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Testemunha da vertigem: o olhar de Júlia Lopes de Almeida sobre um Rio de Janeiro em (re)construção

Testemunha da vertigem: o olhar de

Júlia Lopes de Almeida

sobre um Rio de Janeiro em (re)construção
O Rio de Janeiro ardia sob o sol de dezembro, que escaldava as pedras, bafejando um ar de fornalha na atmosfera. Toda a rua de São Bento, atravancada por veículos pesadões e estrepitosos, cheirava a café cru. Era hora do trabalho.
ALMEIDA, Julia Lopes de. A fallencia. Rio de Janeiro: A tribuna, 1901

Embora não seja conhecida pelo público geral, Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) é considerada uma das mais importantes escritoras do Brasil, especialmente no que se refere à época denominada Belle Époque, compreendida entre o final do século XIX e início do século XX.

Podemos notar uma relação intensa da autora com a cidade do Rio de Janeiro, onde nasceu. A escritora morou um período no estado de São Paulo, um tempo em Lisboa e depois fixou residência no bairro de Santa Tereza, no Rio. Teve quatro filhos e foi autora de mais de 30 obras publicadas. Defendia a abolição, a educação e o trabalho feminino. Júlia ocupou por muitos anos o papel de cronista no jornal O Paiz , um dos mais importantes da época. Neste jornal publicava diversos textos cujo tema principal era a cidade, sua urbanização e administração, a vida cultural, os cuidados com as matas e jardins.

É muito nítida a conexão da autora com a cidade do Rio de Janeiro. Não apenas devido ao seu engajamento político, mas também pela escolha do espaço urbano carioca como espaço ficcional de suas narrativas. As características da cidade podem ser encontradas constantemente em seus escritos, onde o espaço público é descrito de maneira realista (não apenas a área nobre e central, mas também o subúrbio).

Por meio de alguns trechos de seu romance A falência, convido-o(a) a descobrir os encantos e desencantos das paisagens cariocas sob o olhar minucioso dessa mulher fascinante, que registrou em seus escritos a memória da cidade em uma época que praticamente se perdeu na história.

A falência é o romance de maior sucesso da autora e nos oferece um panorama da então capital nacional de 1891, bem como de sua sociedade em formação sob a ótica da crescente burguesia urbana, na época do boom do café. Francisco Teodoro, ambicioso comerciante cafeeiro, casa-se com a bela Camila, uma jovem de família simples. Seus filhos crescem e a sua empresa prospera por muitos anos, o que possibilita à família um conforto cada vez maior. Absorto no trabalho, Teodoro acaba deixando de lado a atenção à família e sua esposa se vê envolvida amorosamente com o médico de confiança, Dr. Gervásio. Tudo corria bem até que transações mais arriscadas levam Teodoro à falência e colocam toda a família em uma situação social de dificuldade. Através das paisagens descritas neste romance, iremos experimentar um pouco do Rio de Janeiro deste período.

Para compreender o cenário cultural em que se passa a obra A falência, precisamos recordar que a passagem do século XIX para o início do século XX é um período marcado por uma forte mudança de comportamentos, hábitos e costumes. A Reforma Urbana sanitarista influenciou e remodelou a paisagem da cidade, derrubando morros, alargando vias e realocando parte da população.

Igreja de Santa Luzia. Início do aterro com a demolição do Morro do Castelo, 1921

No romance A falência, podemos encontrar a descrição de bairros, ruas, praças, porto, praias, teatros cariocas. Acompanhemos agora o passeio do Dr. Gervásio, médico da família, quando Francisco Teodoro pediu que visitasse um de seus empregados que estava doente em casa. Pelo olhar curioso de Dr. Gervásio (observe que a figura do médico não era mera coincidência: neste período, a medicina e o discurso cientificista foram alçados a um patamar de grande respeito, afinal, era a época das reformas higienistas e a ciência tinha a palavra final), Júlia nos mostra um pouco da situação precária da região central do Rio de Janeiro. Vejamos um trecho que aponta o olhar da elite para um dos locais mais pobres da cidade:

[…] becos sórdidos, marinando pelo morro; casas acavaladas, de paredes sujas; janelas onde não acenava a graça de uma cortina nem aparecia um busto de mulher; caras preocupadas, grossos troncos arfantes de homens de grande musculatura, e o ruído brutal de veículos pesadões, faziam daquele canto da sua cidade, uma cidade alheia, infernal, preocupada bestialmente pelo pão.
ALMEIDA, 2019, pp. 79-80.
Cortiço na região central do Rio de Janeiro na Belle Époque.

Ainda sobre essa parte menos privilegiada da cidade: “Continuando o caminho, via de um lado e de outro casas desconfiadas, corredores soturnos, escadas escorregadias, que faziam lembrar o mistério e o crime. Assaltou-o a ideia de andar por ali à noite. […] Aos seus instintos repugnou logo esse mergulho na lama e rejeitou a lembrança, observando se a rosa da sua lapela ainda estaria fresca.ALMEIDA, 2019, p. 85.

Júlia denuncia os problemas sociais e a miséria por meio do desgosto que a pobreza daquela região provocava no Dr. Gervásio.

Estalagem na Rua do Inválidos.
Outro aspecto interessante que a autora observa diz respeito às pessoas que ocupavam as diferentes paisagens da cidade. Homens e mulheres não ocupavam os mesmos espaços. Ao focar no trabalho de Teodoro, comerciante de café, A falência nos mostra o ambiente de fora de casa: da empresa comercial e do trajeto até lá. Há um deslocamento maior das personagens masculinas, que transitam sem restrições entre os ambientes. É por meio disso que a voz narrativa oferece ao leitor uma vasta descrição do espaço público, ressaltando o contraste entre a pobreza dos bairros periféricos em oposição à casa de Francisco Teodoro, rico e confortável:

A não serem as africanas do café e uma ou outra italiana que se atrevia a sair de alguma fábrica de sacos com dúzias deles à cabeça, nenhuma outra mulher pisava aquelas pedras, só afeitas ao peso bruto. Dominava ali o trabalho viril, a força física, movida por músculos de aço decididos a ganhar duramente a vida. E esses corpos de atletas, e essas vozes que soavam alto num estridor de clarins de guerra, davam à velha rua a pulsação que o sangue vivo e moço dá a uma artéria, correndo sempre com vigor e com ímpeto.

ALMEIDA, 2019, p.24.
Operários trabalham no interior da fábrica Leandro Martins Cia, no centro do Rio de Janeiro, no início do século XX.

A rua, o espaço público, é caracterizado como masculino, conforme descrição acima. Podemos encontrar aspectos naturalistas no trecho em que o narrador compara as ações dos trabalhadores a de animais, uma vez que eles “serpeavam por meio de tudo aquilo, como formigas em correiçãoALMEIDA, 2019, 24, embora a obra de Júlia Lopes não deva ser reduzida ao naturalismo, uma vez que também apresenta traços românticos e realistas.

Os homens tinham liberdade para ir e vir. Já as mulheres da alta burguesia se deslocavam menos, saindo de casa apenas para os momentos de divertimento em família. Apenas mulheres pobres, negras e imigrantes trabalhavam nas ruas naquele período.

Continuando o passeio de suas personagens pelos encantos e desencantos do Rio de Janeiro, a escritora utiliza-se dos contrastes entre as regiões para nos fornecer uma ampla visão da cidade, agora mostrando um pouco do percurso e do luxo das regiões mais ricas: “No percurso da Carioca à praia de Botafogo, Teodoro foi assim reconstruindo a sua vida (…) O mar, muito azul, paletado de ouro aqui, desenhava já acolá em grandes sombras negras o perfil dos morros (…) O seu palacete era um dos mais lindos de Botafogo.ALMEIDA, 2019, p. 43.

Um exemplo de palacete na Praia de Botafogo, no caso, da família Guinle, em 1920.

Diante desse breve percurso pelas paisagens cariocas, podemos compreender que a autora denuncia os vícios da capital (mostrando a dicotomia entre áreas ricas e pobres, saudáveis e “doentes”, entre espaços masculinos e femininos). A figura do Dr. Gervásio é emblemática, pois ele representa o discurso médico, que se enojava com as regiões mais pobres e fétidas, enquanto vivia em uma situação de hipocrisia moral (já que é o amante de Camila, traidor da confiança de Teodoro) do lado luxuoso da cidade.

A preocupação da elite intelectual daquele período era a definição do Brasil como nação e povo diante do mundo “civilizado”. Acreditavam na urgência em salvar o país e consideravam-se verdadeiros missionários do progresso. Esse passou a ser um dos grandes temas da intelectualidade modernizadora da Belle Époque: o esforço em estabelecer relações entre a paisagem e a formação da cultura e da sociedade do país a fim de nos posicionar como país civilizado diante do mundo.

Para a cultura eurocêntrica do final do século XIX e início do século XX, a grandeza natural brasileira não era mais suficiente. Toda selvageria e vastidão não dominada do nosso território passou a ser considerada um testemunho de nossa precariedade e atraso em relação ao mundo dito civilizado. Dessa forma, a alteração da paisagem por meio da técnica e dos avanços científicos tornou-se um símbolo de desenvolvimento.

Júlia Lopes de Almeida se mostra alinhada à intelectualidade de seu tempo, a favor do que entendia por progresso e civilização: se mostra entusiasmada com a inauguração do Teatro Municipal, por exemplo. Mas desde então alertava sobre a necessidade de conservação e preservação da natureza, contra uma prática meramente exploratória e predatória, tratando de questões e conflitos com os quais temos que lidar até hoje. Com seus escritos, lutou contra a mera derrubada do Morro de Santo Antônio e defendia a arborização do local. Chegou a dedicar um livro inteiro a esse tema, chamado A árvore, haja vista a importância que dava à questão da ecologia já naquele período.

Os espaços representados neste romance desenham vários aspectos da paisagem carioca e contam a história da modernidade desigual em um momento de reconstrução da cidade, bem como reformulação de hábitos e mentalidades. Assim, resgatar a obra de Júlia é resgatar um fragmento literário e paisagístico do Rio de Janeiro da virada do século.

Flávia Marçal Meslin
Carmem Lucia Negreiros de Figueiredo Souza 

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Indicamos as seguintes edições:
ALMEIDA, Julia Lopes de. A fallencia. Rio de Janeiro: A tribuna, 1901 e ALMEIDA, Julia Lopes de. A falência. Prefácio de Luiz Ruffato. 1ª edição. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2019.

Para saber mais sobre esse jornal em:
https://bndigital.bn.gov.br/artigos/o-paiz/

Agradecemos ao artista plástico Gabriel AV as fotos de Covilhã.