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Do Rio Antigo à Cidade Nova: A Reurbanização Carioca nas Crônicas de Olavo Bilac

Do Rio Antigo à Cidade Nova: A Reurbanização Carioca nas Crônicas de

Olavo Bilac

E, pela Avenida em fora, acotovelando outros grupos fui pensando na revolução moral e intelectual que se vai operar na população, em virtude da reforma material da cidade. A melhor educação é a que entra pelos olhos. 

BILAC, Olavo. Rio de Janeiro:
Gazeta de Notícias, 6 de dezembro de 1903, p.1.

Para ser sede de grandes eventos internacionais, como a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos e Paralímpicos de 2016, a cidade do Rio de Janeiro passou por diversas obras destinadas a revitalização e a melhorias de infraestrutura que, após muito quebra-quebra e transtornos, modificaram bastante o traçado de ruas, avenidas e aspectos de determinadas áreas da cidade. Mas, certamente, esta não foi a primeira grande reforma urbana ocorrida na capital fluminense.

No início do século XX, o escritor Olavo Bilac registrou com fervor, em muitas de suas crônicas, a progressiva demolição do Rio de Janeiro com feição colonial e o paulatino surgimento da cidade idealizada pelo prefeito Pereira Passos, um engenheiro arrojado que sonhava deixar a sua cidade com a mesma feição das maiores metrópoles europeias da época.

Nestes textos, é possível perceber que Bilac descreveu a paisagem urbana da cidade, criticando, com frequência, o antigo frente ao novo, com o intuito de defender, a qualquer custo, a transformação do Rio de Janeiro em uma moderna metrópole cosmopolita. O empenho do escritor pela urbanização era tão intenso, que as belezas naturais da cidade maravilhosa quase não eram mencionadas. O próprio Bilac parece justificar esta questão através de sua vivência da cidade, que, conforme ele afirma, era essencialmente urbana: 

Toda a minha meninice se passou aqui, no coração urbano, no centro dos bairros comerciais apertados e escuros, saindo de casa para o colégio e do colégio para casa. Até os dezoito anos, nunca vi mares largos, nem vastos campos, nem grandes matas, nem rios amplos. A natureza selvagem era para mim o Passeio Público…

BILAC, Olavo. Crônica. In: GAZETA DE NOTÍCIAS.
Rio de Janeiro: Gazeta de Notícias, 5 de abril de 1908, p. 5.

Passeio Público – MUSSO, Luiz. Passeio Publico. Rio de Janeiro, RJ

Em dezembro de 1902, começaram as obras do prefeito, que devido ao grande número de demolições, ficaram popularmente conhecidas com “Bota-Abaixo”. As reformas do espaço físico visavam das vias públicas um traçado retilíneo e regular, ideal de cidade aprazível e civilizada. A estrutura ampla e reticular do ordenamento urbano deveria atender às necessidades de circulação, ordem, salubridade e embelezamento. 

Para que todos estes propósitos tivessem êxito, muitas das moradias mais antigas ou mais precárias, que eram essencialmente habitadas pelas populações mais pobres, também foram compulsoriamente removidas do centro Rio, levando um grande número de pessoas desabrigadas e sem muito meios a viverem em zonas periféricas ou nos morros da cidade.

Visando justificar essas demolições, os espaços onde habitavam ou circulavam as camadas mais carentes da sociedade foram apresentados, tanto por médicos sanitaristas como por governantes, como verdadeiros focos de violência e doença. Parecendo corroborar e defender esta mesma noção, Bilac descreve a zona portuária do Rio do início do século XX como um espaço perigoso, no qual a sujeira e a pobreza originavam uma variedade de males:

Quem escreve estas linhas tem ultimamente, no cumprimento de um dever profissional, percorrido o mais pobre, o mais triste, o mais sujo bairro do Rio de Janeiro, – a zona que abrange a Saúde, a Gamboa, a Praia Formosa, entre a orla do mar e os morros da Conceição, do Pinto, da Providência. Nessa região cheia de trapiches, de estaleiros, de depósitos de madeira e carvão, de estalagens e de tavernas suspeitas, formiga uma população macilenta e triste. As ruas não são varridas, há becos e ladeiras, em que, mesmo depois de toda uma semana de sol, ainda a lama negra poreja umidade e miasmas. 

BILAC, Olavo. Crônica. In: GAZETA DE NOTÍCIAS.
Rio de Janeiro: Gazeta de Notícias, 23 de junho de 1901, p. 1.

Planta da cidade do Rio de Janeiro e subúrbios.
A demolição de antigos casarões coloniais e das casas de cômodos, conhecidas como cortiços, foi comemorada por Bilac, que considerava o grande “Bota-Abaixo” promovido pelo prefeito como a “vitória da higiene, do bom gosto e da arte”:

Há poucos dias, as picaretas, entoando um hino jubiloso, iniciaram os trabalhos de construção da avenida Central, pondo abaixo as primeiras casas condenadas […].

No aluir das paredes, no ruir das pedras, no esfarelar do barro, havia um longo gemido. Era o gemido soturno e lamentoso do Passado, do Atraso, do Opróbrio. A cidade colonial, imunda, retrógrada, emperrada nas suas velhas tradições, estava soluçando no soluçar daqueles apodrecidos materiais que desabavam. Mas o hino claro das picaretas abafava esse protesto impotente.

Com que alegria cantavam elas, as picaretas regeneradoras! 

BILAC, Olavo. Crônica. In: KOSMOS:
Revista Artistica, Scientifica e Litteraria. Rio de Janeiro, março de 1904, p. 3.

Malta, Augusto. A decadência dos casarões coloniais, no centro do Rio, antes do “bota-abaixo”. Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro

Malta, Augusto. Alargamento da rua Uruguaiana, 1905. Coleção Gilberto Ferrez, Acervo do Instituto Moreira Salles

Em muitas de suas crônicas da primeira década do século XX, o escritor flagra, com detalhes, a execução de grandes vias como a Avenida Central, atual Avenida Rio Branco, e a Avenida Beira-Mar. Bilac, contudo, tende tanto a laurear os avanços quanto minimizar os transtornos e os percalços destas obras, tentando convencer o leitor, e talvez a ele mesmo, de que o processo de modernização da cidade, ainda em andamento, era uma tendência implacável e vitoriosa:

 Quem viu o Rio, há três anos, maltratado e sujo, com os seus taciturnos jardins murados e sem flores, com as suas tristes vielas povoadas de cachorros vagabundos, e quem agora o vê, com as novas avenidas em via de edificação, com os jardins viçando, abertos e floridos, com as ruas alargadas e enchendo-se de edificações elegantes, com a variedade de novos tipos de calçamento adotados, – reconhece sem dificuldade que, neste curto espaço de tempo, muito mais se fez aqui, do que em S. Paulo num espaço de tempo três ou quatro vezes maior.

Os olhos humanos não têm memória vivaz. Os nossos olhos já se não lembram do que eram a Prainha, a rua Treze de Maio, a rua do Sacramento, a praia de Botafogo, – e principalmente do que era a praça da Glória, com aquele hediondo mercado, agonia dos meus dias, pesadelo das minhas noites, tortura e tormento da minha vida!

Daqui a pouco tempo, dentro de dois anos, quando a Avenida Central e a Avenida Beira-Mar estiverem concluídas, quando o Rio de Janeiro se encher de carruagens e de automóveis; quando começarmos a possuir a vida civilizada e elegante que Buenos Aires já há tantos anos possui, também nessa época já nos não lembraremos do era a nossa vida tediosa e vazia. 

BILAC, Olavo. Crônica. In: GAZETA DE NOTÍCIAS.
Rio de Janeiro: Gazeta de Notícias, 15 de janeiro de 1903, p. 2.

Avenida Central, 1905. Avenida Rio Branco (Rio de Janeiro, RJ) / Biblioteca Nacional

MALTA, Augusto. Avenida Beira Mar na altura do Passeio Público, 27/10/1906. Rio de Janeiro, Lapa, RJ, Brasil / Instituto Moreira Salles

Nem mesmo a falta do cumprimento de prazos fez com que o escritor abandonasse a sua militância a favor da drástica, injusta e custosa reformulação urbana. Ao escrever sobre um possível atraso nas obras, Bilac parece menosprezar os cariocas que duvidavam da eficiência na execução do plano de melhoramento da cidade:

Agora, o que está particularmente interessando os cariocas é a rapidez maravilhosa com que se vai erguendo o majestoso pavilhão de S. Luís, no fim da Avenida.

A qualquer hora do dia ou da noite, quando por ali passa um bonde, há dentro dele um reboliço. Interrompe-se a leitura dos jornais, suspendem-se as conversas, e todos os olhares se fixam na formosa construção, que está pouco a pouco subindo, esplêndida e altiva, da casca dos andaimes, já revelando a suprema beleza em que daqui a pouco pompeiará.

As velhas casas de em torno ruem demolidas. Rasga-se ali, no coração da cidade, um imenso espaço livre, para que mais formoso avulte o palácio. No alto das cúpulas imponentes, agitam-se os operários como formigas, completando a toilette do monumento. E a cidade não pensa em outra cousa. Ficará pronto ou não, em julho, o palácio? Ferve a discussão, chocam-se as opiniões, fazem-se apostas, porque o carioca é um homem que nada faz sem aposta e sem jogo… 

BILAC, Olavo. Crônica. In: GAZETA DE NOTÍCIAS.
Rio de Janeiro: Gazeta de Notícias, 20 de maio de 1906, p. 5.

Entretanto, antes mesmo do término das obras, o escritor já se mostrava muito desapontado com os resultados da grande empreitada civilizacional empreendida pelo prefeito do “Bota-Abaixo”, que, para Bilac, não deveria apenas modificar o espaço físico, mas, sobretudo, reformar as formas de sociabilidade e os valores da população. Ao perceber que muitos dos antigos hábitos, como a venda de carnes e de vísceras nas ruas ou as confusões e alaridos dos mais festivos, tidos como costumes incivilizados e promotores de moléstias, não haviam se dissipado por completo e que as novas avenidas não eram ocupadas apenas pelos mais refinados e elegantes, o escritor afirma:

Quem, não conhecendo o Rio, ler em todos os nossos jornais as seções em que os mais atilados repórteres comentam a supercivilização da existência carioca, acreditará que estamos realmente vivendo em uma cidade grande, em uma vasta metrópole, de onde foram banidas, pela abundância e pelo cosmopolitismo da população, todas as mesquinharias, e todas as estreitezas e baixezas da vida de aldeia…

Entretanto o Rio de Janeiro é ainda uma aldeia… em ponto grande.

Quantos habitantes tem a cidade? Tem uns oitocentos ou novecentos mil. Isso ainda não é população de grande cidade, e é preciso notar que, desses oitocentos ou novecentos mil habitantes, há apenas alguns mil (bem poucos!) que podem ter vida inteligente e elegante. São sempre as mesmas pessoas que vão ao Corso, que frequentam hotéis, que ouvem óperas no Lírico, e tomam chá no Cavé e cerveja na Franziskaner: são sempre as mesmas poucas pessoas, que todas se conhecem umas às outras, e mutuamente vivem a espiar-se e a imitar-se. 

BILAC, Olavo. Crônica. In: CORREIO PAULISTANO.
São Paulo, 11 de janeiro de 1908, p. 1.

Em 1906, o polêmico mandato de Pereira Passos chegou ao fim, e o cenário físico, social e cultural do Rio de Janeiro, embora tivesse sido alterado, permanecia híbrido e múltiplo, profundamente marcado pelo encontro e aproximação de pessoas de diferentes origens e classes sociais.

Olavo Bilac, inegavelmente partidário do ideal de cosmopolitismo e da civilização de seu tempo, nos legou um mapeamento urbano, cultural e político tão evidente em suas crônicas. Através dos seus textos podemos perceber que a junção entre o moderno e o atrasado, entre o centro e a periferia, entre o progresso e a tradição e entre os barracos do morro e as moradias elegantes das elites permaneceu, e ainda permanece, como uma das características principais da cidade. Parece que os anos passam, mas muita coisa não muda na Cidade Maravilhosa.

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Em 30 de dezembro de 1902, por decreto, o engenheiro Francisco Pereira Passos foi nomeado prefeito da cidade do Rio de Janeiro, a então capital do Distrito Federal, pelo presidente Rodrigues Alves e assumiu no mesmo dia, sucedendo Carlos Leite Ribeiro. Pereira Passos ocupou o cargo até 16 de novembro de 1906. Durante seu mandato, ele realizou uma significativa reforma urbana na cidade. Para saneá-la e modernizá-la realizou diversas demolições, conhecidas popularmente como a política do “Bota-Abaixo”, que contribuiu fortemente para o surgimento do Rio de Janeiro da Belle Époque.
Agradecemos ao artista plástico Gabriel AV as fotos de Covilhã.