Lisboa, suas leis revisitadas na poesia de Luís Quintais
Lisboa, suas leis revisitadas na poesia de
Luís Quintais
QUINTAIS, Luís. “Lisboa”. A noite imóvel.
Porto: Assírio & Alvim, 2017, p. 121,122.
Descrevo Lisboa. Vigio-a num bloco de notas,
imensa, distinta daquilo que, aparentemente,
vem ter comigo através do ilusório legado
dos sentidos e da treva que por dentro os toca.
Há um silêncio e uma presença que não se conhecem.
Primeira anotação: «Lisboa nunca se conhece.
Teria de olhar para trás, para a acumulada memória.
Alguém que não esquecesse, seria essa a aposta.
Não: não quero nada
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer. […]
Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!
PESSOA, Fernando. “Lisbon revisited (1923)”.
Poesias de Álvaro de Campos. Porto: Assírio & Alvim, 2013, p. 271, 272.
Segunda anotação: «Em Londres foram recenseadas
cento e muitas línguas. Aqui algumas poucas menos.
Sabe-se como é, pede-se grandeza, recebe-se a escória dos séculos.
QUINTAIS, Luís. “Três anotações: Lisboa, suas leis revisitadas”.
Arrancar penas a um canto de cisne. Poesia 2015-1995.
Porto: Assírio & Alvim, 2015, p. 670-671
Terceira anotação: «Simetria alheia à oratória das pedras.
Pretéritos. Aparas de sombra.»
QUINTAIS, Luís. “Três anotações: Lisboa, suas leis revisitadas”.
Arrancar penas a um canto de cisne. Poesia 2015-1995.
Porto: Assírio & Alvim, 2015, p. 670-671.
A tua cidade, a minha antiga cidade,
agora de muros riscados
pelo indecifrável gume do graffiti,
como se a luz intransparente
nos tivesse queimado por dentro.
Que dizer dessa mão cruel
e escrevente?
QUINTAIS, Luís. “Sophia em Lisboa, Ainda”.
Arrancar penas a um canto de cisne. Poesia 2015-1995.
Porto: Assírio & Alvim, 2015, p. 149.
Digo:
«Lisboa»
Quando atravesso – vinda do sul – o rio
E a cidade a que chego abre-se como se do seu nome nascesse
Abre-se e ergue-se em sua extensão nocturna
Em seu longo luzir de azul e rio
Em seu corpo amontoado de colinas –
Vejo-a melhor porque a digo
Tudo se mostra melhor porque digo
[…]
Digo o nome da cidade
– Digo para ver
MELLO BREYNER ANDRESEN, Sophia. “Lisboa”. Obra Poética,
Porto: Assírio & Alvim, 2015, p. 719
Que dizer-te?
Um silvo flecte o ar.
É a tua voz distorcida,
dobrada pelo eco,
o da descrença.
QUINTAIS, Luís. “Sophia em Lisboa, ainda”.
Arrancar penas a um canto de cisne. Poesia 2015-1995.
Porto: Assírio & Alvim, 2015, p. 149.
A voz do sujeito, formada pelos ecos deste legado de vozes poéticas, retoma e ao mesmo tempo distorce a voz de Sophia, sendo nesse desvio, nessa distorção que se delineia sua própria voz já sem esperanças, como se a descrença que ela carrega vergasse o canto da tradição, prolongando o legado poético de forma mais rasteira, mais profana.
Portanto, falar de Lisboa na poesia de Luís Quintais é mobilizar um acervo literário, promovendo um diálogo intertextual que vai compondo um itinerário poético da cidade. Esse percurso leva-nos à “Rua Castilho” e ao poeta António Feliciano de Castilho (1800-1875).
Eu compreendia o poder da toponímia. Rua Castilho, escrevia-se, e o vírus da linguagem percorria o labirinto da história e da circunstância que fazia determinar-lhe os sentidos. Castilho fora um poeta cego envolvido em polémicas cuja esterilidade revelava o perfil de homens que juram mudar os seus tempos por reacção ao tempo de outros homens. Hoje, porém, é a figura de um poeta cego o que faz reverberar os códigos extremos, é o que faz desfilar a tradição e o que interpela o vazio que a tradição nos legou. […]
Talvez Castilho se esquecesse que a solidão face ao arbítrio das ruas que se cruzam e apelam a nomes que se apagam nos cadernos do futuro nos reserva mais aventura que o sacramento entre homens de letras presos à sua ilusória relevância. O que se apaga deixa um vestígio de treva dentro de si e um cheiro a madeira ou a terra calcinada que nos persegue. A imoral, porque tão vaga, toponímia no coração de uma cidade detém mais lições que o proselitismo dos inflamados versos
QUINTAIS, Luís. “Rua Castilho”.
Arrancar penas a um canto de cisne. Poesia 2015-1995.
Porto: Assírio & Alvim, 2015, p. 437.
São mutuamente exclusivas as ordens da confissão e da poesia. Assim nos disseram os modernos. Sejamos modernos, pois. Mas quando vejo a minha mãe a subir (passo medido pelo cansaço e pela fraqueza) a Rua Castilho, a rua onde cresci e onde o mundo parece ter crescido desmesuradamente para a minha medida de homem acostumado às alturas (vivia num quinto andar que me parece agora um décimo), quando vejo a minha mãe de corpo pesado a subir a rua em direcção ao meu encontro, parando uma, duas vezes, passando as mãos pelo rosto suado (afinal estamos no pino do verão e a rua foi sempre soalheira, ou pelo menos soalheira deste lado em que a minha mãe sobe, o lado que habitámos após o nosso regresso das Áfricas, com o problema da habitação e tudo isso que parecia desesperar os enteados do Império), quando vejo a minha mãe subir a rua onde a minha lembrança dela estaca e se precipita no vórtice da ilegislável brandura (a que terá feito Santa Teresa levitar ou algo entre a pura irrealidade e a pura realidade que todo o poema deveria sitiar), sei que os modernos nos pouparam ao infortúnio da confissão, mas que nos roubaram o idioma em que a luz de verão se faz de novo, como o princípio que quero descrever certeiramente sem que lhe saiba o tema ou a palavra que o torna claro.
QUINTAIS, Luís. “Il faut être absolument moderne”.
Arrancar penas a um canto de cisne. Poesia 2015-1995.
Porto: Assírio & Alvim, 2015, p. 438.
Este poema pode ser lido no prisma do embate com a tradição e com o legado moderno, evidenciando o conflito entre impessoalidade e subjetividade. A escrita carregada de uma herança moderna, como evidencia o título “Il faut être absolument moderne”, referência à obra Une Saison en Enfer (1873), do poeta francês Arthur Rimbaud, surge infiltrada de relatos confessionais. Mas qual a relação dessa reflexão sobre projetos de escrita poética e a cidade de Lisboa? Lisboa é sobretudo linguagem! Imaginário recriado pelas palavras, redito e sitiado a partir dos resíduos de uma memória coletiva e individual, de um legado que é literário e histórico, mas que também colhe afetos, vivências da vida comum e quotidiana.
A imagem da mãe a subir a rua é lembrança remota que vai e vem no próprio movimento do texto, nas frases longas e inconclusas, culminando em imagem aberta, inacabada, assim como se dá o movimento repetitivo da memória: um constante reiterar que inscreve e difere, revisita, cria lugares, idioma, que dão ao sujeito uma possibilidade de nomear – ainda que as palavras sejam frágeis – e um sentimento de pertença – ainda que os lugares estejam sempre ameaçados de desaparição.
Lisboa, entre o familiar e o estranho, por um lado, surge como abismo entre o sujeito e seu lugar, seu idioma, impossibilitando a apreensão das imagens e evidenciando um espaço subjetivo devastado, como uma “morada que se espalha”; mas, por outro lado, Lisboa não deixa de afetar, de invocar relações e sentidos, de possibilitar o ato de dizer, mesmo que seja um ato balbuciante para falar de um tempo perdido. Um ato de linguagem que recolhe “a poeira que lhe sobrou depois do esquecimento”.