Lisboa sob a lente da poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen
Lisboa sob a lente da poesia de
Sophia de Mello Breyner Andresen
De Igreja em igreja batem a hora os sinos
E uma paz de convento ali perdura
Como se a antiga cidade se erguesse das ruínas
Com sua noite tremula de velas
Cheia de aventurança e sossego
Mas a cidade alheia brilha.
ANDRESEN, S. de M. B. “Nocturno da Graça”. In: Mar Novo. 5 ª ed. Porto: Assírio & Alvim/ Porto Editora, 2014. p. 70-71.
Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) atenta ao real e ao mundo sensível nos poemas “Nocturno da Graça”, publicado no livro, Mar Novo, em 1958, e “Lisboa” no livro, Navegações, em 1977, descrevendo a paisagem de Lisboa em contextos históricos e políticos diferentes. O primeiro poema foi escrito no período do Estado Novo sob a ditadura salazarista e o segundo, na instauração da democracia em Portugal.
No poema “Nocturno da Graça”, Sophia de Mello contempla e descreve a cidade de Lisboa a partir de planos sequenciais em perspectiva, cujas imagens sobrepostas de luz e sombra nos remete a espaços íntimos de silêncio e solidão em contraste com os sons e a fluidez das ruas movimentadas e densas. Na confluência entre o mundo real e simbólico por meio de metáforas, a poeta descreve as paisagens de Lisboa e seu cotidiano com lentes de aproximação e distanciamento, desvelando paisagens interiores e exteriores e transitando entre os espaços íntimos, públicos e míticos.
No poema “Lisboa” de conteúdo sociopolítico, a poeta suscita um pensamento crítico e reflexivo sobre a formação histórica e social da cidade de Lisboa. Tendo em vista os diferentes contextos históricos, nos dois poemas, Sophia retrata o cotidiano da cidade de Lisboa com toda sua complexidade histórica, política e social, caracterizando-a como cidade hostil, densa e movimentada. São poemas de forte apelo sensorial e imagético onde se entrelaçam símbolos e signos com a monumental e dura realidade da cidade moderna.
O encontro entre o homem e a natureza, a subjetividade lírica e a paisagem, alteridade e lugares de habitação, é expresso de diversas maneiras, desde o espaço como abrigo, cenário, espetáculo até o espaço literário/imaginário e poético. Esta multidimensionalidade do espaço possibilita diversos encontros e formas de representação e interpretação da paisagem. As paisagens, sabemos, podem ser fotografadas, escritas, descritas e imaginadas pela criação literária e pela poesia, além de outras artes (Gomes, 2019).
GOMES, L. A. Para uma cartografia afectiva da paisagem . In: Viagens da Saudade. Orgs.
SOUSA, C. RIBEIRO, N. ARAÚJO, R. Universidade do Porto/Faculdade de Letras, 2019. p.211-219.
O espaço e a paisagem, nas suas várias acepções e dimensões (desde o espaço interior ao espaço cosmológico), constitui a base fundamental na construção da obra literária e poética de Sophia. Os espaços imersos nos seus poemas são lugares de encontro/desencontro do homem com a natureza e o divino. Os espaços líricos da poeta se fundem e se metamorfoseiam com o real e a concretude, compondo um movimento dialético entre a realidade e o imaginário.
Sophia de M.B. Andresen constitui um dos nomes mais representativos da poesia da língua portuguesa do século XX e viveu no bairro da Graça na década de 1950, na Travessa das Mónicas n° 57. Em homenagem a Sophia foi atribuído o seu nome a um dos mais belos mirantes do bairro e colocado um monumento com seu busto.
Miradouro Sophia de Mello B. Andresen
Situada numa das mais altas colinas de Lisboa, o bairro da Graça oferece aos seus moradores e turistas algumas amenidades como praças, mirantes, cafés e belíssimas paisagens. O mirante Sophia de Mello Breyner, mais conhecido como Miradouro da Graça, e o Miradouro da Senhora do Monte possibilitam contemplar belas paisagens de Lisboa como o pôr do sol, os telhados vermelhos das casas que dão um colorido e uma atmosfera especial a cidade, o Castelo de São Jorge, a zona portuária e o rio Tejo.
Murilo Mendes , poeta brasileiro e amigo de Sophia, escreveu: “Sophia de Mello Breyner Andresen mora na Graça, um dos poucos bairros, como a Alfama, que conservam o caráter específico da Lisboa portuguesa e árabe. Sua casa dá para um jardim meio selvagem […] propondo-nos uma vista cenográfica sobre o Tejo e o Castelo de São Jorge” (Mendes, 1969).
A Graça é conhecida como um dos mais tradicionais bairros de Lisboa, com características urbanísticas diversificadas que vão desde uma antiga vila/residências operárias até os mais imponentes edifícios e casas. Estas características estão presentes nas ruas e passeios estreitos, becos, travessas, ladeiras, praças, sobrados e vilas residenciais degradadas, pequenas lojas, pastelarias, casa de fado, mercearias e cafés.
NOCTURNO DA GRAÇA
Há um rumor de bosque no pequeno Jardim
Um rumor de bosque no canto dos cedros
Sob o ímã azul da lua cheia
O rio cheio de escamas brilha
Negra cheia de luzes a cidade alheia.
Brilha a cidade de seus anúncios luminosos
Com espiritismo bares cinemas
Com torvas janelas e seus torvos gozos
Brilha a cidade alheia
Com seus bairros de becos e de escadas
De candeeiros triste e nostálgicas
Mulheres lavando a loiça em frentes das janelas
Ruas densas de gritos abafados
Castanholas de passos pelas esquinas
Viragens chiadas dos carros
Vultos atrás das cortinas
Ciclopes alucinados
De Igreja em igreja batem a hora os sinos
E uma paz de convento ali perdura
Como se a antiga cidade se erguesse das ruínas
Com sua noite trémula de velas
Cheia de aventurança e sossego.
Mas a cidade alheia brilha
Numa noite insone
De luzes fluorescentes
Numa noite cega surda presa
Onde soluça uma queixa cortada.
Sozinha estou contra a cidade alheia.
Comigo
Sobre o cais o bordel e a rua
Límpido e acesso
O silêncio dos astros continua.
Digo
<Lisboa>
Quando atravesso – vinda do sul – o rio
E a cidade a que chego abre-se como se do seu nome nascesse
Abre-se e ergue-se em sua extensão nocturna
Em seu longo luzir de azul e rio
Em seu corpo amontoado de colinas
Vejo-a melhor porque a digo
Tudo mostra melhor porque a digo
Tudo mostra melhor o seu estar e a sua carência porque digo.
Lisboa com o seu nome de ser e não-ser
Com seus meandros de espanto insônia e lata
E seu secreto rebrilhar de coisa de teatro
Seu conivente sorrir de intriga e máscara
Enquanto o largo mar a ocidente se dilata
Lisboa oscilando como uma grande barca
Lisboa cruelmente construída ao longo da sua própria ausência
Digo o nome da cidade
Digo para ver
Neste poema há uma sobreposição de espaços e tempos. O olha poético sobre a cidade é delineado a partir da tensão entre objetividade e subjetividade, na perspectiva de resgatar sua origem e constituição, cartografar a urbe cujas paisagens se impõem ao seu olhar mais intelectual e crítico.
Nos últimos versos do poema, Sophia faz referência à temática das navegações e nos remete à época dos “descobrimentos”, da riqueza gerada e acumulada a partir da exploração de terras ultramarinas. Para a poeta, Lisboa é uma cidade marcada pelas contradições sociais, superficialidade e desequilíbrio. Movida por um constante estado de inquietude e compromisso com a justiça social e a liberdade, Sophia traz à tona problemas contemporâneos originados no passado, suscitando simultaneamente indignação, consciência critica e estranhamento.
Entre a fronteira do mundo real e o imaginário, a poesia de Sophia de M. B. Andresen expressa a relação existencial do homem com a terra e seus diversos elementos, o espaço e a paisagem, um “estado de fusão afetiva vital e essencial”, o que Dardel (2011) define como Geograficidade. A poeta busca a integração do homem com a natureza e a cultura na perspectiva de resgatar a inteireza do ser, convergindo para o que Dardel, denomina de uma geografia interior e primitiva.
As paisagens de Sophia são criadas e recriadas por meio de imagens e sons e cores mobilizando todos os sentidos, são lugares de habitação, afeto e devaneios, são poemas-paisagens onde a poesia e a vida são indissociáveis, o que evidencia a natureza geopoética de sua obra.