Lima Barreto de bonde pelo Rio: Paisagem e memória
Lima Barreto
de bonde pelo Rio: Paisagem e memória
LIMA BARRETO, A. H. Um e outro. In:
Obras de Lima Barreto. São Paulo: Editora Brasiliense p. 247-257
Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) apresenta abordagem diversificada para a paisagem. Vamos mostrar dois aspectos mais significativos. Primeiro, o olhar para a paisagem que mescla imagens da natureza às da memória, numa combinação de múltiplas perspectivas. E, em segundo, temos a crítica à construção cultural da paisagem, feita por discursos como o literário, que tornou o pitoresco uma necessidade estético-política.
Observador em deslocamento constante, o escritor fez da viagem urbana – de trem, bonde ou a pé – estratégia para ver a cidade e sua gente sob múltiplas perspectivas.
LIMA BARRETO, A. H. Numa e Ninfa. In:
Obras de Lima Barreto. São Paulo: Editora Brasiliense p. 95-96
Em geral assisto a passagem desses cortejos fúnebres na rua José Bonifácio canto da Estrada Real. Pela manhã gosto de ler os jornais num botequim que há por lá. Vejo os Órgãos, quando as manhãs estão límpidas, tintos com a sua tinta especial de um profundo azul-ferrete e vejo uma velha casa de fazenda que se ergue bem próximo, no alto de uma meia laranja, passam carros de bois, tropas de mulas com sacas de carvão nas cangalhas, carros de bananas, pequenas manadas de bois, cujo campeiro cavalga atrás sempre com o pé direito embaralhado em panos.
Em certos instantes, suspendo mais demoradamente a leitura do jornal, e espreguiço o olhar por sobre o macio tapete verde do capinzal intérmino que se estende na minha frente.
Sonhos de vida roceira me vêm; suposições do que aquilo havia sido, ponho-me a fazer. Índios, canaviais, escravos, troncos, reis, rainhas, imperadores – tudo isso me acode à vista daquelas coisas mudas que em nada falam do passado.
De repente, tilinta um elétrico, buzina um automóvel, chega um caminhão carregado de caixas de garrafas de cerveja; então, todo o bucolismo do local se desfaz, a emoção das priscas eras em que os coches de Dom João VI transitavam por ali, esvai-se e ponho-me a ouvir o retinir de ferro malhado, uma fábrica que se constrói bem perto.
Vem porém o enterro de uma criança; e volto a sonhar (Lima Barreto, Os enterros de Inhaúma).
LIMA BARRETO, A. H. Os enterros de Inhaúma. Feiras e Mafuás.
In: Obras de Lima Barreto. São Paulo: Editora Brasiliense p. 288.
A natureza visível com todo o seu dinamismo faz uma interessante analogia com os sentimentos do observador cronista: o impacto multissensorial da paisagem evoca lembranças, traços da memória coletiva, a partir do sonho. O resultado revela uma sobreposição espaçotemporal com índios, canaviais, escravos, automóveis e coches de Dom João VI.
Nos seus romances, os passeios e deambulações dos personagens como Isaías Caminha e Gonzaga de Sá, produzem uma combinação de múltiplas perspectivas: a atmosfera lírica de ecos do passado, os perigos e choques da rua, presentes no trânsito como ameaça à vida e ao corpo; fragmentação de percepções da experiência urbana, em momentos e espaços diversos; a densidade temporal do instante que integra passado e presente, memória cultural e sujeito.
Uma espécie de sensibilidade impressionista contamina a perspectiva do olhar do protagonista e a estrutura do romance Recordações do escrivão Isaías Caminha e tudo se e a linguagem rivaliza com a gama de cores usadas por um pintor, envolvendo a exploração da luz, cor, movimento textura e na descrição da experiência urbana.
O espetáculo chocou-me. Repentinamente senti-me outro. Os meus sentidos aguçaram-me; a minha inteligência, entorpecida durante a viagem, despertou com força, alegre e cantante… Eu via nitidamente as cousas e elas penetraram em mim até ao âmago(…). Voluptuosamente, cerrei os olhos; depois, aos poucos, descerrei as pálpebras para olhar embaixo o mar espelhento e misterioso. A barca vogava, as águas negras abriam – fingindo resistência, calculando a recusa. O casario defronte – o da orla da praia, envolvido já nas brumas da noite, e o do alto, queimando-se na púrpura do poente – surgia revolto aos meus olhos, bizarramente disposto sem uma ordem geometricamente definida, mas guardando com as montanhas que espreitavam a cidade, com as inflexões caprichosas das colinas e o meandro dos vales, um acordo oculto, um sentimento lógico.
LIMA BARRETO, A. H de. Recordações do escrivão Isaías Caminha.
São Paulo: Ática, 1990
LIMA BARRETO, A. H. Vida e morte de M.J.Gonzaga de Sá.
In: Obras de Lima Barreto. São Paulo: Editora Brasiliense p. 67.
LIMA BARRETO, A. H. Vida e morte de M.J.Gonzaga de Sá.
In: Obras de Lima Barreto. São Paulo: Editora Brasiliense p.130-131
Reconhecer o legado presente nas imagens da natureza indica que a paisagem nem sempre é bucólica, prazerosa ou estável, um cenário com função de sedativo. As sugestões da memória aprofundam o olhar para as nossas marcas na paisagem, produzindo a ruptura das expectativas convencionais de espaço e profundidade.
Destaca-se até aqui a incorporação da técnica (imprensa, fotografia, pintura e cinematógrafo) na apresentação da paisagem urbana para condensar num instantâneo sua complexa simultaneidade, num espaço em que tudo se superpõe: de topografia a memórias pessoais, diferentes tempos, coordenadas e dimensões.
Como cronista de forte presença na imprensa de seu tempo, Lima Barreto que se dizia “homem de cidade”, lamenta o desinteresse pela natureza dos abastados proprietários de casas na cidade do Rio de Janeiro: “Onde estão os jasmineiros das cercas? Onde estão aqueles extensos tapumes de maricás que se tornam de algodão que mais é neve, em pleno estio?” Não eram só essas árvores que a enchiam, mas muitas outras de frutas adorno, como as palmeiras soberbas, tudo isso envolvido por bambuais sombrios e sussurrantes à brisa”
LIMA BARRETO, A. H. Marginália.
In: Obras de Lima Barreto. São Paulo: Editora Brasiliense p.277.
Seu mais famoso personagem – Policarpo Quaresma – traz os olhos contaminados do pensamento da paisagem, colhido em leituras de historiadores e da ficção romântica. Na sua viagem em direção à natureza brasileira e às marcas de memória cultural nela fixadas, realiza um percurso simultâneo de conhecimento – do discurso intelectual que a produziu – e de autoconhecimento, reconhecendo-se como subjetividade dilacerada. Um traço de melancolia perpassa o personagem, porém o traçado que a constitui, feito da tragicidade e do risível da condição humana, torna aquela melancolia paradoxalmente divertida.
Assim, é ao encontro do imaginado paraíso que caminha o protagonista do romance Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, com certeza de que há muito a fazer para resgatar a imagem do país, cujas terras férteis e abundantes necessitam, na ótica da personagem, apenas de boa administração. Por sugestão da afilhada Olga, o Major Quaresma compra um sítio ironicamente chamado de “Sossego”(as aspas existem no texto e são pertinentes) e anuncia o narrador: “Não era feio o lugar, mas não era belo”
LIMA BARRETO, A. H. Triste fim de Policarpo Quaresma.
In: Obras de Lima Barreto. São Paulo: Editora Brasiliense p. 115.
E é com a força do extraordinário “Golias” (nome de um dos capítulos em que se acirra a luta do protagonista com a terra) que Policarpo decide comprovar a riqueza do paraíso. Autodidata e muito lido e sabido em cousas brasileiras, às imagens românticas de referência à terra o personagem associa recursos cientificistas de interpretação e análise, com o aparato técnico e instrumental vindos da Zoologia, Botânica, Mineralogia e Geologia. Planeja com toda determinação, as transformações da base agrícola, sem, contudo, deixar de exalar sonhos que bebem nas fontes do extraordinário.
Será necessária a visita de Olga, a afilhada, ao “Sossego” e a sua lucidez para refletir criticamente, primeiro junto ao leitor e, depois, iluminar as noções do padrinho sobre pitoresco, terra, homem, trabalho do campo, auxiliando a sua aquisição de conhecimento crítico. Suas reflexões também lembram ao leitor as imagens pitorescas da plantadas em nosso imaginário pela literatura, como exemplo “o sol coava-se e vinha faiscar sobre a água” ou, ainda “periquitos de um verde mais claro, como incrustações na natureza”.
LIMA BARRETO, A. H. Triste fim de Policarpo Quaresma.
In: Obras de Lima Barreto. São Paulo: Editora Brasiliense p. 161
LIMA BARRETO, A. H. Triste fim de Policarpo Quaresma.
In: Obras de Lima Barreto. São Paulo: Editora Brasiliense p. 162.
LIMA BARRETO, A. H. Triste fim de Policarpo Quaresma.
In: Obras de Lima Barreto. São Paulo: Editora Brasiliense p.279.
LIMA BARRETO, A. H de. Recordações do escrivão Isaías Caminha.
São Paulo: Ática, 1990.p.26
A extensa descrição com tons de “amarelado desigual”, “trechos foscos e baços”, mato “verde-escuro”, como tufos “iluminados e vivos numa pele doente”, contrasta com a imagem de natureza pujante, comum nos textos de literatura brasileira, no século XIX, como afirmação de brasilidade.
Desconstruir a poderosa rede de imagens estereotipadas, que orientam o cotidiano dos brasileiros, requer do crítico e pensador uma reeducação do olhar, para a terra e para o homem. Essa foi a tarefa executada por Lima Barreto visível desde as anotações de diários e correspondência até os diversos textos literários que dialogam com a tradição, com os novos recursos estéticos e assimilam as novidades técnicas que alteraram o cotidiano, no começo do século XX.