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Paisagens integradas no romance Simá – Romance histórico do Alto Amazônas (1850), de Lourenço de Araújo e Amazonas

Paisagens integradas no romance Simá – Romance histórico do Alto Amazônas (1850), de

Lourenço de Araújo e Amazonas

Suponde-vos em viagem no Amazonas. A vossos olhos deslumbrados se ostentam majestosas de um e outro lado suas margens, guarnecidas d’elevado arvoredo, que por efeito de sua densidade, como duas muralhas de verdura se estendem até o horizonte. Este aspecto, apenas interrompido por algumas insignificantes colinas, que todavia guardam entre si distâncias de dezenas de léguas, importam uma monotonia, que cresce de ponto na estação do inverno, ou enchente do rio, quando pouco, ou contrário o vento, e excessiva a corrente, sois obrigado muitas vezes a avistar ainda um mesmo objeto durante oito dias consecutivos. 

AMAZONAS, Lourenço de Araújo e. Simá, Romance do Alto Amazonas. Recife: Tipografia Lemos e Silva, 1850, p.1.

Imagem do Rio Negro.
Creative Commons Attribution-Share Alike 4.0. Fonte: https://commons.wikimedia.org/w/index.php?search=amazonia+&title=Special:MediaSearch&go=Go&type=image

A paisagem amazônica tem sido imaginada desde o século XVI como exuberante repositório de diversidade animal e vegetal. A abertura do romance Simá apresenta um convite ao leitor a percorrer o Amazonas: “suponde-vos em viagem no Amazonas. A vossos olhos deslumbrados se ostentam majestosas de um e outro lado suas margens, guarnecidas d’elevado arvoredo, que por efeito de sua densidade, como duas muralhas de verdura se estendem no horizonte”.

AMAZONAS, Lourenço de Araújo e. Simá, Romance do Alto Amazonas. Recife: Tipografia Lemos e Silva, 1850, p.1.

Este início indica-nos o quanto a paisagem é determinante na obra, havendo alternância entre ações e descrições de paisagens, sendo que, em alguns casos, prevalece a descrição. Em seguida, tem-se a referência a locais abandonados e a explicação de que estes eram conhecidos como taperas e que o termo provinha da língua tupi. No local em que se passa a narrativa, teria existido uma povoação destruída durante conflito entre nativos e colonos por causa de uma jovem chamada Simá. O autor/narrador descreve também uma antiga chácara na qual ainda se podiam ver árvores frutíferas. Esse local seria o Sítio do Remanso no qual se passa parte da intriga do romance em questão. O autor alude ainda que Francisco Xavier Ribeiro Sampaio teria mencionado, em seu Diário da viagem, em visita e correição das povoações da capitania de S. José do Rio Negro fez o ouvidor e intendente geral da mesma, no ano de 1774 e 1775, um conflito entre o povo Manau e colonos portugueses que levara à destruição de duas antigas aldeias naquela região. Ao falar da destruição do local, que se dera por causa de Simá, compara o acontecimento à guerra de Tróia, iniciada por causa de uma outra mulher, Helena.

A história tem início quando Marcos, um nativo Manau, recebe em sua casa o regatão português, Régis, que rouba seus armazéns e viola sua filha, Delfina, deixando-a grávida. Envergonhado, o nativo decide deixar seu sítio, indo viver em outra região. Delfina morre no parto. Marcos cria a neta, Simá. Depois de alguns anos, Régis retorna. Apaixona-se por Simá e provoca uma guerra com a nação indígena Manau da qual provém Domingos, noivo de Simá. Isso ocorre porque ele inventa que a família de Simá teria abandonado o catolicismo e prova disso seria sua festa de compromisso com Domingos, um nativo. Durante o noivado, houveram ritos manauara, o que causa a ira dos colonos portugueses que viviam nas povoações de Lamalonga e Santa Isabel.

Prospecto da povoação de Santa Isabel, 1785. Período colonial. Desenhista: José Joaquim Freire. Disponível em Brasiliana iconográfica: https://www.brasilianaiconografica.art.br/obras/17415/prospecto-do-lugar-de-santa-izabel

Apesar de descrito por meio de adjetivos que indicam grandiosidade da natureza (“E a igarité envolta na densidade do sombroso arvoredo…” AMAZONAS, Lourenço de Araújo e. Simá, Romance do Alto Amazonas. Recife: Tipografia Lemos e Silva 1857, p.55. , o espaço da obra é o da ruína de antigas povoações nativas e de colonos, sítios bem providos de plantações, lugares míticos.

Além do fato de a narrativa ser fundada na paisagem em ruínas, também surgem outros espaços no romance, como os míticos, por exemplo, locais onde teriam ocorrido fatos relacionado a uma dada questão, no caso do romance Simá, ao amor trágico. Há também espaços marcados por disputas coloniais por território (Lamalonga e Santa Isabel, onde vivem colonos portugueses e nativos e espaço que disputam) trabalhadas pelo homem e povoadas (sítios, plantações, casas), além do tópico da cenário propriamente dito.

O primeiro tipo de paisagem, as ruínas, surge na narrativa com a finalidade de estabelecer ligação entre enredo e espaço:

E alguns anos depois podia-se perceber na grenha da tapera, além das ruínas de algumas casas, os traços de um jardim, e pela disposição de árvores frutíferas, como laranjeiras, romeiras, limoeiros, e, algumas alamedas (…) 

AMAZONAS, Lourenço de Araújo e. Simá, Romance do Alto Amazonas. Recife: Tipografia Lemos e Silva 1857, p. 4.

Há referência ainda a locais que indicam a existência de espaços povoadospróximos aos rios da região, como no caso em que os vizinhos de Marcos desejam encontrá-lo após sua mudança, cogitando-se que ele estaria no Solimões, Amazonas, Quary, Rio Negro, Ilha do Marajó ou mesmo que tivesse atravessado a fronteira até o Peru e ou a Bolívia.

Além do termo tapera, o narrador também instrui o leitor sobre o significado do termo “remanso” também ligado à paisagem aquática da região amazônica:

Remanso se chama aquela parte do rio, em que ele cessando de correr em um leito inclinado, o faz em um horizontal, e por isso com menos impetuosidade, do que até então: e também a parte dele, ordinariamente enseada, inferior a uma saliência, pela qual passa com suma velocidade, que perde logo, e até remonta encostado a terra até de novo encontrar a corrente na proximidade da ponta, por que já passara 

AMAZONAS, Lourenço de Araújo e. Simá, Romance do Alto Amazonas. Recife: Tipografia Lemos e Silva 1857, p. 72.

Remanso é também o nome do sítio no qual Marcos/Severo se estabeleceu com sua neta Simá, depois de abandonar sua antiga residência. Ali havia plantas frutíferas e uma casa descrita como confortável e decorada com objetos produzidos pelo povo Manau. Lá se desenvolve boa parte da intriga.

Essas menções dão ao leitor a ideia de que se trata de um espaço amplo no qual as personagens poderiam se locomover. Quando Severo/Marcos se muda sem informar a ninguém para onde está partindo, os vizinhos cogitam que ele se mudou para perto de onde, supostamente, viveriam as guerreiras amazonas, surgindo na narrativao espaço mítico: “Outros que determinado por sua filha, cujo entusiasmo era conhecido, acedera a ir ela reunir-se as filhas da Ycamiabas, acompanhando-a ao Nhamundá, e a estabelecer-se ele mesmo nas imediações daquela tribo feminina (…)” AMAZONAS, Lourenço de Araújo e. Simá, Romance do Alto Amazonas. Recife: Tipografia Lemos e Silva 1835, p. 57.

Mulheres da Amazônia na Marcha da Mulheres Indígenas em 2019.Creative Commons Attribution-Share Alike 2.0. Fonte: https://commons.wikimedia.org/w/index.php?search=povos+indigenas+amazonas+&title=Special:MediaSearch&go=Go&type=image:

Também encontramos explicação mítica (ligada a uma paisagem natural) para o desfecho do romance, visto que tem como fundo uma narrativa da literatura oral indígena segundo a qual dois amantes que cruzassem o olhar num determinado local, estariam condenados à separação. O local era nomeado Jacamim. Trata-se de uma montanha que se teria originado da união de um pajé com o mesmo nome e sua amada, Potira. Na impossibilidade de se unirem, os amantes decidem se sacrificarem lançando-se de um precipício. No local, surgem duas grandes rochas e uma lagoa com propriedades curativas. Todavia, os amantes que ali cruzassem o olhar não permaneceriam juntos:”. – Jacamim! Jacamim é uma serra, ou antes montanha de configuração piramidal, na margem direita do Rio Negro entre as Povoações de Santa Izabel e Lamalonga, 130 leguas acima de sua foz.” AMAZONAS, Lourenço de Araújo e. Simá, Romance do Alto Amazonas. Recife: Tipografia Lemos e Silva1857, p. 189.

Serra Jacamim localizada às margens do Rio Negro, é constituída de pequenas montanhas e situa-se a 70 km da cidade de Santa Isabel do Rio Negro. Foto de Daniele Gidsick disponível em http://oeldoradoeaqui.blogspot.com/2015/11/serra-do-jacamim-santa-isai

Também se identificam paisagens marcadas por disputas coloniais por território no romance como é o caso daquelas estabelecidas entre portugueses e espanhóis pela região amazônica ou entre os lusos e os povos da floresta:

Enquanto que os portugueses estendiam sua ocupação do Oyapok ao Prata, disputando terreno palmo a palmo as Nações valentes […]”, “[…] os espanhóis dirigidos pelos jesuítas exploraram toda a costa oriental dos Andes […], explicando que as cordilheiras dividem o país entre a parte alta e parte baixa, esta alagada, aquela produtiva e aurífera. 

Mapa do Amazonas (Foto: ©Archivio Fotografico Società Geografica Italiana)
A antiga perseguição dos Muras (2) Tróia, que aos primeiros estabelecimentos Portugueses importou horroroso flagelo? e a praga do Carapaná (3) outro, senão tão fatal, não menos incomodo, obrigando as povoações e estabelecimentos rurais a continuas mudanças, ocasionaram as taperas, que em outro tempo se notavam no Amazonas e Solimões.

AMAZONAS, Lourenço de Araújo e. Simá, Romance do Alto Amazonas. Recife: Tipografia Lemos e Silva p.3.

Indígena Mura, Coleção Alexandre Rodrigues Ferreira [caixa explicativa], desenho feito em 1772. Fonte: Biblioteca Nacional (Brasil).

Como se nota nos fragmentos citados, há uma relação entre a posse do espaço e a catequização, “civilização” dos naturais para que aquele local passasse a ser parte do império português na América.

Ainda considerando a questão colonial, há referência a situações de fronteira que opõem a cidade ao campo. Por exemplo, o autor descreve a festa do noivado de Simá e Domingos cuja decoração, tipicamente indígena, foi feita com penas de pássaros. Bebidas de açaí e cacau foram servidas em cuias de origem manau. Na sequência, o autor afirma que, possivelmente, em cidades litorâneas, onde se cultivavam usos inadequados a um país tropical, certamente se criticaria a festa descrita. AMAZONAS, Lourenço de Araújo e. Simá, Romance do Alto Amazonas. Recife: Tipografia Lemos e Silva 1857, p. 189. O espaço amazônico, já mestiço nos seus costumes, é contraposto ao Brasil não amazônico que optara pela ocidentalização, rejeição do nativo e de tudo o que lembrasse o que então era considerado selvagem.

Há, por fim, uma relação de trânsito dos nativos no interior do território provocado pela invasão dos colonizadores: “[…] retirando-se para o centro, como fizeram muitas outras Nações do Amazonas e Solimões, que atentas a si próprias, nenhuma consideração as deteve a respeito do país, que abandonaram ao invasor.” AMAZONAS, Lourenço de Araújo e. Simá, Romance do Alto Amazonas. Recife: Tipografia Lemos e Silva,1857, p.170. No que respeita às fronteiras, vê-se que o trânsito colonial era bastante intenso, os jesuítas, partidários dos espanhóis teriam transposto a fronteira portuguesa, “em toda a Guiana”. AMAZONAS, Lourenço de Araújo e, Simá, Romance do Alto Amazonas. Recife: Tipografia Lemos e Silva 1857, p.174.

Encontramos também paisagens trabalhadas pelo homem descritas em harmonia com a natureza. Embora o termo/conceito ecoliteratura não existisse na época, havia a presença da natureza e sua integração à narrativa ao modo daquilo que se tem convencionado nomear ecoliteratura.

Dentre as passagens em que tal ocorre, encontramos:

Tal é a disposição natural, o pitoresco arrebatador do país, dentro do qual existiu o Sitio, de que nos ocupamos, e no qual se verá que o mais harmonioso trabalho foi compreendido, e executado. Desde o desembarque o caminho se fazia aperceber, coberto de fina área, e orlado dos canteiros de um engenhoso jardim, que abrangia considerável espaço em redor da casa de vivenda. Ao jardim sucedia a horta, e a esta extensa plantação de arvores frutíferas, e de especiaria, como laranjeiras caneleiras, limoeiros, craveiros, e, dispostas em alamedas, que se cortavam em ângulos retos, e se interrompiam em largos, cujo centros eram ocupados por uma árvore frondosa, adrede para sombrear assentos alcatifados de verde relva 

AMAZONAS, Lourenço de Araújo e. Simá, Romance do Alto Amazonas. Recife: Tipografia Lemos e Silva, 1857, p.4.

E alguns anos ainda antes podia-se a perceber na grenha da tapera, além das minas de algumas casas, os traços de um jardim, e pela disposição de arvores frutíferas, como laranjeiras romeiras, limoeiros, algumas alamedas o que tudo induzia a concluir, senão a grandeza daquele antigo estabelecimento, ao menos e incontestavelmente o gosto e esmero de quem em época tão remota se dera a um trabalho, que apenas aparece imitado em 1810 pelo Governador Victorio em seu horto botânico de Tarumá 

AMAZONAS, Lourenço de Araújo e. Simá, Romance do Alto Amazonas. Recife: Tipografia Lemos e Silva,1857, p.4.

Embora a paisagem esteja sempre presente na obra, o autor intitula um capítulo “Paisagem”. O narrador compara a paisagem amazônica com outras paisagens menos densas e informar que a paisagem do Amazonas é considerada exótica. Nela, o narrador apresenta os espaços naturais propriamente ditos e também os ficcionaliza.

Floresta chuvosa amazônica, Rio Urubu. In: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Amazonia.jpg

O narrador começa por supor que as belezas naturais sejam criação divina. Em seguida, compara a paisagem local a uma obra de arte. Há valorização das formas naturais, das árvores frutíferas e daquilo que proporcionam, o que dá um ar romântico ao cenário no qual ocorrem os desenganos amorosos de Simá e Domingos.

Tudo é bom como saiu das mãos do Criador. Tudo degenera entre as dos homens. Disse um moderno escritor; e vários exemplos apontaram em prova de sua asserção; como entre outros, obrigar-se uma arvore a dar frutos de outra, mutilar-se os brutos para dar-se lhe formas adequadas a extravagância de um gosto, discorde da natureza. 

AMAZONAS, Lourenço de Araújo e. Simá, Romance do Alto Amazonas. Recife: Tipografia Lemos e Silva,1857, p.41.

Como descrever a saudação das criaturas da floresta ao sopro benéfico da viração, acenando das palmeiras em fagueiros cumprimentos (…) 

AMAZONAS, Lourenço de Araújo e. Simá, Romance do Alto Amazonas. Recife: Tipografia Lemos e Silva,1857, p.43.

Outras, mais ou menos distantes, tanto acima, como abaixo dele, deixam em seus intervalos, planícies adequadas, assim para pasto de gado, como para plantações, isentas de inundação, em razão da elevação do solo naquela parte, que faz procurar as águas leitos, pelos quais afluem ao rio, bem conhecidos com os nomes de Uarirá, Kibarú, Mabbá, Ajuana, Xiuará 

AMAZONAS, Lourenço de Araújo e. Simá, Romance do Alto Amazonas. Recife: Tipografia Lemos e Silva, 1857, p.74 e 75.

Outro aspecto interessante é a descrição da interação entre natureza e clima. O autor valoriza o que há de belo nesse fenômeno e descreve a paisagem em movimento por meio do uso de sinestesias. As sensações são as mais diversas; movimentos, formas, cheiros e cores estão entre elas. Encontramos ainda sensações de lugares acolhedores habitados por povos indígenas e animais. Coabitam nesse espaço seres vivos de diferentes estirpes, animais e vegetais. Paisagens ora domesticadas, ora selvagens se alternam, sendo que espaços que teriam sido habitados e depois abandonados, logo voltam a ser habitados por vidas vegetais:

Da confusa massa que os olhos apresentara a noite nas margens do rio destacavam-se colinas, tão caprichosas em suas configurações, como engraçadas em suas expressões, de cujas reentrâncias se enlaçavam palmeiras, que em faceiro balanço saudavam o Astro, acedendo-lhes com leques abrilhantados de amor matutino. Cores e perfumes alardeando as flores abriram seus cálices voluptuosos aos famigueiros beijos do mimoso beija-flor. A criação despertava. Amanhecia. 

AMAZONAS, Lourenço de Araújo e. Simá, Romance do Alto Amazonas. Recife: Tipografia Lemos e Silva, 1857, p.44.

Imagens do Palmeira no Parque Nacional da Serra do Pardo. Creative Commons Attribution-Share Alike 3.0. In: https://commons.wikimedia.org/w/index.php?search=serra+do+pardo+&title=Special:MediaSearch&go=Go&type=image:

Em uma silencia pedregosa, vestida de verde musgo, ornada de ligeiro arbusto, de cuja disposição resultava imperiosa corrente, como ordinário é o Rio Negro, principia a ressentir-se de elevação do solo, acima da qual uma espaçosa planície de fina e branca árvore era apenas interrompida por dispersas pedras de tão fantásticas configurações, que se diriam bancadas adrede colocadas para uma aprazível reunião. 

AMAZONAS, Lourenço de Araújo e. Simá, Romance do Alto Amazonas. Recife: Tipografia Lemos e Silva, 1857, 45.

Pôr do sol no Rio Negro.JPG. Creative Commons Attribution 2.0.
In https://commons.wikimedia.org/w/index.php?search=rio+negro+&title=Special:MediaSearch&go=Go&type=image

Notemos que encadeamentos usados pelo autor são responsáveis por transmitir ao leitor a sensação: cheiros e cores. No Remanso era possível ver “[…]o mais claro e brilhante até o mais escuro e sombrio verde […]”AMAZONAS, Lourenço de Araújo e. Simá, Romance do Alto Amazonas. Recife: Tipografia Lemos e Silva, 1857, p.79. passando as características sinestésicas da natureza remete, primeiro, a sensações percebidas pelo olhar, “a castanheira ostentava em seu tronco uma coluna de palmeiras um capitel, a sumaumeira, uma cúpula, os cipós, festões de flores”; depois, aos cheiros, “ […] à baunilha os perfumes, a maracaudea, os candembros […]”AMAZONAS, Lourenço de Araújo e, 1857. Simá, Romance do Alto Amazonas. Recife: Tipografia Lemos e Silva, p.79., e, por fim, conclui que, “não há sentimento ou paixão, que elas [as flores] deixem de imprimir por suas cores e configurações”. Em seguida, enumera a serventia destes elementos da natureza para “emblema da amada”, “festões no berço”, “para combinação de ramalhete”, servindo para expressar “chagas, martírios, suspiros”AMAZONAS, Lourenço de Araújo e. Simá, Romance do Alto Amazonas. Recife: Tipografia Lemos e Silva,1857, p.79,– e, os pequenos animais e insetos presentes no sítio e a sua relação com o espaço que o circundava.

Ocorre ainda engrandecimento da paisagem da região Amazônica Amazônica própria de uma vertente da literatura da região está presente na obra. A viagem ao Amazonas seria surpreendente porque, de um lado, encontram-se “majestosas margens”, “guarnecidas d’elevado arvoredo” e por sua densidade apresentam-se como “duas muralhas de verdura” AMAZONAS, Lourenço de Araújo e. Simá, Romance do Alto Amazonas. Recife: Tipografia Lemos e Silva,1857, p. 1.

Vista aérea do rio Negro, no estado do Amazonas. Creative Commons Attribution 2.0. https://commons.wikimedia.org/w/index.php?search=rio+negro+&title=Special:MediaSearch&go=Go&type=image

O autor se baseia em Sampaio que faz referência, em seu diário, a uma revolta indígena que atingiu as povoações de Bodoquena, Lamalonga e Bararoá. Essa revolta partiu do povo Manuas, que não conseguiu justificar, na visão do autor, em função de “sua ignorância”, a sua revolta com o estado colonial, pesando sobre ele a “imputação de vícios e costumes de uma sociedade”. Mas, apesar de basear-se, primeiro em Sampaio (como já citamos), e, depois em Charles-Marie de La Condamine, e em seu Relato resumido de uma viagem feita pelo interior da América do Sul, desde a costa do Mar do Sul até as costas do Brasil e da Guiana, descendo o rio das Amazonas, lido na assembleia pública da Academia das Ciências, em 28 de abril de 1745, o autor lamenta que seja necessário recorrer a autores estrangeiros para se saber o que o nacional deveria saber.

Sendo uma natureza densa, preenchida com acidentes geográficos, igarapés, cascatas, flores, não caberia na descrição de um estrangeiro que a visse pela primeira vez. Dessa forma, o autor pergunta-se o que seria necessário para descrever, por exemplo, o canto dos pássaros do Amazonas, pois, apesar dos esforços escritos, percebe que, “[…] mais do que possa exprimir” restam* ainda formosuras as serras, perfume as flores, perfume as águas […]” AMAZONAS, Lourenço de Araújo e. Simá, Romance do Alto Amazonas. Recife: Tipografia Lemos e Silva,1857, p. 44.. Fala-se ainda sobre correntes do Rio Negro, dando-lhes características sinestésicas: “saliência pedregosa, vestida de verde musgo, ornada de ligeiro arbusto, de cuja disposição resulta impetuosa corrente” AMAZONAS, Lourenço de Araújo e. Simá, Romance do Alto Amazonas. Recife: Tipografia Lemos e Silva,1857, p.72..

O autor informa que dará uma ideia do aspecto “[…] daquele país […]”, um lugar onde as correntes do Negro diminuíam em função das “vistosas colunas, dispostas em anfiteatro” que deixam em seus intervalos “planícies adequadas, assim para posto de gado como para plantações” AMAZONAS, Lourenço de Araújo e. Simá, Romance do Alto Amazonas. Recife: Tipografia Lemos e Silva1857, p. 73.. Daí se olha para o lado da Guiana – provavelmente uma referência ao que se denominava Guiana Portuguesa, constituindo, hoje, o Norte do Pará, Roraima e o Amapá – onde se veriam “[…] longínquo horizonte, formado de águas […]” dos rios Negros, Paduauary, etc. Este país estaria do lado da “Yapurania”, provavelmente, a região próxima ao rio Yapurá.

Nesta região havia serras que, vistas de longe, mais pareciam nuvens, “tornando-se gradualmente mais expressivas” apresentavam: “vistosas colinas ornadas de verdejantes arvoredos, deixando após de si piscosos lagos, densos bosques e amenas campinas” AMAZONAS, Lourenço de Araújo e. Simá, Romance do Alto Amazonas. Recife: Tipografia Lemos e Silva1857, p. 73.. Da mesma forma, “[…] as margens dos rios são guarnecidas interpoladamente assim de ligeiro arvoredo ornando caprichosamente musgosos rochedos, a que sucedem risonhas praias de branca e fina areia, com elevado e frondoso que majestosas abobadas se ostentam da floresta, tão vaidoso que de flores se atavia e de perfumes balsamam o ambiente […]” AMAZONAS, Lourenço de Araújo e. Simá, Romance do Alto Amazonas. Recife: Tipografia Lemos e Silva,1857, p. p. 63..

Margem esquerda do Rio Negro. Creative Commons Attribution 3.0. Fonte: https://commons.wikimedia.org/w/index.php?search=rio+negro+&title=Special:MediaSearch&go=Go&type=image:

Considerando o exposto, pode-se considerar que Simá: Romance histórico do Alto Amazonas, é um romance cuja paisagem exerce papel fundamental na dinâmica da narrativa, com foco especial em duas modalidades de espaço determinantes, o colonial marcado por disputas entre dois colonizadores e entre nações indígenas e colonos portugueses e suas ruínas, e ainda por espaços relacionados à literatura oral indígena. A esses dois espaços soma-se a descrição da natureza amazônica que, por seu turno, não exerce função no desenlace da história, mas tem presença forte no texto via descrição de espaços.

Marinete Luzia Francisca de Souza

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Não há consenso sobre o uso do termo literatura oral indígena, embora se saiba que muito do legado da literatura indigenistas vem de tradição indígena de contar história. Conforme Novais, no verbete Literatura Indígena,encontrar uma denominação de referência geral não é muito simples. Outras expressões, embora menos usadas, vêm se apresentando na tentativa de caracterizar esse campo de interesse, como Literatura Nativa, Literatura das Origens, Literatura Ameríndia e Literatura Indígena de Tradição Oral”. NOVAIS. Augusto Carlos. Literatura indígena. In: Glossário Caelel. In: http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/literatura-indigena. Consulta em 17 de agosto de 2021.

Termo de origem Tupi (igari’té) que significa, de acordo com o Dicionário de Português Online “Denominação atribuída a canoa feita de um tronco apenas”. In: https://www.lexico.pt/igarite/
Consulta em 17 de agosto de 2017.

Capa da primeira edição do romance Simá. Romance histórico do Alto Amazonas, de Lourenço da Silva Araújo Amazonas veio a lume em 1857 e foi editado em Recife (PE), pelo Tipografia Lemos e Silva. Só teve sua segunda edição em 2007, pela Editora Valer, de Manaus (AM).
Originária da língua Tupi, significa aldeia abandonada, habitação em ruínas. Casa de pau-a-pique e telhado feito de palha ou outro material vegetal.
Segundo Rodrigues (2011), a língua falada pelos turpinambás (de São Vicente), hoje conhecida como tupi, era chamada, durante o período colonial de “língua geral” (dos índios do Brasil), “língua do Brasil”, “língua brasílica, brasiliana ou brasileira”. Pertence à família linguística Tupí-Guaraní que se manifesta em vários países América do Sul: Brasil,Argentina, Paraguai, Bolívia, no Peru e Guiana. Cf. Rodrigues. In: Esboço de uma introdução ao estudo da língua Tupí. Volume 3, Número 1, Julho de 2011, p. 31 1 45.
Francisco Xavier Ribeiro Sampaio foi ouvidor e intendente-geral da capitania de São José do Rio Negro. Percorreu a região entre 1774 e 1775. Escreveu o Diário da viagem: que em visita, e correição das povoações da capitania de S. Joze do Rio Negro fez o ouvidor, e intendente geral da mesma. Lisboa: Typografia da Academia, 1825.
Segundo Freire (1987, p.7), os Manaós eram um povo indígena que habitavam da foz do Rio Branco até a ilha de Timoni, no baixo Rio Negro, e enfrentaram embates com os portugueses, que contribuíram para a diminuição de sua população.

Segundo Kury (2008p. 267), o fato de Helena de Tróia ter muitos pretendentes fez com que, após seu casamento com Menelau, ela fosse sequestrada por um deles, Páris. Menelau convoca os demais chefes gregos para resgatá-la. Inicia-se, então, uma guerra que dura anos. Muitos dos acontecimentos da Guerra de Tróia são narrados na epopéia Ilíada comoa morte de Aquíles, a disputa por suas armas e, finalmente, submissão de Tróia. Cf. CURY, Mário da Gama. Dicionário de Mitologia Grega e Romana. Rio de Janeiro: Jorge Zarhar Edições, 2008.

O termo seria uma referência à um povo formado por mulheres guerreiras que teriam vivido na Amazônia.A menção a presença desse povo na Amazônia é feita, pela primeira vez por europeus, no relato sobre o Rio Amazonas do Frei Gaspar de Cavajal na Relación del nuevo descubrimiento del famoso Rio de las Amazonas, escrito em 1540. A versão original de seu texto pode ser consultada em: http://bdh.bne.es/bnesearch/detalle/bdh0000057769. Sabe-se que, entretanto, o mito tem origem grega.
Trata-se da Académie des Sciences, organização científica francesa, fundada em 1666 por Luís XIV e que teve papel importante no desenvolvimento das ciências na Europa. Em 1735, tal instituição encarregou determinação Charles Marie de La Condamine de realizar viagem ao Peru para definir o grau exato arco de meridiano da linha do equador. Por isso, o textos aqui mencionado foi lido em assembleia da Académie des Sciences.

Segundo Silva (2015), o termo pajé se originaria no Tupi e significaria curandeiro, adivinho. Cf. Silva, Dulcilândia Belém. A Presença do Léxico Indígena nas toadas Do Boi-Bumbá de Parintins.Trabalho apresentado para Defesa de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Letras e Artes da Universidade do Estado do Amazonas, Manaus, 2015.

Lourenço de Araújo e Amazonas cria uma espécie de glossário assinalado por números, como no caso acima. Sobre o vocábulo “Muras”, ele explica que se trata de um povo indígena de mobilidade territorial, bons navegantes, que se opuseram aos colonizadores e atacavam as aldeias coloniais. Atualmente, seus descendentes, habitam, segundo o site Socioambiental, “vastas áreas no complexo hídrico dos rios Madeira, Amazonas e Purus.” Fonte: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Mura. Consulta em 18 de agosto de 2021.

Durante o século XVIII, as coroas portuguesas e espanholas se encontravam em litígio pela posse de territórios na América do Sul. O Tratado de Madri (1750) implementou o conceito de uti possidetis (a terra pertence a quem ocupa), mais tarde substituído pelos Tratado de El Pardo (1761), de Santo Ildefonso, de 1º de outubro de 1777 tratavam de tais questões territoriais. (SAMPAIO, 2009:27). Por isso, na Amazônia, foi criada, por Portugal, em 1755, a Capitania do Rio Negro. Apesar disso, encontramos em textos históricos referências à conflitos entre portugueses e espanhóis na região. É o caso do já citado Diário da viagem : que em visita, e correição das povoações da capitania de S. Joze do Rio Negro fez o ouvidor, e intendente geral da mesma (1825), de Francisco Xavier Ribeiro Sampaio no qual o autor do romance Simá baseou. Lourenço de Araújo e Amazonas menciona, na introdução da referida narrativa missões, viagens de reconhecimento de territórios pelos espanhóis em locais que os portugueses consideravam deles.

Atualmente, vigora uma modalidade de crítica literária denominada ecocrítica, estudos que pensa a natureza literariamente representada por meio de uma mudança de paradigma na qual a natureza não apenas cenário, mas diz da alteridade da natureza.Dela deriva termos como ecoliterarura e ecopoética que diriam respeito à representação estética da literatura. Em The song of the earth (2000), Neil Evernden nomeia esse fato como “trabalho ecológico da escrita literária”.

Conforme Carla Escarduça em verbete para o e-dicionário de Temos Literários de Carlos Seia, sinestesia, “[De sin – + gr. aísthesis, «sensação» + – ia], é um processo estilístico que consiste na associação, pela palavra, de duas ou mais sensações pertencentes a registos sensoriais diferentes. A utilização de tal figura de retórica permite a transposição de sensações, ou seja, a atribuição de determinadas impressões sensoriais a um sentido que não lhes corresponde.”
In: https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/sinestesia, consulta em 17 de agosto de 2021.

Temo não encontrado em dicionários de língua portuguesa.
Relation abrégée d’um Voyage fait dans l’intérieur del’Amérique méridionale (Paris 1759).
Agradecemos ao artista plástico Gabriel AV as fotos de Covilhã.