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Viagens na terra de Manuel António Pina: Porto e arredores

Viagens na terra de

Manuel António Pina:

Porto e arredores
As minhas dúvidas, até elas te pertencem? 

PINA, Manuel António. Todas as palavras – Poesia Reunida (1974-2011).
Porto: Assírio & Alvim, 2013 [1ª ed.: 2012]. p. 135

Manuel António Pina é um poeta de múltiplas grafias.
Ora, que frase de efeito para dizer algo tão simples: o escritor emaranha tempos (historiografias), vidas (biografias), referências literárias (bibliografias), e seus versos frequentemente se mostram um jogo de caça às pistas, que residem tanto em outrem quanto, e talvez principalmente, na própria obra. E ficamos nós, leitores, saborosa mas também um tanto desesperadamente, avançando e retrocedendo por essa escrita, sem poder esquecer algo que encontramos logo nas primeiras páginas de sua obra poética completa, editada em volume único pela Assírio & Alvim: “Voltamos sempre ao princípio de tudo, estamos perdidos!”. Fio de Ariadne muito do duvidoso, esse verso condensa, no entanto, algo fundamental na poesia de Pina, atravessando-a do início ao fim, que é uma acepção nada convencional de tempo e de espaço. Só para dar um gostinho, seguem alguns versos:

o que regressa nunca saiu do mesmo sítio, e só esse regressa
ao mesmo sítio, no limiar da sua Morte,
encontrando todas as coisas no mesmo sítio
e parando no princípio de tudo.
Para aqui chegar tive que percorrer tudo 

PINA, Manuel António. Todas as palavras – Poesia Reunida (1974-2011).
Porto: Assírio & Alvim, 2013 [1ª ed.: 2012]. p. 81

Por aí já se vê que, das grafias de que lança mão António Pina, a geografia não é das mais fáceis de se mapear. Não são muitas as referências a locais em sua obra, e a existência concreta de alguns deles é, para dizer o mínimo, incerta; ademais, alguns deles não são, bem… Exatamente turísticos. Mas, por graça e gosto da aventura, lancemos um curioso Pina Tour – e comecemos logo.

Nosso primeiro ponto de parada será a “Atlética Funerária, Armadores, Casa Fundada em 1888” – não, esperem, isto não fica bem em nosso roteiro. Aliás, o destino indicado no poema “Farewell Happy Fields” provavelmente nem exista dele não encontramos registro, e a coincidência do ano de fundação com o do nascimento de Fernando Pessoa… Dá tratos à bola; mas eles não vêm ao caso. Não aqui.

Portanto, inauguremos de forma mais amena essa viagem Tejo arriba, porque é sobretudo pelo Porto – “terra onde Pina não nasceu mas que fez sua” – que vamos ficar.

Porto: panorama da Ribeira e da Ponte Luís I

Abramos à sorte nosso guia, e o que aparecer primeiro será nosso destino. E ele é…

Um café. Ok, não chega a ser um mau começo – ainda mais quando se rasga à nossa frente a bela paisagem da Praia do Molhe. Sinalizada com bandeira azul, que indica excelente balneabilidade, ela deve o nome ao seu molhe – estrutura que avança água adentro (no Brasil, mais comumente chamada de “quebra-mar”). Aqui, degustamos um dos pratos típicos do Porto – que, no entanto, se chama “francesinha”. O nome, dizem, tem sua motivação em qualquer história acerca de mulheres, libido e algum machismo. Mas o sanduíche é a maravilha, recheado com uma mistura de carnes – bife, linguiça, salsicha, presunto, haja proteína – e todo coberto por queijo derretido e um molho picante, podendo ser coroado por um ovo e acompanhado de batatas fritas.

Enquanto experimentamos o que tem tudo para se tornar um vício, lemos os versos de “Café do Molhe”, e um garçom das antigas nos conta que, nos anos 50, havia na esplanada um estabelecimento com este nome – que, depois virou o Bar do Molhe, e, ainda mais tarde, Bar e Restaurante do Molhe. Convidamos nosso novo amigo para estar um pouco mais conosco, a escutar o poema em que o sujeito, de tão embebido na figura da companheira de mesa, encontra sérias dificuldades para se concentrar em algo mais:

Perguntvavas-me
(ou talvez não tenhas sido
tu, mas só a ti
naquele tempo eu ouvia)

porquê a poesia,
e não outra coisa qualquer:
a filosofia, o futebol, alguma mulher?
Eu não sabia

que a resposta estava
numa certa estrofe de
um certo poema de
Frei Luis de Léon que Poe

(acho que era Poe)
conhecia de cor,
em castelhano e tudo.
Porém se o soubesse

de pouco me teria
então servido, ou de nada.
Porque estavas inclinada
de um modo tão perfeito

sobre a mesa
e o meu coração batia
tão infundadamente no teu peito
sob a tua blusa acesa

que tudo o que soubesse não o saberia.
Hoje sei: escrevo
contra aquilo de que me lembro,
essa tarde parada, por exemplo. 

Aqui, neste café na Praia do Molhe, achamos graça na perturbação que um simples decote é capaz de causar. Mas, recolhidos os talheres, passados os cartões, vamos nos perguntando silenciosamente: em nosso diário de viagem, escreveremos para melhor lembrar ou esquecer? Caminhamos e cismamos: em que medida nos entregamos, em que medida resistimos – ao tempo, aos sentimentos, às recordações? Quais as transformações que nossa memória e nossa imaginação vão operar nesta tarde, em que deixamos o tempo correr a rédea solta?

Lemos um pouco mais de Manuel António Pina – agora, sob a Pérgola da Foz, que tem esse nome por ficar perto do encontro do rio Douro com o oceano. Um dos mais icônicos cartões-postais do Porto, a construção tem colunas amarelas e estilo neoclássico. Aqui, desse miradouro privilegiado para o Atlântico, que belo cenário se nos descortina! Não à toa, toda a paisagem urbana volta seu rosto para o mar – casas do século 19 e construções modernas que abrigam a elite burguesa; os bares, as esplanadas, os jardins.

Pérgola da Foz sobre a Praia do Molhe

Por aqui há um bocado de edificações assinaláveis – passeemos: Farol de São Miguel-o-Anjo, Igreja Matriz; vemos o Douro a deslizar e cantarolamos Chico Buarque: “Passam paisagens furta-cor / Passa e repassa o mesmo cais / Num mesmo instante eu vejo a flor / Que desabrocha e se desfaz”. O rio é um símbolo da cidade. Nasce na Espanha e atravessa o norte de Portugal. Não seria má ideia dar umas voltas de barco e ter outra perspectiva da paisagem portuense, alguém sugere. Na Ribeira, há opções de saídas em horários e com rotas diversas, outro apoia. Cadê o guia, para conferirmos isso? Certo, deixe-me ver. Porto. Douro… Encontro do rio com o mar…

Um de nós anotou, exatamente aqui, uma remissão para outro poema do Pina. Estamos no Forte de São João Baptista da Foz, do século XVI; mas a data que passa a nos interessar é outra, bem mais recente; pois chama-nos a atenção a inscrição “Foz do Douro, 22/1/2005”, que encerra o poema “Eugénio de Andrade no seu leito de morte”. Belíssimo. Tristíssimo:

Na mão de Ana o iogurte não
iluminava, escurecia,
comunhão ajoelhada
no fundo do coração do dia

dividido onde, desperto, ele dormia.
O movimento da colher embalava-o
como uma música que quase se ouvia
neste mundo ou um colo que o adormecia.
[…] 

Quanta ternura cabe em um só texto? Desse olhar humano, tão profundamente humano para o outro, levantamos nossos próprios olhos úmidos. Morremos e vivemos um pouco mais agora. Depois…

Depois, embarcamos em uma réplica dos “barcos rabelos”, que, até a década de 1960, transportavam pipas de vinho pelo Douro. Enquanto o condutor se prepara para zarpar, desdobramos mais nosso guia. Sob o acabamento vinílico, uns quadrados rebrilham, reparem. Parecem fotografias de pinturas; ou de esculturas; de instalações artísticas. Mas do que se trata?

Do ateliê de Alberto Carneiro. Há um box explicativo: o escultor nasceu e passou boa parte de sua vida na aldeia de São Mamede do Coronado, concelho da Trofa (pertencente ao distrito do Porto). Ainda criança, trabalhou em uma oficina de imagens sacras, desenvolvendo assim a habilidade com as mãos. Sua obra revela um profundo envolvimento com o contexto rural, o homem do campo, a natureza e a filosofia oriental (Zen, Tantra, Tao).

obra de Alberto Carneiro

Nas imagens que vemos, há troncos. Raízes. Cipós. Vazios. A foto que o guia destaca traz galhos em feixe que se unem em cima e se irradiam embaixo. Formam uma árvore – mas uma árvore de ponta-cabeça, que culmina (ou principia?) no que parece ser um quadrado de papel apoiado no piso. Sobre ele, repousam algumas folhas – estariam elas na copa dessa árvore, viva? Ou, já caídas, seriam seus restos mortais? A legenda nos informa o título da instalação: “Árvore da vida”, uma das mais conhecidas do escultor.

Pensamos em Pina; nas interrogações que nos assaltaram à saída do café da Praia do Molhe, sobre nossos processos de memória, esquecimento, imaginação. Olhamos de novo para a “Árvore da vida”, sem saber distinguir onde ela nasce e onde morre. Porque temos o fio de Ariadne (aquele, duvidoso) ainda nas mãos, lembramos o primeiro verso lido nesta viagem: “Voltamos sempre ao princípio de tudo, estamos perdidos!”. Embaralhar chegada e partida, início e fim parece-nos, então, um procedimento comum a Manuel António Pina e a Alberto Carneiro (pelo menos, no pouco de sua obra que, por agora, podemos conhecer); e também a nós, as errâncias.

Decidimos: visitaremos o ateliê do artista amanhã mesmo. Sobre ele, o jornal português O Público certa vez escreveu: “Avança-se pelo mundo de Alberto Carneiro como por uma floresta. Às escuras, tropeçando em árvores, raízes e pedras, até aparecer uma clareira e o céu explodir na luz desgovernada de uma manhã de Inverno”.

Uma coisa leva a outra: do jornal, somos transportados para a poesia. E lemos “No atelier de Alberto Carneiro”:

A árvore da vida cresce de cima para baixo
iluminada pelo Sol
(DO ZOHAR)

1.
Na floresta de Alberto Carneiro
as árvores crescem para o passado,
para o primeiro, para o incriado,
são frágeis seres feitos de

ascendente matéria
procurando a terra,
povo rumoroso e pagão
adorador do chão.

O escultor é o seu pastor;
tomai, comei, este é o seu corpo:
raízes, braços, tronco,
conhecimento, paixão, ressurreição.

2.
A mão tacteando o papel
tacteia o próprio tacto,
como se o papel fosse a pele
de um corpo menos que corpo, intacto,

que a mão levemente aflorasse
acordando paisagens que são
antes pensamento que imaginação,
onde, imaginando-se, o pensamento parasse.

Também a mão é uma árvore
crescendo para dentro,
e o desenho o instrumento
de esclarecimento da paisagem. 

Levantamos os olhos e contemplamos o casario da Ribeira. Aproximamo-nos do cais. Tudo vai fechando um sentido – ainda não sabemos qual, mas vai. Voltamos uma última vez os olhos para aquelas formas inacreditáveis esculpidas em madeira que aparecem nas fotografias. Onde termina a mão da natureza e começa a do homem? Relemos os versos de Pina, e a dúvida aumenta: onde termina a escultura e começa a poesia?
A Ribeira, vista de Vila Nova de Gaia

Sentimo-nos com boa disposição – andamos a falar de arte, e isso faz mesmo bem. Vamos bater perna no centro histórico “ver as modas”, como diriam as avós. Um palimpsesto: a cada passo pode-se testemunhar vestígios de diferentes épocas, desde as origens medievais da cidade. Não à toa, o conjunto urbano foi classificado como Patrimônio Mundial pela UNESCO.

Alcançamos a Baixa do Porto, que rodeia o centro histórico e nos revela um mosaico arquitetônico, mercados tradicionais – como o Bolhão –, galerias de arte, salas de espetáculo. A noitinha cai; do Sol, os metais e vidros de lojas, restaurantes e bares reverberam apenas saudades. Vamos escolhendo onde tomar a primeira taça de vinho – mas, opa, escutam algo? Eu escuto: o som de um violino, de onde vem?… Quem o toca, e como?…

“O braço”

O braço que falta ao mendigo é que o sustenta.
É ele que na sombra mexe os cordelinhos
de milhões de misteriosos de dedinhos
com que o mendigo se coça e se alimenta.

O cego toca o violino na esquina
da Rua de Santa Teresa e da Galeria de Paris

Entre o cego e a música o braço se coloca,
tão célere que o cego não entende
dos braços da música que troca
qual o que o abraça qual o que ele estende.

A falta é o que sustenta – poderíamos viajar nessa ideia, mas (pelo menos) aqui o percurso é outro, e ele passa por um palpitante cruzamento portuense. Primeiro, vejam a Galeria de Paris: a rua foi aberta no comecinho do século 20, e tinha no projeto original uma cobertura envidraçada, à moda de alguns bulevares franceses – daí o nome. Nessa região já houve uma profusão de armazéns de tecidos, dos quais poucos resistem até hoje. E eles valem a visita, nem que seja só para olhar seus antigos vitrais, colunas de ferro e bancadas de madeira. Mais numerosas são as casas em estilo Arte Nova, como a – famosa – localizada no número 28, o Café Majestic, considerado um dos mais bonitos cafés do mundo, e a Livraria Lello, que teve a fachada restaurada em 2016 e é nada menos do que deslumbrante. Com seus vitrais imensos e primorosos, platibandas rendilhadas, coruchéus, desenhos, a riqueza de detalhes lindíssimos, a escadaria vermelha em formato de exótica flor e as prateleiras neogóticas, a livraria inspirou J. K. Rowling a criar Hogwarts, do Harry Potter.
livraria Lello

Café e livros, pode haver combinação melhor do que essa? Pode: acrescentemos o vinho, afinal é à procura dele que estamos aqui, na Galeria de Paris. Ao longo de sua extensão, até a esquina com a Rua Santa Teresa, mencionada pelo nosso poeta, multiplicam-se bares e restaurantes que fervem à noite. O fenômeno é recente – até poucos anos atrás, nossa rua e os arredores eram bastante pacatos. Mas uma coisa puxa a outra, um bar atrai outro (escolhemos o nosso!), que faz um show, a notícia corre, outros bares e restaurantes chegam, mais eventos pipocam – e mais gente deságua na baixa do Porto. Como nós.

Vinho, todo mundo? Ótimo. Tim-tim.

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Faixas horizontais (muro ou grade), frequentemente decorativas, que emolduram a parte superior de edifícios, com a função de esconder os telhados.
Remates em forma cônica ou piramidal encontrados em torres.
Estilo que marcou o fim do século 19 e início do 20, caracterizado por trabalhos minuciosos em portões, varandas, escadas e aspectos da fachada; os detalhes muitas vezes desenham motivos florais, conferindo leveza a materiais mais duros, como a (inovadora, na época) massa de cimento.
PINA, Manuel António. Todas as palavras – Poesia Reunida (1974-2011). Porto: Assírio & Alvim, 2013 [1ª ed.: 2012]. p. 45. Respeitamos a apresentação gráfica que consta na edição da Assírio & Alvim, bem como a repetição da preposição “de” no terceiro verso.
Papiro ou pergaminho cujo texto primitivo foi raspado para dar lugar a outro. As marcas do texto anterior nunca são totalmente apagadas; assim, cada escrita se faz sobre os vestígios das precedentes, e os sinais do passado acabam sempre convivendo com os do presente.
PINA, Manuel António. Todas as palavras – Poesia Reunida (1974-2011). Porto: Assírio & Alvim, 2013 [1ª ed.: 2012]. p. 374-375.

PIMENTA, Paulo. Na floresta de Alberto Carneiro [fotogaleria]. In: O Público, ed. de 15 de outubro de 2014. Disponível em: https://www.publico.pt/2014/10/15/fotogaleria/territorio-340257.
Consultado em: 3 mar. 2018.

PINA, Manuel António. Todas as palavras – Poesia Reunida (1974-2011). Porto: Assírio & Alvim, 2013 [1ª ed.: 2012]. p. 370-371.
Que tal escutar o “Xote da navegação”? Música e letra aqui: www.letras.mus.br/chico-buarque/129854/
Confira um relato saboroso sobre o Café do Molhe e arredores em: https://paginas.fe.up.pt/~sfeyo/Docs_SFA_Publica_Conferences/SFA_OP_Reg_20121101_Porto_Sentido.pdf
PINA, Manuel António. Todas as palavras – Poesia Reunida (1974-2011). Porto: Assírio & Alvim, 2013 [1ª ed.: 2012]. p. 240-241.
Leia histórias emocionantes, curiosas e engraçadas sobre o poeta, contadas por amigos e família, em: https://www.dn.pt/artes/interior/manuel-antonio-pina-estao-todos-a-sua-espera-8926047.html
PINA, Manuel António. Todas as palavras – Poesia Reunida (1974-2011). Porto: Assírio & Alvim, 2013 [1ª ed.: 2012]. p. 166-167.
Fio condutor, que nos ajuda a seguir um raciocínio ou uma história sem que nos percamos pelo caminho. A expressão vem do mito de Ariadne: a bela princesa de Creta teria dado ao seu amado Teseu um novelo, que deveria ser desenrolado enquanto este percorresse um labirinto para derrotar o minotauro. Vencida a criatura com cabeça de touro e corpo de homem, Teseu só precisaria seguir o fio desenrolado para encontrar a saída do labirinto.
PNA, Manuel António. Todas as palavras – Poesia Reunida (1974-2011). Porto: Assírio & Alvim, 2013 [1ª ed.: 2012]. p. 21.
Agradecemos ao artista plástico Gabriel AV as fotos de Covilhã.