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Memória e paisagem do Rio de Janeiro nas crônicas de Lima Barreto

Memória e paisagem do Rio de Janeiro nas crônicas de

Lima Barreto

Repito: não gosto do passado. Não é pelo passado em si; é pelo veneno que ele deposita em forma de preconceitos, de regras, de prejulgamentos nos nossos sentimentos. Ainda são a crueldade e o autoritarismo romanos que ditam inconscientemente as nossas leis; ainda é a imbecil honra dos bandidos feudais, barões, duques, marqueses, que determina a nossa taxonomia social, as nossas relações de família e de sexo para sexo; ainda são as coisas de fazenda, com senzalas, sinhás-moças e mucamas, que regulam as ideias da nossa diplomacia; ainda é, portanto, o passado, daqui, dali, dacolá, que governa, não direi as ideias, mas os nossos sentimentos. É por isso que eu não gosto do passado; mas isso é pessoal, individual. Quando, entretanto, eu me faço cidadão da minha cidade, não posso deixar de querer de pé os atestados de sua vida anterior, as suas igrejas feias e os seus conventos hediondos

BARRETO, Lima. “Bagatelas”. 1923. 1ª Edição. Rio de Janeiro:
Empresa de Romances Populares. 1923, p.41 

Por meio de uma produção literária diversificada, Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) oferece aos leitores uma forma distinta para se olhar o Rio de Janeiro no início do século XX. Articulando as imagens que enxergava, durante seu deslocamento entre os subúrbios e o centro da então capital federal, com as memórias de uma cidade que fora sede de um império europeu e vivenciava o surgimento de um novo regime político, o autor descreve as paisagens cariocas e suas gentes sobre múltiplas perspectivas.

Ao longo de sua trajetória nas letras, Lima Barreto atuou em várias frentes, desde a escrita de romances na forma de folhetins publicados em veículos de imprensa da época, como o jornal “Correio da Noite” e as revistas “Fon Fon” e “Careta”, passando pela edição de sua própria revista, até a produção de dezenas de crônicas e artigos sobre a vida cotidiana no Rio de Janeiro e as modificações que a cidade estava sofrendo. Em suas crônicas, foco central deste texto, é possível notar o forte teor de crítica do escritor frente às reformas urbanas empreendidas, em diferentes gestões, pela prefeitura do Rio de Janeiro.

Lima se contrapunha ao discurso utilizado pelas autoridades públicas para justificar as reformas. Em um contexto de mudanças com a implementação da república no país e a proliferação de discursos pautados na ciência e no progresso, diversas alterações na paisagem urbana foram realizadas, considerando as prevenções sanitárias, como a melhor circulação do ar para evitar o rápido contágio de doenças. Na gestão de Carlos Sampaio (1920-1922), ocorreu o arrasamento do Morro do Castelo, que era visto como um empecilho ao desenvolvimento da cidade. O prefeito aterrou a formação, desalojando a população de baixa renda que ali vivia.

Como contraposição a semelhantes medidas, o escritor fazia questão de recuperar o histórico colonial e imperial da cidade – que pretendia ser apagado pelas remodelações na arquitetura urbana – não como um sentimento nostálgico da Monarquia brasileira, mas sim para defender a memória presente em cada construção existente na cidade.

Noticiaram nos jornais, com pompa de fotogravuras e alarde de sabenças históricas, que o Convento da Ajuda, aquele ali da Avenida, fora vendido a alguns ingleses e americanos pela bela quantia de mil oitocentos e cinquenta contos.

Houve grande contentamento nos arraiais dos estetas urbanos por tal fato. Vai-se o mostrengo, diziam eles: e ali, naquele canto, tão cheio de bonitos prédios, vão erguer um grande edifício, moderno, para hotel, com dez andares.

Eu sorri de tão santa crença porque, se o Convento da Ajuda não é tão bonito como o Theatro Municipal, tanto um como o outro não são belos. A beleza não se realizou em nenhum dos tais edifícios daquele funil elegante; e se deixo o Theatro Municipal, e o olho o Club Militar, a monstruosa Biblioteca, a Escola de Belas-Artes, penso de mim para mim que eles são bonitos de fato, mas um bonito de nosso tempo, como o convento o foi dos meados do nosso século dezoito

BARRETO, Lima. “Bagatelas”. 1923. 1ª Edição. Rio de Janeiro: Empresa de Romances Populares. 1923, p.39.
Malta, Augusto. 1907/Acervo Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro
Lima, portanto, se utilizava da memória como uma forma de crítica aos problemas de seu tempo. Ele defende a preservação material do Convento da Ajuda não por gosto pessoal, e sim por reconhecer a importância histórica daquele local para a cidade. A oposição entre temporalidades é explicitada no trecho, com a oposição dos termos “históricas”; “moderno”; “nosso tempo” e “do nosso século XVIII”. Da mesma maneira que o Rio de Janeiro é o local onde se instalam novos prédios de “dez andares”, ele também traz marcas do “nosso século XVIII”, que não devem ser apagadas devido à pretensa modernização. O autor re-politiza a paisagem urbana, ao se afastar do discurso essencialmente técnico e ao demonstrar os conflitos existentes entre as distintas camadas sociais que compunham a população carioca da época, e de como estas se relacionavam com o espaço que ocupavam.

Demolições nas proximidades do Convento da Ajuda [atual Cinelândia],
Fonte: João Martins Torres, 1904-05

Em suas crônicas, são retratados classes e espaços marginalizados, com uma constante crítica à distribuição de gastos feita pelas autoridades, com altos investimentos nos “areais” de Ipanema e Leblon, enquanto nos bairros suburbanos, ruas continuavam esburacadas e mal iluminadas. Os subúrbios ganham especial destaque nos escritos de um de seus moradores, mas a associação direta de Lima como um “autor dos subúrbios” acaba por limitar o conteúdo de sua produção.

O escritor oscilou durante sua vida entre a marginalidade e a inclusão em classes mais abastadas. Criticava a intelectualidade da época, mas tentou ingressar na Academia Brasileira de Letras (ABL), em três ocasiões. Rejeitava o rótulo intelectual de “doutor”, mas, ao mesmo tempo, não se colocava no mesmo plano dos outros moradores dos subúrbios. Ele, sim, situa-os em sua literatura, mas não se integra socialmente a eles; são seus personagens pela perspectiva de um observador distante, como se falasse da região para leitores que se encontrassem fora dela. Pela sua descrição das ruas e localidades das áreas mais afastadas do centro, é possível notar desigualdades no trato com o espaço urbano, que persistem até hoje no planejamento urbano da cidade.

Todo o dia, pela manhã, quando vou dar o meu passeio filosófico e higiênico, pelos arredores da minha casa suburbana, tropeço nos caldeirões da rua principal da localidade de minha residência, rua essa que foi calçada há bem cinquenta anos, a pedregulhos respeitáveis. Lembro-me dos silhares dos caminhos romanos e do asfalto com que a Prefeitura Municipal está cobrindo os areais desertos de Copacabana.

Por que será que ela não reserva um pouquito dos seus cuidados para essa útil rua das minhas vizinhanças, que até é caminho de defuntos para o cemitério de Inhaúma? Justos céus! Tem acontecido com estes cada coisa macabra! Nem vale a pena contar

BARRETO, Lima. “O prefeito e o povo”.
In: “Careta”. Rio de Janeiro: 15 de jan. 1921,p.4.

O escritor não adotava um discurso de negação completa da modernidade, manifestada pela introdução de novos recursos tecnológicos, como os postes de iluminação e veículos de transporte particular, ao Rio de Janeiro, mas a favor de um tempo futuro no qual os direitos das populações mais humildes fossem garantidos, com o respeito ao passado e a ancestralidade da cidade e de seus habitantes.

Rua Amaro Cavalcanti, sentido Todos os Santos, em 1923.
Foto: Malta, Augusto. Fundação Museu e Arte do Som do Rio de Janeiro.

É possível perceber, que Lima defende um planejamento e crescimento da então capital federal condizente com suas características geográficas e históricas, em contraposição à mera imitação de modelos estrangeiros. O olhar atento de sua literatura em um momento de constante metamorfose da cidade, o levava a citar aspectos muitas vezes deixados em segundo plano, como a vegetação. Não era incomum em suas crônicas o espaço concedido para a apreciação da natureza presente nas paisagens cariocas, observando também como sua preservação estava ameaçada pelos prédios modernos com inspiração americana. Lima descrevia os elementos topográficos do Rio de Janeiro e suas bordas atravessadas por colinas e montanhas, inserindo a partir disso o elemento humano.

Entre nós, porém, nenhum deles pode prevalecer e não devíamos permitir a construção de semelhantes faróis cívicos, em uma cidade semeada e bordada de colinas, morros quase serras, que ainda estão mais ou menos arborizadas e que devem estar sempre, dando-lhe a sua beleza espacial, o seu cachet de grandeza, e a sua simplicidade de horizontes, os quais nós perderemos, pobres e mesquinhas formigas humanas que somos!, se tais chatezas se vierem multiplicar

BARRETO, Lima. “O edifício da Cruz Vermelha”.
In: “Hoje: periódico de Ação Social”. Rio de Janeiro: 10 de jul. 1919, p. 17.

Construção do prédio da Cruz Vermelha no Rio de Janeiro, 1919.

Parece que Lima escreve para registar um presente em transformação e fixar as paisagens da época em sua literatura, antes que elas fossem modificadas pelos prefeitos, alvos constantes de suas críticas. Em um momento em que o tempo pregresso da escravidão e suas marcas na arquitetura urbana eram abafados, o escritor o recuperava em seus textos, possibilitando novas formas de se olhar para a cidade, para além daquela proposta pelas elites.
Os subúrbios e arredores do Rio guardam dessas bellas cousas roceiras, destroços como recordações. A rua Barão do Bom Retiro que vem do Engenho Novo à Vila Isabel dá a quem por ella passa uma amostra disso. São restos de bambuaes, de jasmineiros, que se enlaçavam pelas cercas em fora; são mangueiras isoladas, tristonhas, saudosas das companheiras de alameda que morreram ou foram mortas. Não se diga que tudo isso desappareceu para dar logar a habitações; não, não é verdade. Ha trechos e trechos grandes de terras abandonadas, onde os nossos olhos contemplam esses vestígios das velhas chácaras da gente importante de antanho que tinha esse amor fidalgo pela ‘casa’ e que deve ser amor e religião para todos

BARRETO, Lima. “Bagatelas”. 1923. 1ª Edição. Rio de Janeiro:
Empresa de Romances Populares. 1923, p.198. 

Vila Isabel – Álbum da Inspetoria de Mattas, Jardins, Caça e Pesca da Prefeitura do Distrito Federal – Exposição nacional do Centenário da Independência do Brasil – 1922

Os “destroços” e “restos”, como os destacados no trecho acima, ganham especial atenção nas crônicas barretianas. O olhar do autor para as paisagens retratadas não se traduz, em seus escritos, apenas como uma representação do estético, mas uma produção subjetiva da relação entre Lima e os espaços.

Estrada de Ferro Central do Brasil que cortava os bairros do subúrbio carioca, 1919. Detalhe do mapa:
Cartas das Linhas da Estrada de Ferro Central do Brasil”. São Paulo. Ypiranga,1919. Biblioteca do Museu Nacional/UFRJ.

O autor pode ser considerado um dos principais exemplos, entre seus contemporâneos, da importância da experiência pessoal como parte inerente da ficção, o que pode ser visto não somente em suas crônicas, mas também em romances como “Recordações do Escrivão Isaías Caminha” e “Triste Fim de Policarpo Quaresma”. Filho de descendentes de escravos, Lima ao escrever para jornais – espaço ocupado por membros das classes altas em um país com alto número de analfabetos – se inseria no debate público da época, trazendo para este a discussão de temas e o retrato de localidades esquecidas. O autor consegue, portanto, construir sua identidade como escritor e cidadão por meio do exercício da escrita.

Semelhante fato é importante, pois deve-se levar em conta que o uso da memória, como o que Lima fazia ao descrever o universo carioca, parte de um lugar social no presente. Lima assumia-se como um crítico à classe política e as elites de sua época, mobilizando a memória do Rio de Janeiro a partir dessa posição.

Lima Barreto era uma das vozes deslocadas em um período marcado por discursos dominados pelo desejo de modernização, que impunha um novo modo de comportamento aos indivíduos e uma nova configuração paisagística da cidade. Com base em suas crônicas, o leitor é apresentado a um Rio de Janeiro ampliado, por meio de uma perspectiva mais crítica às transformações então vigentes. Ler e se aprofundar na obra de Lima é, portanto, uma forma de se ampliar o conhecimento acerca da paisagem do Rio de Janeiro no início do século XX, e sobre a Primeira República como um todo, com a ênfase em aspectos que são esquecidos ou deixados à margem pela historiografia oficial.

Viviane Vasconcelos
Vítor Pereira da Costa Santos 

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Sobre a história do bairro de Vila Isabel, visitar https://www.bn.gov.br/noticia/2015/05/rio-450-anos-bairros-rio-vila-isabel
Em francês, “le cachet de la poste”, carimbo do correio. No texto, significa “marca”.
Em 21 de agosto de 1917, Lima Barreto escreve uma carta a Rui Barbosa, então presidente da Academia Brasileira de Letras, inscrevendo-se para a vaga aberta pela morte de Sousa Bandeira, porém sua candidatura sequer foi considerada. Dois anos depois, lança a segunda candidatura, na vaga deixada pela morte de seu amigo Emílio de Meneses. Mais uma vez a tentativa é fracassada, com o escritor obtendo apenas dois votos nos dois primeiros escrutínios e um nas demais votações. Em julho de 1921, inscreve-se na vaga de João do Rio, mas retira a candidatura dois meses depois.
Por ser considerado inapropriado ao projeto de modernização da cidade, o Morro do castelo foi demolido durante a gestão de Carlos Sampaio (1920-1922). Considerado como um dos pontos de fundação do Rio de Janeiro, o morro já era desde os tempos de D. João VI considerado prejudicial à saúde dos cariocas, pois dificultaria a circulação do ar. Suas terras foram utilizadas para aterrar parte da Urca e outras áreas baixas da Baía de Guanabara.
Em conjunto com um grupo de amigos, Lima Barreto funda, em 1907, a revista “Floreal”, em homenagem ao oitavo mês do calendário revolucionário, decretado em 1793 pela Convenção Francesa. O espaço serviria para que os editores publicassem seus próprios textos e para desafiar as regras de estilo e linguagem impostas pela intelectualidade da época. Foi na revista que Lima publica o início de “Recordações do Escrivão Isaías Caminha” em 1907, obra que teria sua primeira edição em livro publicada dois anos depois. Entretanto, a iniciativa rendeu apenas quatro edições, a última em 31 de dezembro de 1907. A falta de um projeto gráfico desenvolvido, a concorrência com outros periódicos e o pouco número de exemplares vendidos e disseminados colaboraram para o breve fim da revista.
Agradecemos ao artista plástico Gabriel AV as fotos de Covilhã.