Páginas Paisagens Luso-Brasileiras em Movimento

Nicolas Behr – entre as ruas de Brasília e o horizonte de braxília

Nicolas Behr:

entre as ruas de Brasília e o horizonte de braxília

o que não falei sobre Brasília
o tempo dirá por mim 

Nicolas Behr

Antes mesmo de sua inauguração como a nova capital brasileira, em abril de 1960, a cidade de Brasília estimulava a imaginação de poetas, com seus ares de modernidade e promessas de superação do atraso e do provincianismo nacional. Os escritores ligados à vanguarda concretista foram os principais expoentes dessa, por assim dizer, pré-história poética de Brasília. No “Plano-piloto para a poesia concreta”, escrito em 1958, Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos, principais expoentes do movimento, projetaram sobre a cidade ainda em construção as transformações estéticas que propunham em seus manifestos. Escrevendo na caótica metrópole de São Paulo, que outrora havia sido o palco apoteótico do modernismo brasileiro, eles apontavam um forte parentesco entre a criação de uma cidade-monumento ultra moderna em meio ao Planalto Central brasileiro e a linguagem de ruptura, anti-retórica, almejada pelo concretismo. Tal como a revolução urbanística representada pela nova cidade, a poesia que historicamente acompanharia seu prodígio arquitetônico haveria de ser, na visão deles, racional, cosmopolita, lógica, apoiada no rigor técnico e na funcionalidade máxima de seus elementos constituintes.

Ao lado do presidente Juscelino Kubitschek, do urbanista Lúcio Costa e do arquiteto Oscar Niemeyer, o imenso poeta e engenheiro Joaquim Cardozo foi um dos nomes emblemáticos da construção de Brasília. Das suas mãos saíram os cálculos para muitas das principais edificações que preencheriam a paisagem anteriormente erma do cerrado goiano. Sugestivamente, os cálculos do poeta tornavam possíveis as linhas suaves e poéticas dos prédios de Niemeyer. Matemática e poesia, precisão e imaginação, robustez e leveza constituiriam, assim, o imaginário em torno da nova capital, ícone da arquitetura moderna e maior cidade inaugurada no século XX.

Vista área da região central de Brasília, com destaque para a Catedral e o Museu Nacional de Brasília.

A flanar pelas largas avenidas do Plano Piloto, encontramos um poeta muito peculiar que há mais de 40 anos vem escrevendo e reescrevendo as feições dessa cidade de muitos rostos, de muitas vozes. A relação entre Nicolas Behr e Brasília é marcada por uma intimidade fascinante, reverberada nas inúmeras inscrições de seus versos pela cidade: das pichações de seus poemas em áreas de grande circulação aos badulaques que os turistas adquirem como souvenir na badalada feirinha da Torre de TV. Consagrado como um dos mais célebres cantores da cidade, Behr desenvolveu uma forma muito inusitada de abordar a capital candanga. Se, tanto para os de fora como para muitos dos de dentro, a imagem de Brasília ainda segue muito calcada naquela aura de racionalismo confiante, da austeridade do concreto e da sobriedade padronizada, a poesia de Behr sempre rasurou o peso dessa certidão de batismo. Com isso, recriou as entranhas de Brasília em uma poética marcada, de modo paradoxal e provocativo, pela aparência de improviso, pela recorrência do humor, pela concisão desconcertante, o coloquialismo afiado e o gosto pelo diminuto e o contingencial.

O estilo do autor confronta, já no despojamento de sua linguagem, o olhar canônico sobre a cidade, opondo sua dicção fluente e polifônica à paisagem tão marcadamente engessada pelos taciturnos ecos do poder e pela merecida fama de cidade que se leva a sério demais. Na contramão da solenidade e da altivez que a cidade ostenta em manuais de arquitetura e livros de história, Nicolas Behr a captura, viva e inquietante, em poemas carregados de aforismos e jogos de palavra:

brasília é a incapacidade
do contato afetivo
entre a laje e o concreto

o plano pilatos
lava as mãos
e a sujeira
vai toda
pro lago paranoá

Lago Paranoá.

Nicolas Behr nasceu em Cuiabá, em 1958, portanto dois anos antes da inauguração de Brasília. Para lá se mudou ainda na infância: cresceu e envelheceu juntamente com a cidade com a qual mantém uma gama de sentimentos que vão da revolta desbocada ao amor febril. Mas não espere qualquer idealismo bairrista ou nostalgia idílica por parte deste insubmisso habitante da capital federal. Seu amor pela cidade nunca é dócil, nunca é conivente com seus desmandos, sua violência de metrópole e seus absurdos abismos sociais. A nervura de seus versos nasce de uma afiada conjugação entre aquilo que a cidade poderia ter sido (e que não foi) e aquilo que ela ainda pode e deve ser, pois nosso poeta não se deixa confundir nem com os conformistas nem com os desencantados.

Behr iniciou sua produção poética com o livro Iogurte com farinha, de 1977, tornando-se um dos nomes de destaque da chamada “geração mimeógrafo”, cujo traço diferencial era a produção artesanal dos livros e sua comercialização “corpo a corpo” pelas ruas da cidade, nos bares, teatros e cinemas, enfrentando com versos joviais a sisudez de um país ainda constringido pela Ditadura Militar. Nessas condições de distribuição, seu livro de estreia atingiu a marca de mais de oito mil exemplares vendidos, projetando-o nacionalmente. Os livros seguintes amplificaram o engenho provocativo de sua poesia, resultando em perseguição do Regime Militar, inclusive com passagem pela prisão, em 1978.

Versão mimeografada original de Iogurte com farinha, de 1977, exibindo o caráter artesanal e o humor da geração marginal.

O caráter periférico de sua poética se manteve nas décadas seguintes, sendo ele um dos últimos escritores da dita “geração marginal” a ter sua obra publicada por grandes editoras. Isso ocorreu apenas em 2007, com a antologia laranja seleta, que seleciona poemas representativos de sua produção até aquele momento. Com o sarcasmo que lhe é característico, o poeta afirma no prefácio do livro ser duplo o seu orgulho diante daquela publicação tardia: primeiro por ter sua poesia enfim reunida em edição “profissional” e, em segundo lugar, por ter a honra de ser o último de seu grupo a atingir tal proeza.

A cartografia humana de Brasília, com seus tipos sociais e vocabulário próprio, é abordada por diversos ângulos pela poesia irreverente de Nicolas Behr. Podemos mesmo afirmar que a paisagem da capital é o elemento que confere certa unidade às inquietações que atravessam a sua trajetória poética, estando o espaço urbano hasteado como ars poetica do autor:

minha poesia
é o que estou
vendo agora:

um homem
atravessando
a superquadra 

Neste poema, Behr situa seu projeto literário com base no pacto com o instante, com o efêmero. A fusão entre poesia (escrita, pensamento) e olhar se consuma na fugacidade de um “agora” que explora o vínculo entre o flagrante de algo repentino e miúdo (o homem caminhando) e um trabalho de fixação estética pronto para extrair da cena urbana uma crítica, uma reflexão, um chiste – quase sempre embaralhando tudo ao mesmo tempo. A cena cotidiana não é, para ele, pretexto para a especulação filosófica ou base para um exercício literário de fôlego, ao contrário, ela já condensa em si o choque, cabendo ao poeta a tarefa de fixá-la do modo mais direto e significativo, num insight que visa a gerar um impacto sensível mesmo sobre o leitor mais distraído. 

A superquadra é uma forma de organização urbanística típica do planejamento de Brasília, com edificações verticais de três a seis pavimentos e os pilotis nos térreos, como estratégia para facilitar a circulação de pessoas entre as unidades residenciais e as zonas de comércio e lazer. A observação do poeta sobre tais estruturas aponta para a deturpação do projeto inicial da cidade, na qual é possível enxergar o sonho coletivo de uma cidade-parque.

Visão aérea do Eixo Rodoviário de Brasília, com as “tesourinhas” (áreas de conversão entre as pistas), as superquadras residenciais e, ao fundo, o lago Paranoá.
Em contrariedade ao ideal de circulação e convívio entre os habitantes, que norteou a construção das superquadras, o poema revela o impacto do individualismo sobre o solitário pequeno-homem em choque com a dilatação da superquadra. Em outro poema, a crítica volta-se para a degradação da cidade, cujo projeto fundador é ilegalmente deturpado por moradores e especuladores para maximizar os lucros com a exploração do espaço gentrificado do Plano Piloto, na mesma medida em que busca afastar visitantes indesejáveis de outras classes sociais:

 com o passar do tempo o conceito
de superquadra teve de ser atualizado:

espaço residencial fechado por altos muros
e guaritas, heliporto exclusivo, blocos de
vários gabaritos, sem áreas verdes,
com quitinetes e quiosques ocupando a área
antes livre dos pilotis. 

Assim, o movimento do poeta pela cidade revela o impacto deformador das contradições econômicas e sociais cada vez mais gritantes. Para captar essa ação, o poeta valoriza o conflito dramático, o diálogo prosaico e a interpolação constante ao leitor, uma espécie de forasteiro a quem a vida que se oculta nas dobras da cidade precisa ser revelada:

 senhores turistas,
eu gostaria de frisar
mais uma vez
que nestes blocos de apartamento
moram inclusive pessoas normais 

Em muitos outros poemas é o próprio poeta quem se desloca, em uma contemplação ativa do espaço urbano. Nestes casos, é recorrente a dificuldade do caminhar. A angústia típica do sujeito moderno, desde ao menos Baudelaire, acaba sendo amplificada pela organização da cidade, conhecida pela sua hostilidade aos transeuntes, com as avenidas largas e sem pontos de travessia, privilegiando a pressa dos automóveis:

 nossa Senhora do cerrado
protetora dos pedestres
que atravessam o eixão
às seis horas da tarde
fazei com que eu chegue são e salvo
na casa de noélia 

As andanças do sujeito-lírico tecem o mosaico poético de uma cidade-labirinto. O labirinto é, em primeiro lugar, geográfico e espacial, devido às dificuldades dos pedestres para circularem pelas avenidas; em segundo lugar, é social, com a desigualdade opondo os moradores do Plano Piloto aos trabalhadores que vêm das cidades satélites. Mas vale destacar também que essa cidade-labirinto é incorporada à linguagem, por meio das referências a um vocabulário próprio de Brasília, incompreensível aos leitores que não conhecem a dinâmica da cidade. Essas palavras cifradas criam uma espécie de jogo para iniciados, exibindo com dúbio orgulho a singularidade e o artificialismo da cidade. Eis que termos como Superquadras, Eixão, Eixinho, Tesourinhas frequentam a sua poesia, ao lado das siglas e números que nomeiam as localidades, cujo truncamentos comunicativos são elevados até a aporia, como metáfora irônica da vida que ali se leva:

 SQS415F303
SQN303F415
NQS403F315
QQQ313F405
SSS305F413

seria isso
um poema
sobre brasília?
seria um poema?
seria brasília? 

Ou neste curioso poema-crônica:

Aconteceu na 103
o porteiro do bloco i da 103 sul pegou a filha do síndico do
bloco o da 413 com o cara do 302 do bloco d da 209 sul
dentro do carro do zelador do bloco f da
314 norte. 

O teor narrativo dessa pequena história se esvai diante da quantidade de siglas e números que constituem a organização de Brasília, gerando estranhamento do leitor na mesma medida em que critica de modo zombeteiro o impacto da organização lógica da cidade nas relações humanas mais corriqueiras, contrastadas com a racionalização do espaço.

Em outro poema muito popular, o poeta se pergunta por que tanto investimento de recursos em uma ponte pela qual ninguém cruzará de mãos dadas – referindo-se novamente ao projeto de circulação urbana que prioriza o transporte rodoviário individual, além da crítica indireta ao desenvolvimentismo. Em contraponto aos grandes espaços vazios de gente, o poeta elege a rodoviária central de Brasília como símbolo privilegiado em sua obra. Lugar de multidão e diversidade, onde os trabalhadores pobres – empurrados cada vez mais para longe do centro econômico e político – se encontram com os marginais do Plano Piloto, em uma liturgia popular que expõe as tensões recalcadas pela rígida divisão da cidade. Ela, a rodoviária, é o inferno de corpos e cheiros no qual se esfolam os trabalhadores em busca do seu ganha-pão: “desço aos infernos/ pelas escadas rolantes/ da rodoviária de Brasília”, mas também de onde o sujeito lírico emerge purificado do artificialismo que torna opaca a vida dos privilegiados do Plano Piloto:

subo aos céus
pelas escadas rolantes
da rodoviária

o corpo de cristo
aqui não é pão,
é pastel de carne. 

Cena de agitação cotidiana na rodoviária de Brasília. Aparecem na imagem as famosas bancas de pastel, mencionadas em inúmeros poemas de Behr.
Como dito anteriormente, Nicolas Behr compartilha com seus companheiros de geração o gosto pelo humor, pelo poema breve, a linguagem coloquial e dialogada. O autor mobiliza esse repertório de formas para tratar de uma cidade que foi erigida como a perfeita antítese do desregramento que tanto lhe seduz como processo de criação. Tal perspectiva estabelece um olhar que nasce intimamente “de dentro” da cidade, mas ao mesmo tempo assume a perplexidade diante de seus submundos alheios aos pontos turísticos e ao oficialismo da pompa política.

bem, o sr. já nos mostrou
os blocos, as quadras,
os eixos, os palácios…

será que dava pro sr.
nos mostrar a cidade
propriamente dita? 

O frescor de sua obra reside talvez na constante busca dessa cidade aprisionada dentro da imagem fossilizada de Brasília no imaginário nacional e mundial. Contudo, o poeta não se coloca nunca na condição de cicerone, daquele que conduzirá o leitor pela “cidade verdadeira”, ao contrário, ele se sente tão exilado dessa cidade desejada quanto o forasteiro, o que explica sua relação ambivalente com Brasília, cujo sentimento vai subitamente da repulsa visceral ao amor e a incompreensão:

merda de cidade
bosta de cidade
porcaria de cidade

amo essa cidade
que cidade? 

Brasília, Eixo Monumental.
Às vezes, no entanto, farto de empreender essa arqueologia, o poeta se entrega ironicamente ao jogo das aparências como uma face mais real do que a profundidade buscada:

a cidade é isso mesmo
que você está vendo
mesmo que você
não esteja vendo nada 

Dentre os símbolos que sua poesia mobiliza, um dos mais significativos é o carimbo: “cidade, está decretado: teu símbolo é um carimbo”. O carimbo alude especialmente à onipresença da burocracia em um lugar no qual o formalismo do serviço público, bem como a ambição de passar nos concursos para os altos escalões do funcionalismo, atravessa todas as zonas de coexistência entre as pessoas, inclusive as mais íntimas:

burocratas de verdade
só fazem amor
em almofadas de carimbo 

O carimbo também ganha espaço em sua invenção mítica da cidade:

a profecia dizia que quando jk
visse uma coruja buraqueira,
pousada num cupinzeiro,
devorando um rato
que segura um carimbo,
aí seria o sítio ideal
para erguer sua capital

e assim se fez 

O poema provoca, pela ironia e o deboche, o suposto DNA cartesiano da nova cidade, erigida sobre os princípios da racionalidade estrita – que seria, ao fim, uma forma de mitologia às avessas. A narrativa oficial sobre a criação da cidade (a decisão política de impulsionar o progresso econômico do interior do país, em uma ideologia desenvolvimentista) é rasurada pelo mito de fundação com estrutura arcaizante: a profecia, o prodígio e a predestinação.
Esplanada dos Ministérios.

Comumente apresentada como uma cidade criada do nada e no nada, Brasília padeceria da falta de um passado ao qual recorrer para construir sua identidade. Brincando com esse falseamento histórico, Nicolas Behr inventa continuamente esse passado, com sentido político questionador. No exemplo citado, Juscelino Kubitschek (o jk do poema) encontraria em índices irrecusáveis fornecidos pela própria natureza a indicação do sítio ideal para erguer a capital. Mas essa ficção mágico-anunciatória engloba, em sua cadeia de símbolos tradicionais, um elemento estranho, discrepante, que seria o rato segurando um carimbo ao ser devorado pela coruja. O nonsense da cena interliga a explicação mítica à condenação kafkiana da burocracia do estado e seu pesado aparato desumanizador. Assim, os símbolos se renovam no poema: a coruja (símbolo da sabedoria e da razão) devora o rato (ligado ao fétido e ao mesquinho) junto com o carimbo. O carimbo remete ao domínio do rato, mas, ao ser devorado pela coruja, a ela se funde, vaticinando o destino de uma cidade-repartição que recalca sua historicidade em nome da ideologia do progresso constante. Tudo isso em cima de um cupinzeiro, onde os invisíveis trabalhadores labutam, alheios à toda aquela mitologia. 

Por conseguinte, se o carimbo comparece no mito fundador, ele também se projeta na utopia que o poeta engendra para a cidade:

não ficará carimbo sobre carimbo
e carimbo por carimbo
reconstruiremos a cidade
sem carimbos 

Nos quatro versos que compõe este poema, a palavra carimbo aparece cinco vezes, conotando, pelo recurso da repetição, sua onipresença. É nítido o aceno a um futuro redentor (“reconstruiremos a cidade/ sem carimbos”). Porém, paradoxalmente, o meio para essa transformação emancipadora incorpora o próprio elemento a ser negado, pois é “carimbo por carimbo” que a ação transformadora se efetivará. Estes versos exibem outra marca fundamental da poética de Nicolas Behr: os intertextos com a tradição literária e filosófica, bem como com a cultura de massa e a cultura popular, via de regra em chave paródica e anti-reverencial. Neste caso, o verso alude a “Telegrama de Moscou”, de Carlos Drummond de Andrade, um poema atravessado pelo horror da Segunda Guerra Mundial e o anseio de reconstrução solidária do mundo devastado pelo conflito, que se inicia com o verso “pedra por pedra reconstruiremos a cidade”. 

Recorrendo aos versos combativos de Drummond, o caráter de resistência da poesia de Behr se evidencia com mais clareza. Ao desmontar a “história oficial” que achata a silhueta humana da cidade em livros de turismo e cartões postais, ele revela o lugar imprescindível da classe trabalhadora, reivindicando, por meio da ironia que revela este apagamento, um lugar para ela na história e no presente da cidade:

jk construiu Brasília
os candangos ficaram olhando 

O mesmo procedimento aparece nos poemas de temática ecológica, que incorporam o ativismo de Nicolas Behr pela conservação do cerrado, inclusive como sua ocupação profissional desde os anos 1980. A visão ecocrítica do poema a seguir questiona o “nada” fundador da cidade, valorizando a memória e a preservação da vegetação nativa degradada pela sua construção.

aqui não havia nada
só um grande vazio
um deserto

aí inauguraram a capital
e o cerrado apareceu logo depois 

O poeta posa com mudas originárias do cerrado, no viveiro que dirige em Brasília há mais de 30 anos. Foto disponível no site oficial do autor:
http://www.nicolasbehr.com.br/index.php

De tanto enfrentar sua esfinge-Brasília, este, em suas palavras, “monumento ao monumento desconhecido”, Nicolas Behr acabaria fundando uma alegoria própria: a sua braxília. A sutil mudança de uma das letras da palavra que nomeia a cidade produz um espelhamento rarefeito, fazendo da poesia o lugar de projeção e transfiguração dessa cidade sonhada, desejada, familiar, redimida de seu projeto matricial. Como o próprio poeta explica:

imagine Brasília
não-capital
não-poder
não-brasília

assim é braxília. 

A descrição da utópica braxília é toda feita em chave negativa, a partir não daquilo que ela é, mas pelo que ela não é. Brasília seria, figurativamente, libertada de seus atributos mais estereotipados: a capital (e o capital), o poder, a corrupção, a desigualdade social. Sem eles, a Brasília imaginada torna-se outra coisa, sem deixar ainda de ser o que é. Dessa fulguração nasce braxília, personalíssima criação de Nicolas Behr. 

Portanto, braxília seria o resultado de um acerto de contas do poeta com a tão decantada cidade onde vive. A certa altura, afirma: “eu engoli brasília”, e dessa apropriação deglutiva, oswaldiana, na qual também é devorado, o poeta se liberta da cidade-utopia-falhada, em um patético acerto de contas:

brasília já teve
de mim
o pedaço que queria

o pedaço
fedia
(agora é a vez de braxília). 

Braxília nasce como utopia forjada no espaço da poesia: só ali essa cidade libertária se inflama e se revela: “braxília foi construída com a língua”, ele nos diz. Não satisfeito em reinventar poeticamente Brasília, Behr cria uma cidade sonhada, feita nos alicerces de seu duplo “real”. Sua utopia revigorada emerge justamente das ruínas precoces daquela Brasília projetada e nunca realizada: “anunciaram a utopia/ mas foi brasília que apareceu”.

Poucas vezes um poeta manteve uma relação tão multifacetada com uma cidade, como ocorre entre Brasília e Nicolas Behr. Em afetuoso diálogo com a cidade onde escolheu viver, o autor lhe inventa um passado, reescreve-lhe a história, critica o seu presente, anuncia-lhe um novo futuro e, por fim, a metamorfoseia dando-lhe um novo nome e também nova chance de concretizar um destino mais humano, e por isso imperfeito, do que aquele que lhe deu origem. 

Behr captou nas contradições da vida brasiliense uma metonímia das transformações do Brasil, em sua irregular, mas sempre voraz e violenta, sina modernizadora. Sua Brasília é ainda o Brasil da ordem e do progresso, que exclui e apaga tudo que se coloca como alternativa para a sua marcha. Mas é também uma metáfora da própria modernidade, com suas promessas e frustrações, da qual Brasília é ao mesmo tempo produto, sintoma e negação. Cidade de políticos calhordas, burocratas mesquinhos, vazios intransponíveis, mas também de muita gente batalhando para sobreviver. Por onde o poeta se movimenta, se revolta e se entedia. Cidade sempre inconclusa (“quando será inaugurada em mim/ esta cidade?”), mas acolhedora a ponto de lhe permitir uma modesta certeza:

a última coisa
que quero fazer em brasília
é morrer. 

Scroll to Top
Lúcio Costa (1902-1998) foi autor do projeto vencedor do concurso público que selecionou a proposta de concepção da nova capital. Com isso, tornou-se o urbanista responsável pelo planejamento de Brasília, liderando uma ampla equipe de arquitetos e engenheiros que participaram de sua construção.
O concretismo foi um importante movimento de vanguarda no Brasil, iniciado na década de 1950. Dentre as suas principais bandeiras artísticas se destacam a superação do verso e o abandono da musicalidade característica da lírica convencional, dando grande importância aos elementos visuais e gráficos na construção verbo-voco-visual do poema.

Publicado originalmente em Noigandres 4, São Paulo, edição dos autores, 1958. Disponível em:
https://poesiaconcreta.com.br/texto.php#

A respeito desse autor, verificar:
https://www.ebiografia.com/decio_pignatari

Juscelino Kubitschek (1902-1976) foi presidente do Brasil entre 1956 e 1961. Seu governo teve como principal feito a construção da nova capital, prevista desde a Constituição de 1891, mas executada somente durante o seu mandato.
Oscar Niemeyer (1907-2012) é o mais conhecido arquiteto de Brasília e um dos principais nomes da arquitetura moderna mundial. Com suas linhas inconfundíveis, projetou os mais icônicos prédios cívicos da capital.

Diz o poema: 

“enfim, era preciso saber
quanto cimento será gasto
numa ponte por onde ninguém
passará de mãos dadas”

Joaquim Cardozo (1897-1978) foi um poeta recifense de grande relevância para as letras nacionais, embora com reconhecimento público ainda discreto. Conciliou sua trajetória artística com a profissão de engenheiro estrutural, sendo responsável pelos complexos cálculos que possibilitaram a construção de diversos prédios inovadores de Niemeyer.
O termo candango tem sua origem no nome que os africanos davam aos portugueses. Ao tempo da criação de Brasília, passou a denominar de forma pejorativa as pessoas pobres que vieram dos quatro cantos do país para trabalhar como operários na construção da cidade. Com o passar do tempo, o termo se enraizou e converteu-se em uma forma popular de se referir a todos que nascem ou vivem na cidade. Ver diversas fotos sobre Brasília
Os poemas de Nicolas Behr citados no artigo estão todos reunidos na antologia Laranja seleta (Rio de Janeiro: Língua Geral, 2007).

Sobre gentrificação, consultar: 
https://ea.fflch.usp.br/conceito/gentrificacao

Atualmente, são chamadas oficialmente de Regiões Administrativas. Configuram-se como conglomerados urbanos muito distintos entre si, onde vivem a maior parte dos trabalhadores que atuam no centro da capital ou que até ele se deslocam para usufruir de suas opções de lazer. Ver identificação das regiões em: 

https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_regi%C3%B5es_administrativas_do_Distrito_Federal_por_popula%C3%A7%C3%A3o

A primeira estrofe brinca com a forma hermética dos endereços do Plano de Piloto. Ilustrando com o primeiro verso, teríamos o nome da região “SQS” (Super Quadras Sul), o número da quadra “415”, o bloco do edifício “F” e, provavelmente, o número do apartamento “303”.
Agradecemos ao artista plástico Gabriel AV as fotos de Covilhã.