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Agustina Bessa-Luís em Minas Gerais
Agustina Bessa-Luís
Em Minas Gerais
O Brasil é um espaço público a preservar em que o estilo de vida ocioso do europeu, o paradoxo da solidão no meio da maior visibilidade, são negados por um romantismo que se pode definir como o sentido do jogo que é viver.
BESSA-LUÍS, Agustina. Breviário do Brasil e outros textos.
Rio de Janeiro: Tinta-da-China, 2016. p. 173
Após uma viagem ao Brasil em companhia de um grupo de intelectuais portugueses, Agustina Bessa-Luís publica em 1991, pela primeira vez, Breviário do Brasil. Este é um relato de viagem em que Agustina descreve a sua estadia nas diversas regiões do país, passando por Rio de Janeiro, Recife, São Luís, Alcântara, Belém, Manaus, Brasília, Salvador, Porto Seguro, Belo Horizonte, Ouro Preto, Congonhas do Campo e Mariana. Em cada um desses locais, a autora ressalta os pontos que chamaram a sua atenção, apontando as memórias portuguesas ainda presentes no Brasil. Dessa forma, seu olhar sobre as paisagens citadinas que visita reflete seu interesse pela história, pela arte e pelo povo que vai encontrando pelo caminho.
Neste percurso na obra Breviário do Brasil e outros textos, abordaremos as paisagens do Estado de Minas Gerais, mais especificamente das cidades de Belo Horizonte, Congonhas do Campo, Mariana e Ouro Preto. É um recorte necessário devido à impossibilidade de apresentar e ilustrar todos os locais visitados pela autora, citados na obra. Além disso, Agustina Bessa-Luís faz uso da mesma linha de observação para descrever as paisagens brasileiras, com visão equivalente a uma movimentação cinematográfica, privilegiando em “zoom” traços do cotidiano e particularidades históricas, estéticas e humanas, que não são captadas pelo olhar de um mero turista no Brasil. A escritora possibilita, então, conhecer de forma mais atenta o outro país de língua portuguesa através de suas paisagens marcadas pela história, pela cultura popular e pela vida cotidiana.
Ao iniciar a sua viagem pelo Estado de Minas Gerais, Agustina aponta que
Na capitania de Minas, o espírito revolucionário nunca se apagou. Fosse por motivo dos impostos reais que diminuíam o produto das lavras de ouro, fosse porque havia em Minas um nativismo orgulhoso de sefarditas ainda constante nos cristãos-novos portugueses, o certo é que Minas teve o facho da revolta na mão e sofreu as punições mais duras. No levante de 1720, foi castigada com cadafalso e incêndios pelo Conde de Assumar. A preparação da Inconfidência foi obra de judeus, e Tiradentes era um agente maçónico que trouxe da loja da Bahia instruções para os patriotas de Minas. Isso merece largas considerações que vão além do teor viageiro deste livro; não sei, de resto, se estão devidamente feitas, fora do espírito aleivoso que costumam acompanhar a história.
BESSA-LUÍS, Agustina. Breviário do Brasil e outros textos.
Rio de Janeiro: Tinta-da-China, 2016. p. 116-117
Nessa passagem, a autora ressalta a importância do espírito revolucionário para a história de Minas Gerais, mencionando o levante de 1720 e a Inconfidência Mineira. O primeiro se deu durante o período do Ciclo do Ouro e é conhecido na história brasileira como revolta de Felipe dos Santos, ou revolta de Vila Rica. Tal revolta teve como motivação a insatisfação do povo, comerciantes e proprietários das minas de ouro com os impostos, punições e a fiscalização portuguesa sobre o ouro extraído da região. Tendo como líder Felipe dos Santos Freire, a revolta a favor do fim das Casas de Fundição e da diminuição da fiscalização portuguesa durou cerca de um mês, com os seus participantes armados e ocupando Vila Rica. Isto gerou a consequência citada por Agustina: o Conde de Assumar castigou os revoltosos mandando prender os seus líderes, incendiando suas casas e condenando Felipe dos Santos à morte por enforcamento, como pode ser visto na pintura de Antônio Parreiras.
Imagem – Julgamento de Filipe dos Santos.
Além disso, Agustina apresenta uma breve visão sobre outro município, Belo Horizonte, capital do Estado, comparando-o com uma cidade europeia.
[…] a cidade tem um ar europeu com os seus coretos e paço episcopal, e aquela imobilidade de domingo em que sobressaem os parques frescos ainda da humidade da noite.
BESSA-LUÍS, Agustina. Breviário do Brasil e outros textos.
Rio de Janeiro: Tinta-da-China, 2016. p. 117
Em meio a semana de Páscoa, o grupo de intelectuais viaja para Ouro Preto.
Em Ouro Preto espera-nos uma surpresa: os hotéis estão cheios por motivo da Semana Santa, e é-nos destinado um albergue na montanha, de tão difícil acesso que só uma “jardineira” nos leva e nos traz pelo estradão em precipício. De resto, tudo lembra o Douro, de Portugal. As calçadas a pique, as aldeias postas em socalcos e a neblina fria que encobre a montanha. Do meu quarto, num bungaló húmido que desperta a minha mal prevenida bronquite, vejo os altos cimos que parecem as terras antes de Pombal e onde cresce um milho de bandeira ainda verde.
BESSA-LUÍS, Agustina. Breviário do Brasil e outros textos.
Rio de Janeiro: Tinta-da-China, 2016. p. 119
Após a sua acomodação no albergue, a autora caminha pelas ruas de Ouro Preto e reflete sobre mais um fato histórico mineiro.
A festa do Triunfo Eucarístico, de luxo nababesco, com as ninfas, anjos e trombeteiros chapeados de ouro e cravejados de diamantes, só por puro escárnio se comparava agora à procissão dos Passos, com suas pobres confrarias e uma multidão tristonha. […] O clero marcha na calçada do Ouvidor com a sua ruça sobrepaliz; dantes era um ‘vagaroso empenho de vista em que refulgiam paramentos duma riqueza comovedora’. E porquê comovedora? Porque a ostentação do rito se destina a impressionar a Deus e causar-Lhe bom humor; pois diz o pobre que o que bem parece a graça alcança.
BESSA-LUÍS, Agustina. Breviário do Brasil e outros textos.
Rio de Janeiro: Tinta-da-China, 2016. p. 120
Imagem – Festa do Triunfo Eucarístico
Essa reflexão de Agustina mostra o seu conhecimento acerca da história da cidade que está visitando, uma vez que a festa mencionada ocorreu pela primeira vez em 1773 para comemorar a finalização da obra da Igreja do Pilar, que havia sido demolida e estava em reconstrução, e a volta do Santíssimo Sacramento para seu altar de origem. É a descrição refigurada de um momento histórico festivo que ainda hoje é celebrado pela cidade.
Durante a sua caminhada, recorda-se ainda de uma frase de Manuel Bandeira e volta o seu olhar para a arquitetura da cidade mineira.
É no fim do século XVIII que o episódio da Inconfidência Mineira imobiliza essa escultura da pátria portuguesa que se levantava no Brasil por efeito da imitação, tanto arquitectónica como cultural. Embora o movimento dos inconfidentes ficasse em simples trato de conspiradores, logo cercados e punidos, a verdade é que Ouro Preto se fez lápide dos seus sonhos. Hoje, toda cidade, com igrejas, portas, sobrados, é um teatro das sombras. As duas maiores são realmente o Tiradentes e o Aleijadinho, mas porque cresceram na imaginação popular, como o poeta de Marília. Causa um certo arrepio ver do alto da Pousada do Mondego a janela onde possivelmente ele se recostava, vendo Marília, em roupão e touca, aparecer na janela ao lado, quando convidada da Tia Ana Cláudia para os saraus e festas em que uma mulata grande e bem feita dançava o fandango.
BESSA-LUÍS, Agustina. Breviário do Brasil e outros textos.
Rio de Janeiro: Tinta-da-China, 2016. p. 120-121
Imagem – Vista da janela da Pousada do Mondego.
Agustina, ainda em seu trajeto pela cidade, faz uma série de reflexões sobre o a posição e a importância históricas de Chico Rei, um “monarca africano aprisionado e vendido como escravo com todo o seu clã”, para a cidade. A autora relata que, com o trabalho dos que conseguiram fugir para Ouro Preto, o monarca e sua tribo conquistaram a carta de alforria e fundaram um estado monárquico, devido à mina que havia ali. Cita também aspectos da vida de Tiradentes, como a característica de ele ser “aventuroso, inquieto, capaz da conjura e mais ainda de motim”, e a figura de Aleijadinho, que ela diz estar.
mais retratado em Congonhas do Campo, nas figuras do Passo e nas dos profetas, do que na variada obra de escultura e arquitectura que deixou em Ouro Preto. Em Sabará esculpiu um São João da Cruz que eu gostaria de ver; até porque Sabará me intriga. Fica situada a pouca distância de Belo Horizonte e, não sei porquê, parece-me ter um significado especial na história mineira.
BESSA-LUÍS, Agustina. Breviário do Brasil e outros textos.
Rio de Janeiro: Tinta-da-China, 2016. p. 125
Imagem – São João da Cruz, Sabará, MG.
Ao referir figuras conhecidas da literatura árcade brasileira, a escritora descreve com certa ironia, para abordar o amor do poeta Gonzaga, durante a sua meia-idade, por sua vizinha Marília, que “a ponte dos suspiros de Marília, sobre um jardim idílico e algo tenebroso, é o fim duma calçada de que se desce a prumo, e não sei como servia aos passeios das musas”
Após essa reflexão, a autora volta a sua atenção para a rua em que se encontra.
A Rua do Ouvidor está cheia de forasteiros e as belas casas estão fechadas; à noite viam-se pelas portadas abertas das sacadas os bonitos papéis pintados, de grandiosa memória; como se ali se passasse um serão de Verão, ouvindo-se o lundu e dançando as escravas vestidas como princesas.
BESSA-LUÍS, Agustina. Breviário do Brasil e outros textos.
Rio de Janeiro: Tinta-da-China, 2016. p. 126
Imagem – Rua do Ouvidor, Ouro Preto, MG.
Terminada a estadia em Ouro Preto, Agustina relata que a viagem para Congonhas do Campo, seu novo destino, é feita durante a manhã de domingo de Páscoa, na qual ela pode observar
quaresmeiras roxas. Além disso, ela ressalta que há uma beleza de férias de verão no local e que
“diferente da Europa, onde a aristocracia é urbana, aqui ela está ligada à nostalgia do interior, à sua integração de homens e natureza”.
O grupo é recebido por todos da prefeitura e pessoas de grande importância da cidade com um discurso de boas-vindas seguido por um almoço com comida local, o
tutu mineiro. Após a refeição, a autora e seus companheiros de viagem seguem para uma visita ao santuário do Bom Jesus de Matosinhos, sobre o qual comenta:
A Rua do Ouvidor está cheia de forasteiros e as belas casas estão fechadas; à noite viam-se pelas portadas abertas das sacadas os bonitos papéis pintados, de grandiosa memória; como se ali se passasse um serão de Verão, ouvindo-se o lundu e dançando as escravas vestidas como princesas.
BESSA-LUÍS, Agustina. Breviário do Brasil e outros textos.
Rio de Janeiro: Tinta-da-China, 2016. p. 131-132
Mais adiante escreve que
O Adro dos Profetas e a Colina dos Passos constituem uma obra sem par de António Francisco Lisboa e dos seus oficiais. O Aleijadinho, que era de génio arrebatado e pouco dado a esse tratamento caridoso, é sem dúvida o maior artista do Brasil. Essa réplica do Bom Jesus de Braga, aplicada a um recinto estreito e sem muitos meios de execução […], resultou no entanto, numa obra extraordinária.
BESSA-LUÍS, Agustina. Breviário do Brasil e outros textos.
Rio de Janeiro: Tinta-da-China, 2016. p. 132
Imagem – Santuário Bom Jesus de Matosinhos, Congonhas do Campo, MG.
Após descrever com mais detalhes as figuras talhadas por Aleijadinho do Cristo da Ceia e da Flagelação, Agustina conta sua breve estadia em Mariana, durante uma tarde de calor, e aborda a história dessa cidade:
Mariana foi conhecida como Atenas mineira, ‘cenário de históricos acontecimentos no ciclo do ouro’. A cidade nasceu no final do século XVII, quando os bandeirantes paulistas aí acamparam para minerar o outro que havia no Ribeirão do Carmo. No lugar chamado Matacavalos foi dita a primeira missa e se fundou um arraial de gente, a primeira a traçar o mapa populacional do Estado de Minas. Em 1711 era já lugar de residência de governadores, e lá vamos encontrar D. Pedro de Almeida, o famoso Conde de Assumar, que se encontrou com dificuldades. […] Mas em 1745 Mariana ascendeu à categoria de cidade, com o nome da austríaca mulher de D. João V. Foi sede de bispados e muito catolicamente designada como cidade dos bispos.
BESSA-LUÍS, Agustina. Breviário do Brasil e outros textos.
Rio de Janeiro: Tinta-da-China, 2016. p. 136-136
Imagem – Mariana, MG.
Imagem – Mariana, MG.
A viagem do grupo de intelectuais por Minas Gerais termina com a volta para a Ouro Preto, de onde eles partem novamente para o Nordeste. Percebe-se, então, que o olhar agustiniano, no Estado mineiro, vai além da visão de um turista comum, uma vez que a autora demonstra conhecer profundamente a história local, fazendo associações das paisagens com o seu conhecimento histórico e cultural luso-brasileiro. Nota-se, também, como a visão de Agustina capta os traços da escultura de Aleijadinho, relacionando-os a esculturas presentes em Portugal. Além disso, seu olhar é atraído pela arquitetura dos locais pelos quais passou, uma vez que a autora vê nas construções mineiras semelhanças com estruturas portuguesas, marcando um tempo de história conjunta. A leitura do seu relato de viagem permite assim, não somente a visualização muito viva dessas paisagens visitadas, como também leva o leitor a percorrer a história brasileira e de cada local em diálogo contínuo com Portugal, mas também com a cultura ocidental.