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Paraíso português: Lisboa aos olhos de Teolinda Gersão

Paraíso português: Lisboa aos olhos de

Teolinda Gersão

Uma cidade construída pelo nosso olhar, que não tinha de coincidir com a que existia. Até porque também essa não existia realmente, cada um dos dez milhões de portugueses e dos milhões de turistas que por ela andavam tinha de Lisboa a imagem que lhe interessava, bastava ou convinha. Não havia assim razão para termos medo de tocar-lhe, podíamos (re)inventá-la, livremente 

GERSÃO, Teolinda. A Cidade de Ulisses. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2017, p. 41.

A escritora apresenta o ambiente de forma singular, exibindo olhares múltiplos e diversas vozes que divergem de acordo com cada ser. Esses pontos de vista, segundo a autora, dependem da construção social de quem analisa os fatos e as paisagens, variando conforme sexo, cor, experiência de vida e conceitos societários.

Em A Cidade de Ulisses (2011), Teolinda narra travessias pelo espaço urbano, nas quais a geografia externa e a interna se perpassam, se fundem e se confundem, contando espaços de afeto, de reflexão e de epifania, não para sobrepor descrições e fatos, mas para apresentar olhares sobre relações, interações entre as pessoas na cidade e com a cidade.

O romance também convida o leitor a mover fragmentos de impressões, de sentimentos, de sensações, de lendas, de fatos históricos, de canções, de imagens e de literatura para compor um mosaico apaixonado da paisagem de Lisboa. As peças são oferecidas por Paulo Vaz, um artista plástico, que fala sobre a sua missão de realizar uma exposição sobre a capital portuguesa esobre a sua relação apaixonada com Cecília Branco, a mulher com quem planeja o projeto.

Deste modo, Lisboa não é apenas um pano de fundo, mas elemento de projeção de desejos, de sentimentos e de sensações. O desnudar do corpo do amante se traduz na descoberta da cidade. O corpo dos amantes, o corpo da cidade e o corpo do texto se misturam em um anseio de humanização, em um verdadeiro manifesto contra a reificação dos corpos, da cidade, do amor e da arte. É interessante perceber como esse movimento é elaborado através da menção ao poeta Fernando Pessoa, que, de certa forma, teve a imagem e obra tratados como mercadorias, reduzidos a meros objetos de consumo:

Quiseste que te fotografasse, exactamente como milhares de outras pessoas, sentada na cadeira de bronze, ao lado da sua estátua de óculos e chapéu, em frente da Brasileira.
[…]
Uma cadeira inteligente, disseste sentando-te ao lado. Inteligentíssima. Todos os turistas lá querem ser fotografados. Provavelmente nenhum dos turistas lê os seus livros, mas é um bom ex-líbris de Lisboa. Pode competir com o barco de São Vicente e os corvos, até porque os corvos não abundam por aqui.
A tua visão podia ser também assim: pragmática. Ou, segundo dizias, realista e útil.
No entanto não conseguias ser de facto realista. O amor, enquanto durava, transformava tudo.
E nada tínhamos a ver com os turistas. Éramos diferentes. Viajantes.
Os turistas vão à procura de lugares para fugirem de si próprios, da rotina, do stress, da infelicidade, do tédio, da velhice, da morte.
[…]
As agências de viagens e os turistas só se interessam, obviamente, realce e não ficam a conhecer nenhum esforço lhes parece demasiado e nenhum passo excessivo, tão grande é o desejo de se pelas cidades reais. Os viajantes preferem as cidades imaginadas. Com sorte, conseguem encontrá-las. Ao menos uma vez na vida. Penso que uma vez na vida a sorte esteve do nosso lado e encontrámos a cidade que procurávamos. 

Teolinda Gersão. A Cidade de Ulisses

Escultura de Fernando Pessoa e o café A brasileira.
Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Caf%C3%A9_A_Brasileira_(Lisboa)

Longe de representar um destino turístico massificado, esvaziado de importância e de sentimento, durante todo o relacionamento, para Paulo e Cecília, Lisboa era um refúgio, um espelho e um ponto de contato. Pelas ruas da cidade, eles travavam uma busca apaixonada e prazerosa por si e pelo outro: “uma cidade a conquistar, em que se ia penetrando pouco a pouco e descobrindo, abaixo da superfície outras camadas” (Teolinda Gersão. A Cidade de Ulisses). Pela história factual ou mítica de Lisboa, narravam a experiência do seu amor: “Mais feliz que Ulisses, eu vivi essa hora de amor em Tróia. Porque também eras Helena, eras todas as mulheres, Cecília. Se as pintasse, terias também a figura de Circe e das sereias” (Teolinda Gersão. A Cidade de Ulisses). 

Devido à força desse amor, mesmo criticando a descaracterização cultural e física da cidade, os protagonistas conseguem se encantar e aproveitar até mesmo os quartos alugados e/ou alojamentos para turistas:

Mas tu continuavas a falar, havia dias, semanas, meses. Parecia-me. Como se nada pudesse quebrar o encantamento nem interromper a tua voz. A cidade iluminava-se e tudo o que olhavas tinha relação comigo: o letreiro amarelo da Pensão Josefina, as residências baratas que anunciavam quartos com água quente, os letreiros sub-reptícios de Zimmer, Chambres, Rooms que esperavam por amantes furtivos que desapareciam por detrás de portas, escadas, elevadores, cortinas de janelas. Resplandecias, como se tivesses dentro uma luz. Porque o amor te iluminava 

Teolinda Gersão. A Cidade de Ulisses

Letreiro amarelo da Pensão Josefina em Lisboa
Fonte: https://ar.trivago.com/en/lisbon-50993/hotel/josefina-1461499

Assim como as memórias e os sentimentos dos amantes, a materialidade da cidade, que é caracterizada pela coexistência da tradição e da modernidade, dos vestígios históricos e da tecnologia atual, dos monumentos históricos e dos prédios contemporâneos, também é apresentada como um mosaico. Lisboa é retratada através de suas múltiplas potencialidades, um espaço fragmentado no qual as peças podem ser movidas e (re)montadas de acordo com o desejo de quem as manipula, um lugar onde é possível ser, ver e fazer qualquer coisa. Para Paulo e Cecília, explorar cada canto de Lisboa, as várias camadas deixadas por antigas civilizações que ali se estabeleceram, era explorar também os vários níveis do relacionamento amoroso que naquela paisagem se adensava e deixava as suas marcas:

Uma cidade de linhas partidas, de perspectivas quebradas. Tudo era fragmentado em Lisboa, era preciso juntar pacientemente os pedaços para formar uma figura. Mas faltariam sempre alguns, encontravam-se a cada passo lacunas, interrupções, rupturas.
Deparávamos com um conjunto de fragmentos, restos de cidades construídas umas sobre as outras, de épocas e civilizações que chegavam a um impasse e desapareciam. Deixando as marcas.
A cidade crescera assim verticalmente desde o subsolo, encontravam-se em escavações e museus elementos da cultura nativa, estátuas de deuses como Endovélico, elementos fenícios romanos, visigóticos, e numerosos vestígios da cidade árabe. Mas também se encontravam a descoberto pedaços por exemplo da Lisboa romana: relativamente perto de nós, havia um teatro, na Rua da Saudade, logo ali ao pé da casa do Ary dos Santos.
[…]
Gostavas dessa ideia: uma cidade feita de pedaços, que eram pontos fulcrais de uma estrutura.
[…]
Eram os pedaços vazios que faziam realçar os outros, onde o desenho toma forma. Como na própria, porque também a vida era assim feita, de vazio e de pleno 

Teolinda Gersão. A Cidade de Ulisses

Imagem – Vestígios Romanos da Rua da Saudade, em Lisboa
Fonte: http://www.museudelisboa.pt/equipamentos/teatro-romano.html

Imagem – Vestígios Romanos da Rua da Saudade, em Lisboa
Fonte: http://www.museudelisboa.pt/equipamentos/teatro-romano.html

Para o casal, a cidade podia ser vista de maneiras diferentes, dependendo de quando e de onde a olhassem. Do alto, era um labirinto. Vista de lado, fragmentada. Ambos examinavam posições, locais e visões diferentes para conhecer a capital e o relacionamento de várias maneiras e de perspectivas diversas. Além dessa vivência, os dois sempre achavam um ponto de vista novo através dos saberes de outros estudiosos de Lisboa. Na concepção deles, assim como os amantes os pesquisadores tinham da cidade um pedaço guardado, que deveria ser compartilhado para que os próximos também pudessem (re)criá-la:

Dávamos conta, entretanto de que não estávamos sozinhos a procurar Lisboa. Encontrámos um número impressionante de outros que antes de nós tinham amado a cidade e a tinham estudado, investigado, pintado, fotografado, registado, filmado, comentado, descoberto, interpretado. O nosso olhar era devedor a todos eles, desde os grandes nomes incontornáveis a jornalistas que escreviam pequenos artigos aqui e ali, ou a meros cidadãos que estavam atentos e não se resignavam e escreviam cartas aos jornais. Sim, fazíamos parte de um número imenso de outros. 

Teolinda Gersão. A Cidade de Ulisses

Cecília, segundo o narrador, via a cidade de uma perspectiva privilegiada, estava ao mesmo tempo dentro e fora, olhava-a com olhos de sim e de não, pois, mesmo sendo de Moçambique, mantinha uma relação de afetividade com a cidade portuguesa. A personagem, que odiava ficar com sua família na Inglaterra, em Londres, sentia-se fria e cinzenta como a paisagem, acreditava que a iluminada Lisboa podia ser a sua segunda casa. Isso ocorre pelo fato de ela lembrar-se sempre da África enquanto caminhava pelo centro urbano lisboeta. Assim, como uma imigrante, ela teria um olhar parcial sobre Portugal e sua cultura, porém, ainda, uma amante da sua história:

Curiosamente, tinhas-te sentido em casa em Lisboa. Parecia-se em muitas coisas com Lourenço Marques, achavas. Foi Londres, a seguir, que te causou estranheza e nunca te despertou o desejo de ficar. Oito anos depois estavas de novo em Lisboa para estudar Belas Artes, quando tinhas à mão a Slade School. 

Teolinda Gersão. A Cidade de Ulisses

Já Paulo, lisboeta, mantém uma relação de amor e ódio com a cidade, que é para ele um espaço dividido: o espaço ameaçador do pai e o mundo aventuroso e secreto da mãe. Ele se enamora por Cecília em um momento delicado na política portuguesa, no final da guerra colonial, assim, o personagem, que tinha planos de sair de Lisboa, acaba permanecendo por conta da sua paixão pela mulher e criando um laço mais pessoal com toda a cidade:

Penso que o modo como vias Lisboa teve sempre a ver com a situação particular em que te encontravas. Viver aqui era uma escolha. Pudeste ir descobrindo a cidade de uma perspectiva privilegiada: estavas ao mesmo tempo dentro e fora olhava-la com olhos de sim e de não. A amplitude do teu olhar parecia-me por vezes avassaladora: tinhas atravessado o mar para chegar aqui. E oito anos em Londres, apesar de aí te sentires estrangeira, davam-te a consciência alargada de uma dimensão europeia. 

Teolinda Gersão. A Cidade de Ulisses

Unindo o olhar dos dois, segundo Paulo, chegava-se à visão do viajante, a única completa, aquela que (re)cria espaços e cenas da história portuguesa ao seu gosto. Ambos viam uma Lisboa única, fundada apenas para o seu proveito, ninguém mais a conhecia ou dela falava. Apenas os amantes podiam acessá-la:

Penso que o modo como vias Lisboa teve sempre a ver com a situação particular em que tFaria outra coisa, diferente, decidi: imagens desfocadas de Lisboa, em que a cidade se adivinhava mais do que se via. Porque Lisboa não estava debaixo das luzes dos holofotes nem da atenção do mundo, e as imagens que dela chegavam eram pouco nítidas, desfocadas. Eu oferecia assim um olhar oblíquo, um tanto vesgo, um olhar falso que reclamava um segundo e um terceiro olhar. As telas exigiam novas leituras, que desvendavam mais do que parecia oferecer-se inicialmente, e nasciam do desejo de olhar mais. Lisboa surgia como uma cidade de desejo, uma cidade de que se andava à procura. 

Teolinda Gersão. A Cidade de Ulisses

A Lisboa que viam, amavam e conheciam era aquela que os interessava. Os personagens apresentavam ideais, vivências e pensamentos diferentes, no entanto, enquanto caminhavam de mãos dadas pela cidade inventada, divertiam-se com as cenas que imaginavam. Ambos descobriram a Lisboa ideal, onde só importava aquilo que lhes convinha: arte, literatura e amor. Teolinda, também uma apaixonada, evidencia todo o sentimento que nutre pelo seu país nas longas divagações dos amantes, apresentando ao leitor uma Lisboa transfigurada, cativante e fascinante:

Dizíamos: “A Cidade de Ulisses”. Mas era também uma designação genérica, uma espécie de guarda-chuva debaixo do qual caberia tudo o que quiséssemos dizer sobre a cidade. Ou seja, o que nos interessasse, e apenas isso. 

Teolinda Gersão. A Cidade de Ulisses

Porém, assim como o território de Lisboa, o relacionamento de Paulo e Cecília é marcado por chegadas e partidas, por encontros e de despedidas. A fragmentação da paisagem também se reflete na fragmentação do relacionamento amoroso. Com o rompimento do casal, para Paulo, a cidade deixa de ser uma paisagem amorosa para se tornar um espaço marcado pela ausência de Cecília:

Tudo era igual nessa manhã, quando acordaste e foste à janela. Mas tudo era diferente. Havia lá embaixo a mesma rua, as mesmas casas, as mesmas lojas de legumes e fruta, os mesmos quiosques de jornais, as mesmas pessoas fariam compras como habitualmente, trocariam com quem estava atrás do balcão as mesmas frases banais de “obrigado” e “bom dia”.
E, no entanto, tudo era outro, como se tivesse mudado de repente e ninguém mais soubesse, a não seres tu.
Caminhavas com um segredo dentro de ti, que não era visível para ninguém mas transformava o mundo. Sim, o 28 continuava a passar, chocalhando nos carris, ainda servia os lisboetas em algumas zonas, e os turistas apanhavam-no por divertimento, como se ele pudesse levá-los até séculos passados. E agora outro eléctrico, encarnado, que fazia o percurso das colinas de Lisboa, seguia atrás do 28, tilintando rua acima, enfeitado com pequenas bandeiras. E ali estava como sempre a estação dos correios da Praça Luís de Camões, com portas e janelas encarnadas como todas as estações dos correios […]
E havia os mesmos hotéis de sempre, como o Tivoli, o teatro com o mesmo nome, o cinema São Jorge. E as esplanadas dos cafés, que ainda não tinham guarda-sóis abertos.
Mas tudo isso, tão igual a sempre, era diferente. O mundo transformara-se noutro, e só tu sabias. 

Teolinda Gersão. A Cidade de Ulisses

Praça Luís de Camões
Fonte: Lisbon 10064 Lisboa Praça Luís de Camões 2006 Luca Galuzzi.jpg

Percepção que só se agrava com o presságio e a notícia do falecimento da artista. A finitude do corpo da mulher amada acarreta o desaparecimento do corpo da cidade:

Um dia acordei com essa certeza: nunca irias voltar. E Lisboa desapareceu contigo.
Era uma manhã do início de novembro, estava sol e soprava um vento frio, era antes brisa do mar e não vento, o mar aliás estava calmo, não havia ondas fortes, batendo nas praias. E no Terreiro do Paço os velhos cacilheiros iam e vinham, como habitualmente, entre uma e outra margem.
Só eu dei conta, Cecília: Lisboa ruiu. Não posso contar a mais ninguém, porque me diriam louco, mas posso afiançar-te: Lisboa desapareceu contigo. 

Teolinda Gersão. A Cidade de Ulisses

Além da cidade encarnada no corpo dos amantes, da cidade transformada pelo sentimento amoroso, o romance de Teolinda também apresenta a cidade literária. Os protagonistas evidenciam essa construção através da referência a Ulisses, aos textos de Homero e às narrativas sobre a fundação da cidade. Através de suas personagens, que, assim como ela, são grandes conhecedores de história, de cultura e da literatura, Teolinda divide a pena com o mítico poeta grego, reescrevendo as aventuras do herói homérico, suas batalhas e suas histórias de amor, e, com tantos outros, ao narrar a importância de Ulisses no processo de (re)textualização do espaço português:

O que dava à cidade um estatuto singular, uma cidade real criada pela personagem de um livro, contaminada, portanto, pela literatura, pelo mundo da ficção e das histórias contadas. 

Teolinda Gersão. A Cidade de Ulisses

Em A Cidade de Ulisses, Lisboa é tanto uma paisagem contaminada como um agente transmissor do amor, da mitologia, da história e da literatura, é uma composição que, como a exposição de Paulo e Cecília, acaba por exercer sobre o leitor/espectador/visitante o mesmo poder exercido por um amante:

Criar era naturalmente um exercício de poder.
[…]
Queria exercer poder sobre o espectador. Fasciná-lo, subjugá-lo, convencê-lo, assustá-lo, enervá-lo, provocá-lo, deleitá-lo – criar-lhe emoções e reacções.
Sim, como numa forma de amor. Por alguma razão o conjunto de obras de um autor sobre as quais alguém se debruça para melhor as percorrer e decifrar se chama “corpus”. Corpo. A fruição de uma obra de arte é um encontro, um corpo-a-corpo. Entre duas pessoas, duas subjectividades, duas visões
[…]
ligada a sentimento de prazer quase físico 

Teolinda Gersão. A Cidade de Ulisses

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Agradecemos ao artista plástico Gabriel AV as fotos de Covilhã.