De volta à Cidade Invicta pelos braços de Júlio Dinis
De volta à Cidade Invicta pelos braços de
Júlio Dinis
Publicado como folhetim em 1867, Uma família de Ingleses, subintitulado Cenas da Vida do Porto, sugere um verdadeiro roteiro pela cidade invicta, levando o leitor pela mão a seus pontos mais emblemáticos. Já na publicação em livro, o romance passaria a nominar-se Uma Família Inglesa (1868) e, dada a repercussão da obra, causaria impacto no percurso de seu autor, que à altura utilizava o pseudônimo que viria a eternizá-lo.
Joaquim Guilherme Gomes Coelho, seu nome de batismo, mostra-se um legítimo “tripeiro” e situa na cidade que o viu nascer a história de amor entre Carlos Whitestone, filho de um comerciante inglês, e Cecília, filha de um guarda-livros português.
Os jovens se conhecem em uma noite de carnaval e, à medida que se envolvem afetivamente, promovem a aproximação de seus pais para além do plano profissional. Até o final da narrativa, a relação entre o patrão e o empregado há de transmutar-se em convivência entre iguais, acenando para a mobilidade entre as classes. Nesse processo, a paisagem oferece o seu especial contributo para o desenrolar da narrativa, como veremos em seguida.
Desde o início do romance, a cena urbana portuense dialoga com as iniciativas das personagens. Haja vista o vaguear de Carlos Whitestone e seus amigos pela cidade, em pleno Carnaval de 1855. Na época, o restaurante Águia de Ouro, no Largo da Batalha dá o tom boêmio à agitada vida noturna portuense:
DINIS, Júlio. Obras Completas. Porto:
Lello & Irmão Editores, [19–]. 2 v. pp. 604-605
DINIS, Júlio. Obras Completas. Porto:
Lello & Irmão Editores, [19–]. 2 v. pp. 649-650
Esta nossa cidade — seja dito para aquelas pessoas que porventura a conhecem menos — divide-se naturalmente em três regiões, distintas por fisionomias particulares. A região oriental, a central e a ocidental.
No primeiro predominam a loja, o balcão, o escritório, a casa de muitas janelas e de extensas varandas, as crueldades arquitetónicas, a que se sujeitam velhos casarões com o intento de os modernizar; o saguão, a viela independente das posturas municipais e à absoluta disposição dos moradores das vizinhanças; a rua estreita, muito vigiada de polícias; as ruas em cujas esquinas estacionam galegos armados de pau e corda e os cadeirinhas com o capote clássico; as ruas ameaçadas de procissões, e as mais propensas a lama; aquelas onde mais se compra e vende; onde mais se trabalha de dia, onde mais se dorme de noite. Há ainda neste bairro muitos ares do velho burgo do Bispo, não obstante as aparências modernas que revestiu.
O bairro oriental é principalmente brasileiro, por mais procurado pelos capitalistas que recolhem da América. Predominam neste umas enormes moles graníticas, a que chamam palacetes; o portal largo, as paredes de azulejo — azul, verde ou amarelo, liso ou de relevo; o telhado de beiral azul; as varandas azuis e douradas; os jardins, cuja planta se descreve com termos geométricos e se mede a compasso e escala, adornados de estatuetas de louça, representando as quatro estações; portões de ferro, com o nome do proprietário e a era da edificação em letras também douradas; abunda a casa com janelas góticas e portas retangulares, e a de janelas retangulares e portas góticas, algumas com ameias, e o mirante chinês. As ruas são mais sujeitas à poeira. Pelas janelas quase sempre algum capitalista ocioso.
DINIS, Júlio. Obras Completas. Porto:
Lello & Irmão Editores, [19–]. 2 v. p. 621-622
DINIS, Júlio. Obras Completas. Porto:
Lello & Irmão Editores, [19–]. 2 v. p. 621-622
Distingue-se a Cedofeita das demais regiões, por ser uma área nobre, onde reside a família do patrão. O termo “ilustre” modaliza a personagem e estende-se a todo o bairro, cujo cenário reflete o requinte daqueles que pertencem a um extrato superior.
São os moradores ingleses chamados de “hóspedes” pelo narrador, o que nos permite colher mais uma informação com viés sociopolítico. Os séculos de “parceria” entre ingleses e portugueses ajudaram a consolidar uma sutil estrutura de dominação que se reflete espacialmente. Mesmo que o quadro geopolítico espelhe a assimetria entre os atores, a afabilidade dos anfitriões – no caso, os portugueses – sugere a consciência que têm da contribuição estrangeira para a economia local, a começar pela geração de empregos.
Por ser Mr. Whitestone um empreendedor, goza dos privilégios de classe e dispõe de um quadro de funcionários, dentre os quais Manuel Quintino. O guarda-livros goza de uma posição invejável na hierarquia da empresa, o que pressupõe uma qualificação compatível com a importância do cargo que ocupa. Por conseguinte, sua habitação privilegia o quesito “conforto”; o bem mais caro para as classes médias:
DINIS, Júlio. Obras Completas. Porto:
Lello & Irmão Editores, [19–]. 2 v. p. 689
[Manoel Quintino] atravessava a cidade até a Ribeira; seguia depois pela margem direita até Campanhã; chegado ao Esteiro, tomava pela estrada de cima, que o levava ao jardim de S. Lázaro, e enfim recolhia-se à casa. […] A primeira diversão operou-a só à vista do mercado de peixe, na Ribeira. As lanchas valboeiras tinham naquele instante chegado ao cais. As regateiras, os compradores particulares e os pescadores que vendiam, animavam o mercado com movimento e vozearia.
DINIS, Júlio. Obras Completas. Porto:
Lello & Irmão Editores, [19–]. 2 v, p. 759
DINIS, Júlio. Obras Completas. Porto:
Lello & Irmão Editores, [19–].2 v, p.759-760
Ruínas do Mosteiro da Serra do Pilar, retratadas pelo escocês Frederick Willian Flower, entre 1849 e 1859
Em seguida, chega à fonte do Carvalhido, ainda hoje conhecida, segundo o Arquivo Municipal do Porto, como fonte Nove de Julho, da Falperra ou do Cano: “Ao chegar à fonte do Carvalhido, subiu uns degraus de pedra que ali há, e bebeu, mesmo do caneiro, alguns goles de água; coisa que nunca se esquecia de fazer, porque tinha fé particular nas virtudes medicinais daquela excelente água.”
DINIS, Júlio. Obras Completas. Porto:
Lello & Irmão Editores, [19–].2 v, p.761
Vista aérea do estuário do Douro, Rio Douro, Porto.
Manuel Quintino compreende que “a paisagem compensa bem os privados de gozar as belezas mais celebradas por viajantes e poetas, as análogas das quais só a nossa cegueira nos não deixa às vezes a ver a dois passos da porta.” A mudança de horizontes refere a mobilidade social, que possibilita, ao final da narrativa, que os filhos do patrão e do empregado venham a se casar.
Como pudemos perceber nesse passeio pelo Porto com Júlio Dinis, a paisagem fala. Ela fala da situação política de Portugal, em determinada época (as lutas liberais); fala de costumes e tradições do povo (os pescadores, na Ribeira); fala de condição e classe, quando somos sabedores do que se passa nos lugares públicos (a Bolsa de Valores) e privados (as casas de ingleses, portugueses e “brasileiros”).
Por isso, o autor investiu tanto nas descrições, no correr da narrativa: para nos brindar com uma visão pormenorizada da paisagem portuense. Paisagem essa que se torna referência de tempo e lugar, graças à intervenção humana, que constrói e demole monumentos e logradouros, refazendo ou modificando a malha urbana, e faz da Cidade Invicta motivo de orgulho para seus habitantes e, por conseguinte, para todos os portugueses.