Do Tejo à Guanabara: o Rio de Janeiro de Miguel Sousa Tavares
Do Tejo à Guanabara: o Rio de Janeiro de
Miguel Sousa Tavares
Diogo sorriu para si mesmo. Abriu a boca de par em par, como se fosse gritar, e engoliu nova golfada de clorofila. Abaixou-se sobre a terra molhada a seus pés e colheu um pedaço, que levou à boca e beijou ao de leve: terra brasil.
Os laços históricos entre Brasil e Portugal são os alicerces do romance Rio das Flores de Miguel Sousa Tavares. A obra acompanha a saga familiar dos Ribera Flores, centrada na vida de dois irmãos naturais de Estremoz, ao atravessar a história de Portugal desde 1915, delineando os embates entre republicanos e monarquistas após a instauração da República, até 1945, ano que marca o fim da Segunda Guerra Mundial.
Nessa pequena cidade do Alentejo, a abastada família detém a importante propriedade Valmonte, destacando-se na sociedade rural. A relação entre Diogo e Pedro é o núcleo duro do romance, que se desdobra na trajetória desses dois homens percorrendo diversas cidades, seja em Portugal, seja no Brasil, na Espanha ou na Alemanha. Filhos de um importante monarquista e latifundiário, os irmãos se posicionam em polos ideológicos opostos: Diogo tenciona viver em liberdade em uma sociedade que não aquela que era a portuguesa, enquanto Pedro — que defende valores arcaicos herdados de seu pai, Manuel Custódio — pretende assegurar sua vida como proprietário e a de seu clã.
É no fim da década de 1920 que Diogo vive as tensões de sair da terra natal tanto para estudar quanto trabalhar em Lisboa, assim como aspira conhecer algum dia o Brasil, um lugar que lhe inspira promessas de um futuro melhor. Com o golpe de Estado de 1926 e a ascensão do regime autoritário de Salazar ao poder em 1932, o protagonista se sente acuado pelo medo e perseguição política impostos pela ditadura de extrema direita. Lisboa desse período, que detém destaque no romance, passava por transformações sob a atenção de Duarte Pacheco, então Ministro das Obras Públicas, além do controle de António Ferro — figura central da propaganda salazarista — e ocupava um lugar importante no coração do protagonista.
Ultimamente, porém, o ambiente político estava a mudar no país e, mesmo à distância, seguindo os eventos pela imprensa internacional ou brasileira, Diogo dera-se conta dessa mudança, que, no seu íntimo, se recusava a encarar de frente, tamanho era o seu sonho longamente alimentado de ver no Brasil a pátria dos descamisados da liberdade.
Diogo alimenta grandes expetativas em relação ao Brasil, um lugar que prometia a seu ver respostas para suas dúvidas e angústias. Sousa Tavares faz da travessia do Atlântico um capítulo à parte, destacando com detalhes a importância histórica da viagem feita pelo zepelim Hindenburg, cruzando a Alemanha até o Rio de Janeiro em 1935, perpassando por Fernando de Noronha, Recife e Salvador e que, no momento de sua aterrisagem, registrou-se para a história do primeiro voo aéreo non-stop Europa — Rio de Janeiro: quatro dias e quatro noites de viagem, exatamente cem horas e quarenta minutos, para os onze mil quilômetros percorridos.
Os contrastes entre o Novo e o Velho Mundo são quase palpáveis. A Europa fria e sem vida, cheia de ódio — a Alemanha se encontrava às vésperas da ascensão de Adolf Hitler ao poder e a Itália já sob o regime fascista de Benito Mussolini desde 1922 — dá lugar à paisagem que contempla a montanha, o calor e o canto dos pássaros”.
Sousa Tavares delineia bem o percurso vivido por seu protagonista em sua primeira visita à cidade do Rio de Janeiro, acompanhando o leitor ponto a ponto no percurso, fazendo-o imergir no contato com a cidade como o próprio protagonista. O que Diogo encontra ao chegar em solo brasileiro?
A viagem faz acima de tudo com que a personagem perca suas referências. Ao deixar para trás a Pátria Mãe, a esposa Amparo e seus dois filhos, inicia uma busca incessante para preencher esse vazio com sinais de físicos de aproximação, sinais esses que corporificam a esperança por ele nutrida por um Novo Mundo — seja águas mais claras seja gaivotas que indicam terra firme.
É sobrevoando o céu chuvoso carioca, ainda sem muita clareza, que contemplamos junto com Diogo as primeiras visões da cidade: o Pão de Açúcar, a Baía de Guanabara e as ilhas que a compõe, com destaque para a Ilha das Flores, que abrigava a primeira hospedaria de imigrantes do Brasil. É também nessa primeira aproximação que temos contato mais a fundo com seu mundo interior através das cartas que envia à esposa. Egoísmo, obsessão, ambição, medo — não existe uma resposta única que explique o seu profundo e sincero desejo de emigrar.
O zepelim pousa no Hangar de Santa Cruz, inaugurado nos anos 1930 na Zona Oeste da cidade por Getúlio Vargas. Próximo à baía de Sepetiba, o Aeroporto Bartolomeu Gusmão abrigava as famosas e maiores máquinas voadoras da história. Uma das primeiras coisas que Diogo nota ali é o ar puro, com um cheiro asfixiante de clorofila, que o deixa quase entorpecido, e o canto dos pássaros nas matas. Seria esse o Brasil que estava à espera há tanto tempo?
Começa então o seu percurso de 54 quilômetros até a Estação D. Pedro II, atual Estação Central do Brasil, perpassando a partir daí a Avenida do Mangue, hoje conhecida como Avenida Francisco Bicalho e a Avenida Beira Mar, enquanto tentava aprender o nome de todas as novas localidades que ia conhecendo. Essas são heranças do esforço pela modernização do Rio de Janeiro no início do século XX, através das reformas urbanas do Prefeito Pereira Passos e das campanhas sanitárias de Oswaldo Cruz.
Diogo não tem como se dar conta ainda, mas o trajeto é abrangente, o leva da Zona Norte até a Zona Sul, cruzando a cidade. Depara-se então, já no fim da viagem, com a Baía da Urca, onde pode contemplar novamente o Pão de Açúcar e a enseada de Botafogo, um dos maiores cartões-postais do Rio de Janeiro, até se instalar finalmente no Hotel Copacabana Palace.
Logo nesse primeiro contato, Diogo tem uma amostra da natureza tropical que impera na cidade, deparando-se com a mata logo em frente e aí começou a escutar a gritaria dos pássaros que vinha lá de dentro. Um raio de sol rompeu timidamente as nuvens e os primeiros pássaros, de todas as cores, começaram a levantar voo das árvores.
Diogo sabia tudo isso, que aprendera ao longo dos anos em que, desterrado em Valmonte e sem razão plausível para tal, desatara a ler tudo o que arranjava acerca do Brasil, até que o seu sonho de um dia lá chegar se tornara uma obsessão sem cura. E agora ali estava, acabado de chegar e já deslumbrado. Parecia impossível imaginar que ainda há poucas horas atrás viajava suspenso de um frágil balão que o trouxera de uma Europa fria e cinzenta, onde só parecia haver lugar para o ódio e para os extremismos, onde se afiavam espadas e se contavam exércitos, onde tudo parecia gasto e cansado, onde “os amanhãs que cantam” nada mais tinham para oferecer do que ditaduras, perseguições, guerras e o grito universal de “morte à liberdade.
A mudança de cenário e de vida dá a impressão que Diogo se encontra agora no paraíso. Sousa Tavares não deixa de dar ênfase a todos os novos cheiros, gostos e sons experienciados. Comendo banana e abacaxi — muito mais doce que os ananás dos Açores!
Agora, não: agora, vinha-lhe o cheiro a selva da montanha em frente, o bafo quente do ar onde os pássaros evoluíam nas correntes sem esforço algum, cascas de cocos deslizavam ao sabor das ondas em direcção à areia, a água era cristalina e envolvente e o Rio estava aos seus pés, à espera de ser colhido. Ou era ele que estava aos pés do Rio
A paisagem urbana é costurada nas páginas, mostrando como a cidade do Rio é única precisamente por unir suas maravilhas naturais com o “progresso”. Na Copacabana dos anos 1930 já existe a expectativa de uma cidade superpopulosa, com seus novos hotéis sendo construídos e já despontando “arranha-céus”. Caracterizado como romance histórico, ao acompanhar a trajetória do protagonista, Rio das Flores possibilita com que o leitor conheça em linhas gerais fatos marcantes da história da cidade, sempre buscando uma ambientação que permite que se sinta como se estivesse voltando no tempo.
Não é à toa que Diogo se hospeda no já famoso Copacabana Palace: o hotel já era o centro da vida social, política e cultura do Rio de Janeiro, a capital do país. Consequentemente, Diogo está se hospedando no coração do Brasil e tem ali o privilégio de se misturar com a nata da sociedade carioca. Copacabana traz consigo promessas. Com seu perfil inspirado no balneário mediterrâneo europeu, é o de mais atraente e moderno loteado da cidade nos anos 1930, já totalmente urbanizado.
ANDREATTA; Verena; CHIVARI; Maria Pace; REGO, Helena.
O Rio de Janeiro e a sua orla: história, projetos e identidade carioca.
Coleção Estudos Cariocas, n. 20091201, dez. 2009, p. 9.
No entanto, apesar das altas expectativas, o contato com o novo país não é ausente de estranhezas e problemas. Em uma carta para a esposa, que permaneceu em Valmonte, Diogo faz uma reflexão sobre a situação conturbada da política brasileira que, de forma semelhante a Portugal, também vivia sob uma ditadura.
Não digo que os assuntos se tenham complicado por aqui, mas é um país diferente e, embora a gente fale a mesma língua e haja por aqui muitos portugueses com quem falar e me aconselhar, a maneira como as coisas se fazem tem pouco a ver com o que se passa aí. E não é só saber como as coisas se fazem: é preciso conhecer as pessoas, estabelecer relações, criar uma rede de fornecedores fixos e de confiança, até criar amizades que, mesmo depois à distância, nos possam ser úteis. A acrescentar a isto e como já te referi, vim encontrar o Brasil numa situação política turbulenta e instável (será que há, no mundo inteiro, um país onde hoje se possa viver com tranquilidade e sem ser em ditadura?).
TAVARES, Miguel Sousa. Rio das Flores. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 346.
O Brasil continuava sendo uma alternativa para os portugueses em busca de uma vida melhor e o Rio de Janeiro o grande centro de emigração, ainda que o fluxo migratório tenha caído com a instauração do Estado Novo tanto brasileiro quanto português.
Depois da chegada da família real e de sua corte em 1808, uma grande leva de portugueses — em sua maioria provenientes do Norte — chega ao país no fim do século, concentrando-se, sobretudo, no Rio. Nos anos 1920, a cidade contava com 40% de sua população como sendo de origem portuguesa,
OLIVEIRA, Carla Mary S. O Rio de Janeiro da Primeira República e a imigração portuguesa: panorama histórico. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, n. 3, p. 149-168, 2009, p. 150.
uma paisagem humana que se fundia com a dos cariocas e de outros imigrantes que também aportaram na capital: sírio-libaneses, judeus, italianos e espanhóis.
Ainda assim, é no Brasil que Diogo decide ficar e recomeçar a vida. Se sua vinda inicialmente tem como intuito expandir os negócios de sua empresa de exportação, no decorrer do romance o país se torna o lugar fixo de nosso protagonista. Amparo se torna parte do passado, assim como Portugal. Sua trajetória no país começa na capital, mas logo chega até o Vale do Paraíba onde, de forma irônica e análoga a seus antepassados lusitanos, Diogo também se torna proprietário de terras. É esse o local que ele e sua nova esposa, a brasileira Benedita, escolhem para recomeçar suas vidas e fazer parte de um novo capítulo da história do Brasil.