Paisagens em prosa e verso
Cecília Meireles:
paisagens em prosa e verso
Cecília Meireles, poeta, prosadora, educadora, observadora de grande sensibilidade, muito cedo se encanta com a leitura e a possibilidade de transpor para o papel as impressões que seu olhar atento recolhe das paisagens, das pessoas em movimento, das obras de arte que a própria natureza transforma em telas várias, como certos recortes das cidades, do céu e do mar.
As viagens por mais de sessenta países, ao longo da vida, irão compor sua obra, em que o real e o imaginário se integram. Nesse percurso, Cecília tece a diversidade do que observa, mesclando suas lembranças com a vivência do presente, por meio de palavras e expressões que despertam a atenção do leitor para as cores, sons, formas arquitetônicas, espaços geográficos e históricos, na leitura do mundo.
Nestas Páginas em Movimento, você está convidado (a) a conhecer alguns textos de Cecília Meireles, fruto de suas viagens pelo Brasil e Portugal. Sob a forma de crônicas e poemas a autora nos apresenta paisagens em que associa imagens urbanas e da natureza a fragmentos dispersos na memória, suscitando no leitor impressões sobre os lugares por ela visitados.
Cecília se define como “muito pouco turista”, identificando-se mais como viajante – aquele que descobre “semelhanças e diferenças de linguagem […], procura raízes, descobre um mundo histórico, filosófico, religioso e poético em palavras aparentemente banais; entra em livrarias, em bibliotecas, […]” (“Roma, turistas e viajantes”).
Como viajante, a autora coloca em questão a interação entre o ser humano e a natureza, que nem sempre se dá de forma harmônica e respeitosa. Assim, em tom de crítica, por exemplo, Cecília Meireles lamenta a construção dos altos prédios que poluem a paisagem da cidade do Rio de Janeiro, dificultando a visão do céu e das nuvens, como podemos observar no seguinte trecho da crônica “Exercício nefelibata”:
Apresentação e planejamento editorial: Leodegário A. de Azevedo Filho.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, vol. 1, p. 216
Quando, porém, se entra nessa igrejinha tão recatada, sem janelas, só com uma luz celeste que desce por um jogo de encaixes do telhado, vê-se que ela procura reunir, à comovente simplicidade exterior, aquela riqueza que tornou as catedrais antigas monumentos de esplêndida arte religiosa. Assim, suas modestas paredes serão revestidas de pau-cetim e bronze, o retábulo pintado por Portinari, e outras belezas aparecerão que tornem a choupana um escrínio delicado, como um relicário de se trazer pendurado ao pescoço em cordão de ouro.
Por outro lado, a igrejinha é uma mistura de lembranças antigas e atualidade bem nítidas. Ao lado do azulejo pintado com ternura medieval, a estrutura de cimento armado projeta sua torre, sua marquise, sua escada aérea, que nem a de Jacó […].
Apresentação e planejamento editorial: Leodegário A. de Azevedo Filho.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, vol. 1, p. 219-220.
Distribuidora Record de Serviços de Imprensa, 1964, p. 92.
Nas grandes cidades modernas, inquietas e hostis, não há essa pausa, esse silêncio tão favorável às vozes do Evangelho. A multidão apressada, torturada por problemas materiais inadiáveis, não dispõe do sossego de alma, nem mesmo de corpo, para parar, pensar, sentir.
Nas pequenas cidades, ao contrário, há um tempo disponível, que é a riqueza e a poesia dos simples e pobres. As velhinhas que vão encontrar Nossa Senhora levando-lhe lágrimas nos olhos; os rapazes e moças que desfilam nas procissões, subindo e descendo ladeiras sem fim […]. (“Semana Santa em Ouro Preto”)
Distribuidora Record de Serviços de Imprensa, 1964, p. 92.
Em “Por amor a Ouro Preto”, a autora não deixa de enfatizar a importância dessa cidade, não somente por sua beleza e tradição religiosa, mas por ser “antes e acima de tudo, uma cidade tradicional, histórica e esteticamente enraizada na vida brasileira, o berço da nossa liberdade, o cenário em que mais completamente se esboçou a nossa independência”.
Apresentação e planejamento editorial: Leodegário A. de Azevedo Filho.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, vol. 3, p. 287.
Da vasta obra poética de Cecília Meireles, selecionamos O Romanceiro da Inconfidência, que tem como temática a fundação da identidade brasileira. Para compor o Romanceiro, a poeta dedicou-se a pesquisar, em arquivos e bibliotecas, por mais de dez anos, a história do Século XVIII, o passado de Ouro Preto, o que lhe permitiu traduzir em versos os interiores das casas e igrejas, bem como fazer uma reflexão sobre a época.
Desse livro, publicado em 1953, extraímos o poema Cenário, em que Cecília situa elementos concretos, tais como: montanha, igreja branca, cavalo, soleira, pátio, porta, vestido e fonte, conduzindo o leitor a identificar a paisagem de Vila Rica com sua geografia acidentada.
Eis a estrada, eis a ponte, eis a montanha
sobre a qual se recorta a igreja branca.
Eis o cavalo pela verde encosta.
Eis a soleira, o pátio, e a mesma porta.
E a direção do olhar. E o espaço antigo
para a forma do gesto e do vestido.
E o lugar da esperança. E a fonte. E a sombra.
E a voz que já não fala, e se prolonga.
E eis a névoa que chega, envolve as ruas,
move a ilusão de tempos e figuras.
– A névoa que se adensa e vai formando
nublados reinos de saudade e pranto.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, vol. 1, 2001, p. 797.
Nesse poema, não é apenas o cenário marcado por substantivos que a poeta canta, mas o “antigo espaço”, posto à mostra através de impressões sensíveis como: um vestido, um gesto, a voz que se calou, e se prolonga em meio à névoa, à ilusão de tempos e figuras que ficaram em “nublados reinos de saudade e pranto”, conforme se lê no último verso.
Mas não apenas sobre as cidades se estende o olhar da viajante Cecília. Ela também nos transporta pelos campos do sul do Brasil, assinalando, por exemplo, no Rio Grande do Sul, a diversidade da paisagem, tanto a natural quanto a criada pelo homem no cultivo da terra. Não deixa também de observar a feição europeia que o colono imprime às terras brasileiras, favorecido pelo clima mais ameno dessa região.
Uma sombra chuvosa veio envolvendo pelo caminho os veludosos bosques de eucaliptos, os campos secos de milho, os vinhedos rasteiros, o algodão com flocos brancos ainda perdidos nos capulhos, o arrozal ondulando ao vento frio, a lenha parada ao longo da via férrea. (“Rumo: Sul (III)”)
Apresentação e planejamento editorial: Leodegário A. de Azevedo Filho.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, vol. 1, p. 83
Apresentação e planejamento editorial: Leodegário A. de Azevedo Filho.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, vol. 1, p. 89
Ficas tão rico de antigamente, tão vencido por um amor de cancioneiro, por uma ternura conventual, dolorosa, – e ao mesmo tempo desejas sorrir, dançar, não pensar nada, ficar por essas praças, por esses jardins que são a imagem da vida e por onde andam crianças como pequenas flores soltas, com laços pelos cabelos, como felizes borboletas aprisionadas.
Apresentação e planejamento editorial: Leodegário A. de Azevedo Filho.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, vol. 1, 1998, p. 237
Apresentação e planejamento editorial: Leodegário A. de Azevedo Filho.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, vol. 1. p. 237-238.
Apresentação e planejamento editorial: Leodegário A. de Azevedo Filho.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, vol. 3, p. 93.
Quem gosta de mim, em Lisboa, leva-me à tardinha para Queluz, onde me encanta mirar os espelhos d’água do jardim, e os bosques, e os azulejos; onde me praz ter saudades de D. Maria I, tão infeliz, na sua vida, mas tão bonita na sua estátua.
Certamente, eu prefiro estas sombras, estes caminhos verdes e úmidos, por onde me parece que crianças muito antigas brincam com pôneis e bolas; prefiro estas fachadas tão femininas, com suas flores e sua pintura rosada; mas a casa de chá, instalada nesta cozinha real, não é para desprezar; e estas iguarias douradas que nos esperam devem ser delícias de amêndoas ovos e açúcar, “sonhos em casa”, “pupelinos”, “bolos à Delfina”, “talmussas” e “meringas”- do livro de receitas encontrado na Feira da Ladra, e há cerca de cento e cinqüenta anos publicado por um dos chefes da cozinha de Suas Majestades Fidelíssimas.
Apresentação e planejamento editorial: Leodegário A. de Azevedo Filho.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, vol. 3, p. 101.
Apresentação e planejamento editorial: Leodegário A. de Azevedo Filho.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, vol. 2, p. 179.
A poesia não só permeia as crônicas de viagem, mas sobretudo se condensa na obra poética de Cecília Meireles, pela qual foi reconhecida desde logo no Brasil e em Portugal. A singularidade de sua obra poética vai se manifestar no diálogo com o Modernismo, o Simbolismo e tradições anteriores, sem que se possa afirmar categoricamente a que movimento literário Cecília estaria filiada. A crítica literária por vezes a designa como neossimbolista, mas é preciso considerar que estamos diante de uma escritora singular, que se manteve atenta à multiplicidade de caminhos da literatura nas primeiras décadas do século XX, mas que soube atender aos apelos de sua arte.
Na poesia ceciliana, o mar também é de importância fundamental. Além de sua presença constante, ele remete às raízes históricas, à ancestralidade da autora. Recordar o mar é, portanto, lembrar também os Açores. E falar do mar é lembrar a história de sua família. O seguinte verso, no poema Beira-Mar, expressa essa ideia: ser de areia, água, de ilha…
Sou moradora das areias,
de altas espumas: os navios
passam pelas minhas janelas
como o sangue nas minhas veias,
como os peixinhos nos rios…
Não têm velas e têm velas;
e o mar tem não tem sereias;
e eu navego e estou parada,
vejo mundos e estou cega,
porque isto é mal de família,
ser de areia, de água, de ilha…
E até sem barco navega
quem para o mar foi fadada.
Deus te proteja, Cecília,
que tudo é mar – e mais nada.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, vol. 1, 2001, p. 488-489.
Pelo olhar de Cecília Meireles, navegamos em meio às ondas do mar e pelos rios, visitamos lugares históricos para finalmente compreender que viajar com Cecília não é puramente sair em turismo, mas atravessar as fronteiras, não apenas as geográficas, mas as do tempo e do espaço, num mergulho nas profundezas da história e da memória.
A presença das águas em seus textos ilustra a proximidade com o Oceano Atlântico, de onde partiam as grandes navegações. A identificação com Portugal, aliada à busca incansável de resgatar a sua história pessoal, fez com que Cecília se debruçasse sobre suas lembranças, movendo-se entre lugares e épocas distintas.
Cecília Meireles, inegavelmente, deixa como legado uma obra em que o antigo e o moderno convivem harmonicamente, criando uma atmosfera poética que transpõe a superficialidade das coisas. As paisagens cecilianas são desenhadas com subjetividade, reflexão e lirismo.