Paisagens memoráveis, um percurso pela obra de Lídia Jorge

Paisagens memoráveis, um percurso pela obra de

Lídia Jorge

Uns cães ladravam para os lados da povoação, o luar do quarto crescente, em vésperas de lua cheia, era uma chuva de prata. O poeta desligou a luz do pátio e ficámos a falar do papel da paisagem que, entretanto, tinha desaparecido da poesia como motivo, desde que nada mais interessava do que o som do mundo interior reduzido à sua essência.

 JORGE, Lídia. Os memoráveis: romance. Dom Quixote, 2014, p. 284.

 

Em Os memoráveis, Lídia Jorge elabora dentro da narrativa um trajeto que remonta à Revolução dos Cravos, fato histórico importante para a história de Portugal, ocorrido em 25 de abril de 1974. Através das personagens é possível o resgate das situações anteriores à queda do Estado Novo . Com o decorrer da narrativa, encontramos a narradora Ana Maria Machado, Miguel Ângelo e Margarida Lota. Ana Maria, repórter da CBS, é convidada pela emissora americana de televisão para a feitura de um programa denominado “A História Acordada”, no ano de 2004, com o foco nos 30 anos da Revolução. A repórter convida os colegas do tempo da faculdade de jornalismo, Miguel Ângelo e Margarida Lota, a integrarem o projeto. As personagens tomam como base um retrato não oficial, no qual aparecem nove revolucionários. Com isso, fazem um regresso ao passado e buscam reconstituir a história, por meio dos testemunhos dos insurgentes.

Ao longo do romance, deparamo-nos com diversas descrições a respeito da cidade de Lisboa e suas ruas. A paisagem torna-se, então, um sujeito na obra. A pluralidade espacial é uma das peculiaridades nas obras de Lídia Jorge. Distintas geografias e paisagens cercadas por variações políticas e sociais são marcantes em seus escritos. A proporção paisagística é delimitada de forma cultural, histórica e física, o que influencia as personagens e seus destinos. Apresenta-nos assim um Portugal em constante trânsito, uma vez que a autora acredita que a literatura deva expressar o tempo de modo ficcional. O cuidado com a heterogeneidade dos espaços atrela-se a outros atributos, dentre os quais evidenciam-se os aspectos simbólicos e emblemáticos das personagens, objetos e considerações sobre a escrita. Em Os Memoráveis, ocorre uma indagação acerca das identidades de figuras políticas revolucionárias.

No decorrer do romance, o leitor é exposto a diversos cenários. O primeiro é a casa do ex-embaixador americano, nos Estados Unidos, onde o mesmo sugere a Ana Machado, jornalista portuguesa, a elaboração de uma reportagem cinematográfica sobre a Revolução do 25 de abril, em Portugal. Outro cenário é a casa de Antônio Machado, pai da protagonista, situada em Portugal, o qual possui uma fotografia dos companheiros que participaram ativamente da revolução. A fotografia do grupo torna-se o ponto de partida para os jornalistas buscarem as figuras revolucionárias pelas ruas lisboetas. A procura das personagens que compõem a fotografia faz com que ocorra o alastramento de espaços apresentados na obra.

Esse retrato não oficial é um elemento importante na obra, dado que, possibilita aos entrevistadores encontrarem os personagens “memoráveis”, dentre eles Antônio Machado. A fotografia foi tirada em um restaurante cujo nome não é mencionado na narrativa. Porém, o ponto de encontro é denominado pelos revolucionários como “Memories” e constitui-se em elo entre passado e presente, neste resgate histórico que Ana Maria e seus colegas realizam sobre a Revolução dos Cravos. O restaurante então, com codinome como os demais atores, é, ao mesmo tempo, elemento revolucionário e depositário da memória dos revolucionários.

Dada a multiplicidade dos espaços, pode-se dizer que, à medida que o romance se intensifica, as figuras revolucionárias e seus percursos são reconstituídos. Uma vez situados nos lugares específicos destacados pelos entrevistadores, os revolucionários ganham maior amplitude e munem a construção ficcional. Graças a isto, ocorre um fluxo não somente do passado, mas também do presente que arrasta consigo todas as personagens; tanto entrevistados, quanto entrevistadores:

Avenida 24 de Julho. Onde teria havido um tiro? Umas pedradas? Um assalto à mão armada? Kosovo, Médio Oriente e Afeganistão, de onde na altura provinham imagens que muito nos excitavam, eram o nosso objetivo.

JORGE, Lídia. Os memoráveis: romance. Dom Quixote, 2014, p.67.

Imagem: Avenida 24 de julho
Fonte: https://www.flickr.com/photos/ernstkers/50266670232

No trecho acima, a paisagem está imbricada com as memórias, vividas em ruas e avenidas lisboetas e posteriormente resgatadas pelos jornalistas, os quais se encontram em constante trânsito pelas ruas de Lisboa, dado que necessitam entrevistar os revolucionários. A protagonista faz uma comparação entre a paisagem lisboeta e outros cenários já visitados por ela, visto que a mesma é uma repórter de guerra. Dessa forma, expressa a necessidade de investigar o que outrora fora tão emblemático como palco para a Revolução de seu país:

Isto é, perdi a Rua Augusta, perdi o Rossio, perdi a Rua do Carmo e a Rua Garret. A partir daí, sim, fotografei os cachos de pessoas pendurados das árvores, quando as pernadas já estavam tão cheias que não havia mais ramos livres. E depois os cachos às janelas, a frontaria do Largo do Carmo, o chão do Carmo, os passos de cada um, a saída da chaimite Bula levando-os aos quatro, e tudo o mais que aconteceu naquele dia. Nessa noite, não me deitei.

JORGE, Lídia. Os memoráveis: romance. Dom Quixote, 2014, p.116

Imagem: Aspectos das ruas de Lisboa durante a Revolução dos Cravos
Fonte: https://www.flickr.com/photos/hemerotecadigital/22302924348

Neste trecho, Tião Dolores detalha os diferentes cenários da Revolução dos Cravos, indicando quais lugares havia deixado de fotografar e retrata o momento em que iniciou a captura das fotos no Largo do Carmo. A sensação de participar desse momento revolucionário para ele foi indescritível. Tão impactante que o mesmo, por um momento, esqueceu-se de sua função como fotógrafo, que era a de registrar as imagens inéditas do marco histórico. Com base nas narrativas das personagens revolucionárias que são entrevistadas, percebe-se que a Revolução dos Cravos não é somente a história de Portugal, mas configura-se como a memória pessoal dos membros envolvidos no evento histórico. Na presente obra, a paisagem lisboeta é contemplada em seu passado como palco da revolução. A cidade é descrita com certo saudosismo por parte dos entrevistados, os quais rememoram as situações e os lugares, cada qual a seu modo. Após as personagens realizarem a primeira entrevista, desenvolve-se uma profusão de vozes acerca do ocorrido em 25 de abril de 1974 e nos anos posteriores. Estas vozes, ao longo do discurso, variaram entre entusiasmo e decepção, ao relembrar os acontecimentos.

E a rua era a mesma rua. Ou pelo menos eu assim desejava que fosse. A Avenida da Guerra Peninsular mantinha o mesmo tráfego intenso, a meio do trajecto encontrava o mesmo monumento em pedra lioz, representando uma águia a voar sobre a ameaça de espadas, e bem lá ao fundo, encontrava-se o mesmo café dos cinemas onde eu tinha previsto aguardar pelos meus companheiros de faculdade durante algum tempo.

JORGE, Lídia. Os memoráveis: romance. Dom Quixote, 2014, p. 61

O excerto acima traz a reflexão acerca da imutabilidade da paisagem destacada por Ana Maria Machado. Tal trecho faz referência ao Monumento aos Heróis da Guerra Peninsular, em Lisboa. A protagonista, após renegar Portugal por conta de problemas familiares, vê-se lançada às lembranças de sua vida no país. Associadamente aos testemunhos dos insurgentes de abril, a autora Lídia Jorge evidencia outro nível de testemunho – o de Ana Maria – que se torna o axioma da narrativa. Por meio do discurso da protagonista, detectamos mágoas antigas e percepções desprovidas de quaisquer tipos de fantasias. Diferentemente das memórias apaixonantes e cruciais dos revolucionários, revela-se, então, um lado não glorioso da Revolução. Isto torna-se evidente no trecho abaixo:posteriores. Estas vozes, ao longo do discurso, variaram entre entusiasmo e decepção, ao relembrar os acontecimentos.

Dirigi-me para as ruas que conduziam ao antigo Memories. Passei pelo mesmo parque, a mesma superfície relvada, o mesmo leão a ser levado pela trela pela mão do mesmo Marquês, expostos lá no alto da mesma pedra. Uma alegria inexplicável empurrava-me Avenida da Liberdade abaixo, e passando sob as árvores, eu tinha a sensação de que fazia um encontro com alguma coisa gémea que injustamente, durante anos, havia evitado.

 JORGE, Lídia. Os memoráveis: romance. Dom Quixote, 2014, p. 71

A personagem elabora e repensa sobre a paisagem observada, quando do seu retorno a Portugal. Portanto, pode-se verificar um atrelamento da paisagem à percepção de um indivíduo; qual seja, a forma como cada personagem visualiza e interpreta a paisagem, tornando-a algo individual. Durante a narrativa, entra em cena uma variedade de personagens e suas versões sobre a Revolução dos Cravos. Compreende-se então que a questão da memória – presente no próprio título da obra – é um dos aspectos recorrentes na narrativa. Isto é demonstrado não somente pelas figuras entrevistadas, intituladas “memoráveis”, como também pelos entrevistadores, encarregados que eram de levar o conhecimento sobre a revolução para o público da CBS, no ano de 2004, como o excerto bem ilustra:

Detinha-se em frente ao Parque de São Sebastião, e pasmava por não haver pelas paredes uns outdoors que narrassem como por ali abaixo, cerca das duas da madrugada, trinta anos antes, tinham descido cento e vinte soldados, em marcha silenciosa, para arrombarem a porta do Quartel-General.

JORGE, Lídia. Os memoráveis: romance. Dom Quixote, 2014, p. 137

No trecho em questão, os jornalistas – neste caso, Ana Maria, Margarida Lota e Miguel Ângelo – atravessam as ruas de Lisboa afinando o olhar, de forma a retornar às paisagens que foram palco para a Revolução dos Cravos. Neste romance, as personagens são de suma importância, pois disponibilizam ao leitor uma restauração da verdade sobre o 25 de abril, revendo-a sob o prisma da história oral. Todas, tendo em vista restaurar o momento histórico, contribuem para compor um amplo mosaico com seus testemunhos.  Haja vista a digressão do – hoje, advogado das “causas perdidas” – Ernesto Salamida:

Que querem que vos diga? Vocês são tão jovens que mal podem imaginar como era a vida de então. Na altura, Lisboa era uma cidade mal iluminada, as ruas tortas tinham pavimentos tortos, o lixo empilhava-se em torno dos caixotes, pela noite fora, os gatos viravam-nos com estrondos de zinco, as cascas das laranjas de mistura com as borras de café enlameavam-nos os pés. Quando entrámos na Rua da Misericórdia, era a hora de as prostitutas beberem ginjinha, só bares desse tipo se encontravam abertos e deles vinha rumor, e além de uns moços deslizando pelas travessas, também aí, pela rua acima, os passeios estavam desertos…

JORGE, Lídia. Os memoráveis: romance. Dom Quixote, 2014, p. 178.

Segundo o Dr. Salamida, um dos entrevistados, a paisagem lisboeta pré-revolucionária era desleixada e abandonada pelo poder público em questão. Refere-se também a grupos sociais marginalizados, como, por exemplo, as prostitutas. Neste trecho temos a desromantização da narrativa histórica, mostrando o outro lado de Lisboa.

Com base nisso, podemos compreender que n’Os memoráveis existe uma relação entre as identidades das personagens e os espaços relatados na obra. Temos Lisboa como a paisagem principal, na qual se desenvolve o ambiente da narrativa. Nesta obra, são estabelecidos múltiplos espaços para receber um conjunto de personagens distintas, resultando em níveis ficcionais adaptados uns aos outros. A narrativa, juntamente com a paisagem, constrói um ambiente propício para o resgate histórico da Revolução.

Jessica Alcantara de Vasconcelos

Graduada em Letras / Literaturas pela Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora-júnior bolsista do Real Gabinete Português de Leitura / Fundação Calouste Gulbenkian (2020/2021) com o projeto: Memória e testemunho, paisagens entrelaçadas.

Elisabeth Fernandes Martini

Doutora em Literatura Comparada, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Atua como professora de Língua Portuguesa, na modalidade PEJA, pela Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro. É pesquisadora pelo Polo de Pesquisas do Real Gabinete Português de Leitura, desde 2016.

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São Sebastião da Pedreira é uma antiga freguesia portuguesa de Lisboa. Atualmente é denominada de Avenidas Novas.

No Quartel do Carmo deu-se o epílogo da Revolução dos Cravos, culminando com a rendição do último presidente do Conselho do Estado Novo, Marcello Caetano (1906-1980), pondo fim a 48 anos de ditadura, em Portugal. Desde 2014, funciona no local o Museu da Guarda Nacional Republicana.

É uma das principais avenidas da cidade de Lisboa, em Portugal. A Avenida da Liberdade liga a Praça dos Restauradores à Rotunda do Marquês de Pombal.

A Avenida 24 de Julho relembra as lutas ocorridas entre absolutistas e liberais em 24 de julho de 1833, na qual, o Duque de Terceira e seus combatentes, após transpassarem o Tejo, adentram Lisboa e declaram a vitória dos liberais sobre os miguelistas

Localizada à entrada do Campo Grande, na Praça de Entrecampos, em Lisboa o Monumento aos Heróis da Guerra Peninsular é uma escultura dedicada à Guerra Peninsular, que foi um conflito militar entre o Primeiro Império Francês e a aliança do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda, do Império Espanhol e do Reino de Portugal e Algarves pelo domínio da Península Ibérica durante as Guerras Napoleónicas.

O Largo do Carmo encontra-se na zona do Chiado. Neste largo, estão as ruínas do Convento do Carmo (construído no século XIV). Atualmente conta com o Museu Arqueológico do Carmo.

A Rua Garret é o polo intelectual de Lisboa (século XX). É ligada pelo Largo do Chiado e pela Rua do Carmo. Nela estão situados grandes teatros como, por exemplo, o Teatro Nacional de São Carlos, Teatro São Luiz e o Teatro da Trindade. Conta com diversas livrarias famosas.

A Rua do Carmo situa-se na Baixa lisboeta. Inicia-se no cruzamento da Rua Garret com a Rua Nova do Almada e é finalizada no Largo do Rossio.

Popularmente conhecida como Rossio, a Praça de D. Pedro IV faz parte da Baixa de Lisboa, sendo um importante elemento da cidade

A Rua Augusta é a rua mais famosa de Lisboa. Foi denominada como uma homenagem à augusta figura do rei D. José I. Liga a Praça do Comércio e a Praça D. Pedro IV (Praça do Rossio)

O Estado Novo estabeleceu-se como um regime político ditatorial, consolidando-se em Portugal durante 41 anos contínuos, sendo oficializado com a Constituição de 1933 até a sua queda pela Revolução de 25 de Abril de 1974. Foi um regime autocrata, corporativista de Estado e autoritário.

A Revolução dos Cravos foi um movimento que derrubou o regime salazarista em Portugal, em 1974, com o intuito de estabelecer as liberdades democráticas, promovendo transformações sociais no país. Após o golpe militar de 1926, foi estabelecida uma ditadura no país.

JORGE, Lídia. Os memoráveis: romance. Dom Quixote, 2014.

Disponível em: https://www.amazon.com.br/Os-Memor%C3%A1veis-L%C3%ADdia-Jorge-ebook/dp/B00IRMNXKW

Agradecemos ao artista plástico Gabriel AV as fotos de Covilhã.