino vestido de turco, gozar nas praças os ajuntamentos defrontes das lanternas mágicas, conversar com os cantores de modinha das alfurjas da Saúde. 

RIO, João do. A alma encantadora das ruas. Org. Raúl Antelo. 1ª Ed. 7ª reimpressão.
São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p.31.

No início do século XX, João do Rio registrou, por meio de suas crônicas, um Rio de Janeiro em transformação. Com a implementação do regime republicano, a cidade perdia suas feições coloniais e buscava o progresso, inspirada nas grandes metrópoles europeias. A reforma do prefeito Pereira Passos, que foi continuada por seus sucessores, não alterava apenas a geografia da cidade, mas também o modo como as pessoas se inseriam no espaço remodelado. Ao andar pelas ruas, João do Rio destaca as particularidades de cada bairro, atentando para a forma como os indivíduos interagem entre si. Com a curiosidade de um jornalista, sua profissão de ofício, ele procurava descrever desde as altas rodas da elite carioca até o cotidiano das camadas mais marginalizadas. Em suas crônicas, publicadas em importantes jornais da época, como a Gazeta de Notícias, é possível perceber que o autor olhava para a urbanização do Rio de Janeiro. A cidade era construída em seus textos como um verdadeiro personagem que assumia uma personalidade particular com o uso de verbos de ação e adjetivos.

Vede a Rua do Ouvidor. É a fanfarronada em pessoa, exagerando, mentindo, tomando parte em tudo, mas desertando correndo os taipais das montras à mais leve sombra de perigo. Esse beco, inferno de pose, de vaidade, de inveja, tem a especialidade da bravata. […] Há ruas, guardas tradicionais da fidalguia, que deslizam como matronas conservadoras – a das Laranjeiras; há ruas lúgubres, por onde passais com um arrepio, sentindo o perigo da morte – o Largo do Moura, por exemplo. Foi sempre assim. Lá existiu o Necrotério e antes do necrotério lá se erguia a Forca. Antes da autópsia, o enforcamento. 

RIO, João do. A alma encantadora das ruas. Org. Raúl Antelo. 1ª Ed. 7ª reimpressão.
São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p.34-36.

Ferrez, Marc. Rua do Ouvidor.1980. Coleção Gilberto Ferrez. Acervo do Instituto Moreira Salles

Assim como muitos outros intelectuais em sua época, João do Rio estava entusiasmado com a modernidade, que se materializava por meio da instalação dos postes de iluminação pública, pela chegada do automóvel e alargamento das ruas. As obras, iniciadas em 1902, transformaram a então capital federal. Moradias mais antigas, nas quais habitavam parcelas da população mais pobre, foram demolidas; praças foram construídas e estruturas de saneamento básico implementadas. Ao mesmo tempo em que se modernizava parte da cidade, um grande contingente populacional era desalojado, obrigado a migrar para partes periféricas ou subir os morros. Mais do que um projeto urbanístico, a reforma possuía um caráter civilizatório, em acordo com os novos ideais republicanos e positivistas de progresso.

João do Rio apresentava uma postura ambígua em relação às mudanças. Não era tão crítico quanto Lima Barreto nem tão entusiasta quanto Olavo Bilac. Para ele, interessava mais entender e registrar como essas modificações na estrutura da cidade interferiam na vida das pessoas, de como elas experimentavam e aprendiam a lidar com o novo espaço que era imposto a elas pelos políticos e por um novo regime de poder.

Naquele delicioso percurso da avenida Beira-Mar, toda ensopada de luz elétrica, outros automóveis de toldo arriado, outros carros, outras conduções corriam na mesma direção. Homens espaçados nas almofadas davam vivas, mulheres de grandes chapéus estralejavam risos, era uma estrepitosa e inédita corrida para Citera. Quando, no fim da Avenida, os automóveis seguiram pelas antigas ruas, cada encontro de bonde era uma catástrofe. Os tramways, apesar de comboiarem três carros, iam com gente até aos tejadilhos, e essa gente furiosa, numa fúria que lembrava bem a vertigem de Dionísio, berrava, apostrofava, atirava bengaladas num despejo de corpos e de conveniências. Entretanto, pelas mesmas ruas, a corrida aumentava e era uma disparada louca de entre vociferações, sons de corneta, tren-ten-tens de bondes, estalar de chicote. Quando passamos o túnel num fracasso de metralha e demos nos campos de Copacabana, a velocidade foi vertiginosa, e era apenas vagamente que se divisavam, fugindo à sanha dos fon-fons, ao estrépito das rodas, a linha de fiéis da redondeza marginando o capinzal e, à esquerda, num diadema de estrelas, a iluminação da igrejinha. 

RIO, João do. A alma encantadora das ruas. Org. Raúl Antelo. 1ª Ed. 7ª reimpressão.
São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 135 – 136.

Na passagem acima, o cronista cita a Avenida Beira Mar, nova via que ligava a Zona Sul ao Centro. É possível perceber o destaque dado à luz elétrica, que ampliou o tempo no qual as pessoas poderiam passar fora de suas casas, bem como ao automóvel, que ainda contrastava com as “antigas ruas” e era a materialização dos avanços tecnológicos que a capital recebia.

Cartão Postal da Avenida Beira-Mar. 1910. Acervo do Museu Antônio Parreiras.

Acusado por alguns de seus contemporâneos de fútil e elitista, João do Rio não ignorava as diversas formas de manifestação cultural de um Rio de Janeiro em crescimento. Assim como destacava as paisagens do novo Centro da cidade e os hábitos da elite, também concedia espaço em suas crônicas para aqueles que não tinham lugar nos grandes veículos de imprensa, em colunas como “A Cidade” e na série “A gente pobre”. O autor soube, portanto, captar o momento de transformação pelo qual passava o Rio de Janeiro por vários ângulos, transmitindo em seus textos a polifonia de vozes existentes.

Íamos caminhando pela rua da Misericórdia, hesitantes ainda diante das lanternas com vidros vermelhos. Às esquinas, grupos de vagabundos e desordeiros desapareciam ao nosso apontar e, afundando o olhar pelos becos estreitos e que a rua parece vazar a sua imundice, por aquela rede de becos, víamos outras lanternas em forma de foice, alumiando portas equívocas. Havia casas de um pavimento só, de dois, de três; negras, fechadas, hermeticamente fechadas, pegadas uma à outra, fronteiras, confundindo a luz das lanternas e a sombra dos balcões. Os nossos passos ressoavam num desencontro dos lajedos quebrados. A rua, mal iluminada, tinha candeeiros, sem a capa auer, de modo que a brancura de uns focos envermelhecia mais a chama pisca dos outros. Os prédios antigos pareciam amparar-se mutuamente, com as fachadas esborcinadas, arrebentadas algumas.

RIO, João do. A alma encantadora das ruas. Org. Raúl Antelo. 1ª Ed. 7ª reimpressão.
São Paulo: Companhia das Letras, 2008.p. 175.

Trecho da Rua da Misericórdia. Rio de Janeiro.

A Rua Da Misericórdia, descrita pelo autor em várias de suas crônicas, era o coração do Rio Colonial, a “primeira rua do Rio” como afirmava João. Entretanto, após a demolição do Morro do Castelo promovida pelo prefeito Carlos Sampaio, restou apenas uma parte da via, esquecida em meio a outras mudanças na infraestrutura da cidade. Por meio da obra de João do Rio, podem-se verificar as disparidades existentes entre as diversas áreas da cidade e como o projeto sociocultural empreendido pelo regime que se instalava não era para todos.

Eu atirara-me para o fundo da vitória de praça e via vagamente a iluminação das casas, os grandes panos de sombra das ruas pouco iluminadas, a multidão, na escuridão às vezes, às vezes queimada na fulguração de uma luz intensa, os risos, os gritos, o barulho de uma cidade que se atravessa…

O bairro rubro não é um distrito, uma freguesia: é uma reunião de ruas pertencentes a diversos distritos, mas que misteriosamente, para além das forças humanas, conseguiu criar a rede tenebrosa, o encadeamento lúgubre da miséria e do crime, insaciáveis. A Rua da Imperatriz é um dos corredores de entrada. O bairro onde o assassinato é natural abraça a Rua da Saúde, com todos os becos, vielas e pequenos cais que dela partem, a Rua da Harmonia, a do Propósito, a do Conselheiro Zacharias, que são paralelas à da Gamboa, a do Santo Cristo, a do Livramento e a atual Rua do Acre. […]

Toda essa parte da cidade, uma das mais antigas, ainda cheia de recordações coloniais, tem, a cada passo, um traço de história lúgubre. A Rua da Gamboa é escura, cheia de pó, com um cemitério entre a casa ria; a da Harmonia já se chamou do Cemitério, por ter aí existido a necrópole dos escravos vindos da costa da África; a da Saúde, cheia de trapiches, irradiando ruelas e becos, trepando morro acima os seus tentáculos, é o caminho do desespero; a da Prainha, mesmo hoje aberta, com prédios novos, causa, à noite, uma impressão de susto. Como dizia o meu guia, estávamos num novo mundo… […]

Nas ruas, a escuridão era quase completa. Um transeunte ao longe anunciava-se pelo ruído dos passos. De vez em quando uma rótula aberta e dentro uma sombra. Que lugares eram aqueles? O outro mundo! A outra cidade! A atmosfera era aquecida pelo cheiro penetrante e pesado dos grandes trapiches. Em alguns trechos a treva era total. Na passagem da estrada de ferro, a luz elétrica, muito fraca, espalhava como um sudário de angústias.

RIO, João do. Cinematographo (chronicas cariocas).
1ªEd. Porto: Livraria Chardron de Lello & Irmão.1909. p. 33-35. p.37.

Malta, Augusto. Rua da Gamboa com Livramento. 1920.

Na descrição feita na crônica “As crianças que matam”, por exemplo, ficam claras as diferenças entre o Rio de Janeiro da Avenida Beira-Mar e o do bairro da Saúde. As ruas “pouco iluminadas” em contraste com a avenida “toda ensopada de luz elétrica” e as “recordações coloniais” em descompasso com os “automóveis” são alguns outros exemplos dessa “outra cidade” descrita pelo autor. Há ainda o destaque de um recurso retórico constante nos textos do cronista, o guia, que o levava a desvendar os becos, ruelas e morros da cidade. João escrevia também vários de seus textos na forma de diálogos entre personagens que possuíam opiniões contrárias, sendo uma forma de explicitar a pluralidade de vozes acerca das reformas e as tensões que essas transformações causavam nas pessoas. Nesse sentido, João do Rio foi uma figura importante não somente para entender as mudanças ocorridas na capital federal no início do século XX, mas também para a própria imprensa, com alterações no formato e no conteúdo das publicações. Isso se deu com a utilização de textos curtos e a valorização da presença física nos lugares descritos nos textos, com a população sendo alçada ao posto de protagonista, ao contrário das matérias escritas no interior das redações e sem o contato direto com o espaço urbano. A mudança de hábitos por que passava a sociedade da época alterou até mesmo a forma de seu texto e o de outros autores, como é visível na coletânea Cinematographo: chronicas cariocas, na qual João do Rio se utiliza de uma linguagem rápida, de frases curtas e descrição com um menor uso de adjetivos.

A “Alma Encantadora das Ruas”, coletânea de crônicas do escritor, publicadas entre 1904 e 1907 na Gazeta de Notícias e na revista Kosmos, sintetiza esse duplo olhar de João do Rio. Por um lado, ressalta os chás e os passeios de automóvel à beira-mar. Por outro, o trabalho diário de estivadores, mercadores de livros e músicos ambulantes. A partir da leitura de seus textos, o leitor é transportado para o ambiente do início do século passado, podendo verificar como a modernização transportada da Europa foi adaptada ao chegar aos trópicos.

Deve-se destacar a postura altiva de João do Rio frente ao elemento europeu, pois enquanto os prefeitos cariocas procuravam a aproximação com o que se discutia no Velho Continente, em especial na França, para o autor ocorria, na verdade, a perda de personalidade do Rio de Janeiro.

O Rio, cidade nova – a única talvez no mundo – cheia de tradições, foi-se delas despojando com indiferença. De súbito, da noite para o dia, compreendeu que era preciso ser tal qual Buenos Aires, que é o esforço despedaçante de ser Paris, e ruíram casas e estalaram igrejas, e desapareceram ruas e até ao mar se pôs barreiras. 

RIO, João do. Cinematographo (chronicas cariocas).
1ªEd. Porto: Livraria Chardron de Lello & Irmão.1909. p. 214-215.

Dessa forma, havia em seu trabalho uma consciência crítica feita de modo peculiar e particular às mudanças que aconteciam na virada para o novo século. O autor demonstrava um sentimento de maior proximidade com Portugal, isso em um contexto de dependência francesa da Belle Époque carioca. Como ressalta o próprio autor em crônica escrita para a Gazeta de Notícias em 1909.

Basta lá passar uma semana para se ter certeza de que foi a gente do norte de Portugal que formou as nossas cidades […] Descobri ruas evidentemente mães da antiga rua da Carioca, da rua Correia Dutra e, em arrabaldes, na estação da Boa Vista, por exemplo, não sabia bem se estava no Porto se no boulevard de Vila Isabel ou na estação final da rua Voluntários da Pátria. 

RIO, João do. “Impressões do Porto”. In: GAZETA DE NOTÍCIAS.
Rio de Janeiro. 14 de julho de 1909.

João do Rio, por meio de suas descrições minuciosas da paisagem carioca em transformação, deixou para os leitores um mapeamento do Rio de Janeiro não só geográfico, como também cultural, indicando como as decisões políticas da época influenciavam no espaço urbano. Ademais, colocando a população e seus costumes como protagonistas em suas crônicas, o autor ressalta como as diferentes classes sociais interagiam em uma cidade que estava tentando de adaptar à modernidade imposta.

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Na região que hoje corresponde aos bairros da Saúde e Gamboa se estabeleceu o mercado de escravos, seguido pelo Cemitério dos Pretos Novos. Depois de vários processos de degradação, a Saúde era vista, no início do século XX, como um dos locais mais temidos da cidade, o chamado Bairro Rubro. As presenças de “capoeiras” e “malandros” eram constantes no noticiário policial da época.
Um dos pontos de fundação da cidade do Rio de Janeiro, o Morro do Castelo foi destruído em mais uma reforma urbanística na capital, realizada durante a gestão de Carlos Sampaio (1920-1922). O morro – cujo acesso era feito, inicialmente, pela Ladeira da Misericórdia- já era desde os tempos de D.João VI considerado prejudicial à saúde dos cariocas, pois dificultaria a circulação do ar. Com o passar das décadas, foi considerado inviável ao projeto de modernização da cidade. Suas terras foram utilizadas para aterrar parte da Urca e outras áreas baixas da Baía de Guanabara.
Termo genérico para se referir aos bondes.
Ilha no mar Egeu, famosa pelo templo a Afrodite.
Conhecida como “o bota-abaixo”, a reforma urbana iniciada no mandato do prefeito Pereira Passos (1902-1906) tinha o objetivo de sanear e modernizar o então Distrito Federal. Inspirada em Paris, construíram-se praças e ampliaram-se ruas, criando novas estruturas de saneamento básico. O Centro do Rio de Janeiro foi reconstruído e adaptado aos novos bondes e automóveis, levando a expulsão dos moradores de baixa renda da região. A principal obra dessa reforma foi de responsabilidade federal: a abertura da Avenida Central, em 1905, que uniu a cidade desde o porto até a avenida Beira-Mar, inaugurada um ano depois.
Termo utilizado, de forma figurada, para designar um local mal frequentado.
Agradecemos ao artista plástico Gabriel AV as fotos de Covilhã.