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São Luís do Maranhão sob a lente de Josué Montello

São Luís do Maranhão sob a lente de

Josué Montello

lugar, exílio, memória

São Luís, 17 de abril [1973] 
Porque, para mim, as velhas ruas de São Luís, tão belas, tão harmoniosas, são todas de alvorada, sempre que as vejo ou as recordo. Aprendi a amá-las, desde menino, inundadas de luz matinal, com o sol a se refletir nas suas fachadas de azulejos, e é assim que sempre as recomponho, nas minhas evocações nostálgicas, quando me deixo ir por elas, olhando o mapa de São Luís sob o vidro de minha mesa. De noite, se por elas me extraviava, tinha a companhia romântica de um piano, que parecia ir comigo ladeira abaixo ou ladeira acima, tocando as valsas do Inácio Cunha ou as polcas do Pedro Cromwell. […] Certo, muita coisa ali está mudando, a ponto de eu me perder nas velhas ruas de minha infância e juventude. Mas a memória atenta repõe a cidade de outrora na cidade modificada, e vou novamente a pé, de minha casa, na Rua dos Remédios, ao Liceu Maranhense, entre a Praia Grande e o Desterro, todos os dias, quer na ida, quer na volta, e sempre encontro, no velho itinerário, algo que ficou comigo para a hora de recordar.

(MONTELLO, Josué de Sousa. Diário completo. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998, p. 1246.)
Uma das características mais contundentes que giram em torno da figura de Josué Montello diz respeito à sua devoção à terra natal: São Luís do Maranhão. Isso porque grande parte do cenário de quase toda sua obra ficcional tem na capital maranhense seu foco por excelência, haja vista a obra-prima Os tambores de São Luís, publicada em 1971 e Os degraus do paraíso, seis anos antes, em 1965. Pelo artifício da memória, sua produção literária envereda pela história, pelas tradições, pelos costumes, pela identidade do Maranhão, estampada na fusão entre o mítico, o histórico e o ficcional.

São Luís pulsa e se derrama na essência de meus romances. De onde concluo que não fui eu apenas, com a minha língua materna, que escrevi […] foi também minha terra que os escreveu comigo, com seus tipos, com seus sobrados, com suas ruas estreitas, com suas ladeiras, com a luz inconfundível que se desfaz ao fim da tarde sobre seus mirantes, seus telhados, seus campanários, na Praia Grande, no Desterro, no Largo do Carmo, no Cais da Sagração. 

(MONTELLO, Josué de Sousa. Diário completo. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998, p.1041.)
São Luís a partir da Baía de São Marcos
Ao contrário de seus colegas de geração, Josué Montello foge do regionalismo que marcaria a segunda metade do século XX no Brasil, após a Semana de Arte Moderna, e abraça o romance citadino, num estilo marcadamente machadiano, fazendo ressurgir, deste modo, uma tradição romanesca já considerada obscurecida. Ao procurar transpor, portanto, o regional, Josué Montello acaba por adentrar o universal, revelando e realçando a complexidade das relações humanas.

29 DE DEZEMBRO (1955)
Tenho voltado a pensar, nestes últimos dias, na minha obra de romancista. Andei a traçar o plano de um conjunto de romances que se passariam em São Luís, mas sem o caráter restrito dos romances regionais. Pelo contrário; dando a esses romances a amplidão da obra universal. Não pretendo encadeá-los, […]. Cada livro há de ser autônomo, espelhando uma realidade particular. E ocupando os vários aspectos urbanos de uma região, para que daí resulte um vasto mural, refletindo os problemas e as angústias de meu tempo. Repito aqui o que já disse em outra oportunidade: ao escritor, só cabe, escrevendo, uma destas missões: ou testemunhar, ou denunciar. Hei de denunciar, mas hei, sobretudo, de testemunhar, para que minha obra possa ser lida pelo tempo adiante como imagem das épocas em que vivi.

(MONTELLO, Josué de Sousa. Diário completo. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998, p. 312.)
Praça Benedito Leite

É o que verificamos em Largo do Desterro, publicado em 1981, exatos dez anos após Os tambores de São Luís, sua obra-prima. O romance, que se dedica a narrar “a vida eterna do Major Ramiro Taborda”, a partir do seu centenário até a suposta morte aos 152 anos, não se quer inverossímil, dada a presença das quatro epígrafes que parecem justificar o fato inusitado da longevidade do protagonista, a exemplo de trecho retirado da História da Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão, de autoria de Claude d’Abbeville. Por meio de flashbacks, temos acesso a acontecimentos que marcaram o passado do Major Taborda, desde alegrias, perdas e angústias até o casamento inusitado com uma jovem do interior do Maranhão. 

Por ocasião do aniversário de cem anos, que dá início à história, evidenciamos o primeiro lugar de predileção do protagonista, alicerçado na dicotomia sagrado x profano. A Igreja de Santaninha se contrapõe ao “tempo do entrudo”, festa popular que precedia a entrada da Quaresma, equivalente ao que depois se entenderia como “Carnaval”. Tal dicotomia se revela mais aguçada na medida em que a missa de seu centenário deveria ser celebrada em pleno domingo de Carnaval em que as ruas da cidade histórica se viam à mercê dos brincantes:

Tinas de água imunda nas esquinas; restos de cabacinhas e limões-de-cheiro; seringas quebradas; restos de anilina nas pedras do calçamento; latas de lixo atulhadas de cacos de vidros, de garrafas vazias, de sobejos de comida, de trapos coloridos, de pedaços de papelão. Dois lampiões apagados, na subida para a Rua Grande. E o rumor de uma carruagem, para os lados da Rua da Paz, à altura da igreja de São João.

(MONTELLO, Josué de Sousa. Largo do Desterro. Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira, 1981, p. 23.) 

Desenho de Jean-Baptiste Debret (1768-1848) – Festa do Entrudo

A igreja de Santaninha constituirá o lugar de predileção do protagonista, visto ter sido nela que se realizaram o seu batismo, a crisma, a primeira comunhão, o casamento com Minervina, o batismo dos filhos e o casamento da filha adotiva Celeste. Nessa igreja, Deus abençoará o seu centenário, convidando o leitor a experimentar os anos que se seguirão desse marco na narrativa. Páginas à frente, quando do retorno a São Luís, após a enchente na região de sua fazenda no interior do estado, novamente a famosa igreja será lembrada, ainda que pelos fios da memória, dado o seu desaparecimento em prol da modernidade. O mal-estar que se apodera do major decorre não diretamente do fato de que a sua “igreja” tenha desaparecido, mas de sua proximidade da morte em razão do esquecimento ou da falta de lucidez. O lugar de memória se torna mais importante do que o lugar físico, geográfico. 

Além da Igreja de Santaninha, outro lugar de predileção do major é o sobrado, localizado no Largo do Desterro, onde vive do primeiro casamento até a morte de Minervina, cujo retrato encerrou num aposento do sobrado de onde resgataria anos mais tarde, já refeito da traição da esposa.

Aqui em frente tem o amigo o nosso Largo do Desterro, com esta bela igreja. Ali adiante, o rio Bacanga. A lua por cima dos telhados escuros. Mais longe, o mar. E este sossego, esta paz, este aconchego. Parabéns, meu caro Major. Agora compreendo por que chegou aos cem anos, e ainda vai viver outro tanto, com a proteção de Deus

(MONTELLO, Josué de Sousa. Largo do Desterro. Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira, 1981, p. 54.) 

Largo do Desterro
Uma das grandes paixões de Taborda e de quantos a cortejavam é a Calu Malafaia, sedutora morena, casada com Virgilinho Malafaia e que ganhará um tópico exclusivo no romance, dedicado a retratar a sua figura já em idade mais avançada, viúva e símbolo eterno do amor para o Major centenário. O curioso é perceber a plena identificação do lugar com a personagem, moradora da Rua Formosa ou Rua Afonso Pena, na toponímia oficial.
O sobrado da Rua Formosa, na esquina da Ladeira do Quebra-Costa, olhava para o Largo do Carmo. Dali, sem precisar sair de sua cadeira de embalo, com os pés num tamborete, Calu Malafaia dominava a Rua Grande, quase todo o Largo do Carmo, a igreja, o Convento, as árvores verdes, o bondezinho que vinha do Largo do Palácio, puxado pela parelha de burros. A idade, se lhe embranquecera a cabeleira bonita e riscara de rugas o seu rosto moreno, não lhe desfizera de todo a beleza sensual, que os olhos negros ainda retinham, com um brilho extremamente vivo, sobretudo no momento em que a velha os entrefechava, coando-lhe o fulgor por entre os cílios negros.
(MONTELLO, Josué de Sousa. Largo do Desterro. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1981, p. 101.)
Rua Formosa

Em razão da solidão atroz da casa deserta: sem o “filho” Filinto, morto em razão de uma doença congênita; sem Celeste, rapidamente sugada pela gripe espanhola; sem o genro, alvejado com um tiro de revólver no peito em pleno ato de sonambulismo e diante da tentativa frustrada de suicídio, o Major foge, no tópico IX – “Longe do mundo” -, para a fazenda no interior do estado e lá constrói o novo lugar de predileção, onde espera ser enterrado. Novas amizades e novas companhias são tecidas, a começar pela aproximação de Tininha, filha mais nova de sua caseira Sinhá Libânia. 

Lá tentará reconstruir a vida de modo a não se sentir mais tão solitário. Entretanto, o exílio não é uma condição da qual alguém possa simplesmente fugir, visto que persegue o exilado e o assombra com constantes lembretes de sua situação. No caso do major, isso acontece em decorrência da morte das pessoas que conheceu na fazenda e com as quais passou a conviver:

O sobrado da Rua Formosa, na esquina da Ladeira do Quebra-Costa, olhava para o Largo do Carmo. Dali, sem precisar sair de sua cadeira de embalo, com os pés num tamborete, Calu Malafaia dominava a Rua Grande, quase todo o Largo do Carmo, a igreja, o Convento, as árvores verdes, o bondezinho que vinha do Largo do Palácio, puxado pela parelha de burros. A idade, se lhe embranquecera a cabeleira bonita e riscara de rugas o seu rosto moreno, não lhe desfizera de todo a beleza sensual, que os olhos negros ainda retinham, com um brilho extremamente vivo, sobretudo no momento em que a velha os entrefechava, coando-lhe o fulgor por entre os cílios negros.

(MONTELLO, Josué de Sousa. Largo do Desterro. Rio de Janeiro: 
Editora Nova Fronteira, 1981, p. 216.)

Com o dilúvio que acomete a região, o major se vê obrigado a retornar ao sobrado no Largo do Desterro em São Luís, após ter presenciado a devastação pela chuva, com a cena da morte de bichos e pessoas no seu entorno:
E já na manhã seguinte, o próprio velho deu o exemplo, apesar do muito que sofria com os destroços da casa que fora de seu pai e de seu avô, e que por mais de um século permanecera em seu poder: pôs-se a limpar-lhe a lama e o barro, ao mesmo tempo em que, fora, defronte do alpendre, o fogo ia comendo os móveis antigos que não podiam ser restaurados.

(MONTELLO, Josué de Sousa. Largo do Desterro. Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira, p. 231-232.) 

No capítulo V do tópico “A volta”, que se caracteriza justamente pelo retorno ao sobrado, o Major Taborda sente o estranhamento de voltar a sua cidade natal e constatar o progresso galopante após os vinte anos de ausência. Tenta mostrar a Tininha o outro lado de São Luís pela sacada da janela, de modo a recuperar a São Luís de outrora.
Deste lado – disse ele, após um silêncio – é a Rua da Palma. Vai até a Avenida Maranhense, com sobrados de um lado e de outro. À minha esquerda é o Largo do Desterro. Não é bonita a pracinha, com a igreja ali defronte, e esta paz, e este silêncio?

MONTELLO, Josué de Sousa. Largo do Desterro. Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira, 1981, p. 240. ) 

Avenida Maranhense
O ter retornado a São Luís não significou o fim do exílio territorial, visto que a São Luís das carruagens e dos chafarizes fora suplantada pela São Luís dos automóveis e do telefone. Mesmo com a tentativa de se acostumar ao atordoamento da cidade moderna, as memórias da cidade antiga invadem o pensamento do major que se sente desajustado, mergulhado no passado em que seus amigos e conhecidos estavam vivos, tanto quanto os costumes e as tradições de sua geração.
Fora debalde também que, à noite, dera uma volta lenta pelas ruas escuras dos arredores do Largo do Ribeirão, tentando encontrar, por cima de uma porta, a lanterna vermelha das quitandas de peixe frito. Onde as pilhas de melancia da orla do Cais da Sagração? E as cadeiras nas calçadas, nas noites de luar? Os amigos, mortos; os costumes, mudados. Em vez das carruagens douradas, que tilintavam os guizos de seus cavalos, por entre o tinido das ferraduras, rolavam nas pedras das ruas os automóveis barulhentos, que enchiam o ar de ruído e de fumaça. Que fora feito dos seresteiros de outrora, que cantavam com tão bonita voz ‘A gentil Carolina era bela’? Tudo acabado, tudo esquecido. E por quê?

(MONTELLO, Josué de Sousa. Largo do Desterro. Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira, 1981, p. 245-246) 

Cais da Sagração
No cemitério, sim, encontra sossego e os amigos já perdidos para a morte. É o que o leitor constata no capítulo V do tópico “A volta”, imerso em rememorações afetivas. À medida que descortinava essa ou aquela sepultura, esse ou aquele parente ou conhecido, o Major tecia os momentos vividos e sobre eles julgava o merecimento ou não de uma prece.
Não foi fácil encontrar rosas vermelhas. Ou mesmo de outra cor. Pela manhã poderia tê-las comprado à porta do Cemitério. Mas já ao meio da tarde, com o sol começando a quebrar para os lados do Bacanga, foi preciso voltar à Rua do Passeio, e ali conseguiu o bonito ramo com que seguiu pela alameda central até o túmulo da Celeste. Dividiu-o ao meio, dispondo uma parte sobre a lápide negra que cobria o túmulo da filha adotiva e do Capitão Ananias, de modo que algumas rosas se alongaram para a lápide contígua, que revestia o túmulo da Minervina e do filho.

(MONTELLO, Josué de Sousa. Largo do Desterro. Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira, 1981, p. 260) 

Rua do Passeio

A sensação de apinhamento, sem a devida espaciosidade para se sentir livre se agrava com a pressão exercida pela vizinhança que acreditava que ele, “um velho pervertido”, teria engravidado a adolescente Tininha. Sentindo-se perseguido e constantemente ameaçado tanto pelos falsos boatos quanto pelas matérias difamatórias, nosso protagonista decide por se casar com Tininha para poder, assim, reaver a sensação perdida de liberdade.

O casamento com Tininha, entretanto, não foi capaz de demover essa sensação de apinhamento. Do mesmo modo que o mundo construído na fazenda ruiu inesperadamente, o lar construído com Tininha começou a desfazer-se logo após o major se adaptar à situação. Enquanto era apenas sua protegida, a adolescente tratava-o de maneira muito carinhosa e, às vezes, até íntima, o que o levou a acreditar que pudesse realmente contrair com ela uma relação matrimonial, todavia, pouco tempo após casar-se com o Taborda, Tininha tornou-se fria e distante. Quando confrontada, confessou a paixão por outro homem e a insatisfação por ainda continuar casada com um velho que prometera “morrer” em um ano. Sentindo-se apinhado e em profunda condição de exílio, dada a transformação do sobrado pelas mãos “modernas” da jovem esposa, o major reconhece que já devia ter morrido há muito tempo.

Dos lugares de pertencimento à experiência do exílio, o Major Taborda se configura no personagem do “desterro”, que se expatria para a fazenda com o intuito de fugir da solidão atroz e que é novamente impelido a abandonar o lugar construído por outro, o mesmo, o sobrado do Largo do Desterro onde fora feliz e infeliz, herói e vítima.

Em nome da felicidade de todos, livra-se do apinhamento que o sufoca e alcança, a partir da decisão de se lançar escada abaixo, a espaciosidade com os braços abertos para a explosão de gargalhadas da Calu Malafaia. Do desterro nasce o asilo do acolhimento.

Quando a maca da Ambulância o recolheu, com um dos médicos a procurar-lhe o pulso enquanto o outro lhe aplicava atarantadamente uma injeção, o Major ainda se debatia no torvelinho das emoções que lhe afluíam à tona da consciência, ao mesmo tempo em que seus braços ainda tentavam encontrar o corrimão para amparar-se na queda. Mas logo esses mesmos braços seguraram as rédeas da parelha, e ele deu por si na boléia da carruagem do Chico Bento, que despencava pela ladeira da Rua do Sol, perseguida pelas bacias de água suja e pelo espoucar das cabacinhas.

(MONTELLO, Josué de Sousa. Largo do Desterro. Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira, 1981, p. 322.) 

Rua do Sol
O prazer de Josué Montello em cantar a terra natal em vários de seus romances equivale ao prazer que nutria quando passava os dedos pelo mapa da cidade e nele descortinava lugares, histórias, amores. A evocação do passado com toda a sua riqueza de detalhes e plasticidade elevou São Luís à categoria de personagem – centro e farol a guiar o escritor pelas vielas da ficcionalidade.
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Quando se tem poder e espaço suficientes para agir com liberdade.
Quando a liberdade é restrita e há a privação do espaço.
Situada no final da Rua do Sol, a Capela de Santana da Sagrada Família ou “Capela de Santaninha” hoje já não mais existe.
Um dos capuchinhos que acompanhou Daniel de La Touche na viagem ao Maranhão, em 1612.
Esse livro consiste não só no primeiro estudo aprofundado acerca da história do Maranhão, mas também numa parte importante do projeto colonialista dos franceses no Brasil.
Agradecemos ao artista plástico Gabriel AV as fotos de Covilhã.