São Luís do Maranhão sob a lente de Josué Montello
São Luís do Maranhão sob a lente de
Josué Montello
lugar, exílio, memória
São Luís, 17 de abril [1973]
Porque, para mim, as velhas ruas de São Luís, tão belas, tão harmoniosas, são todas de alvorada, sempre que as vejo ou as recordo. Aprendi a amá-las, desde menino, inundadas de luz matinal, com o sol a se refletir nas suas fachadas de azulejos, e é assim que sempre as recomponho, nas minhas evocações nostálgicas, quando me deixo ir por elas, olhando o mapa de São Luís sob o vidro de minha mesa. De noite, se por elas me extraviava, tinha a companhia romântica de um piano, que parecia ir comigo ladeira abaixo ou ladeira acima, tocando as valsas do Inácio Cunha ou as polcas do Pedro Cromwell. […] Certo, muita coisa ali está mudando, a ponto de eu me perder nas velhas ruas de minha infância e juventude. Mas a memória atenta repõe a cidade de outrora na cidade modificada, e vou novamente a pé, de minha casa, na Rua dos Remédios, ao Liceu Maranhense, entre a Praia Grande e o Desterro, todos os dias, quer na ida, quer na volta, e sempre encontro, no velho itinerário, algo que ficou comigo para a hora de recordar.
São Luís pulsa e se derrama na essência de meus romances. De onde concluo que não fui eu apenas, com a minha língua materna, que escrevi […] foi também minha terra que os escreveu comigo, com seus tipos, com seus sobrados, com suas ruas estreitas, com suas ladeiras, com a luz inconfundível que se desfaz ao fim da tarde sobre seus mirantes, seus telhados, seus campanários, na Praia Grande, no Desterro, no Largo do Carmo, no Cais da Sagração.
29 DE DEZEMBRO (1955)
Tenho voltado a pensar, nestes últimos dias, na minha obra de romancista. Andei a traçar o plano de um conjunto de romances que se passariam em São Luís, mas sem o caráter restrito dos romances regionais. Pelo contrário; dando a esses romances a amplidão da obra universal. Não pretendo encadeá-los, […]. Cada livro há de ser autônomo, espelhando uma realidade particular. E ocupando os vários aspectos urbanos de uma região, para que daí resulte um vasto mural, refletindo os problemas e as angústias de meu tempo. Repito aqui o que já disse em outra oportunidade: ao escritor, só cabe, escrevendo, uma destas missões: ou testemunhar, ou denunciar. Hei de denunciar, mas hei, sobretudo, de testemunhar, para que minha obra possa ser lida pelo tempo adiante como imagem das épocas em que vivi.
É o que verificamos em Largo do Desterro, publicado em 1981, exatos dez anos após Os tambores de São Luís, sua obra-prima. O romance, que se dedica a narrar “a vida eterna do Major Ramiro Taborda”, a partir do seu centenário até a suposta morte aos 152 anos, não se quer inverossímil, dada a presença das quatro epígrafes que parecem justificar o fato inusitado da longevidade do protagonista, a exemplo de trecho retirado da História da Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranhão, de autoria de Claude d’Abbeville. Por meio de flashbacks, temos acesso a acontecimentos que marcaram o passado do Major Taborda, desde alegrias, perdas e angústias até o casamento inusitado com uma jovem do interior do Maranhão.
Por ocasião do aniversário de cem anos, que dá início à história, evidenciamos o primeiro lugar de predileção do protagonista, alicerçado na dicotomia sagrado x profano. A Igreja de Santaninha se contrapõe ao “tempo do entrudo”, festa popular que precedia a entrada da Quaresma, equivalente ao que depois se entenderia como “Carnaval”. Tal dicotomia se revela mais aguçada na medida em que a missa de seu centenário deveria ser celebrada em pleno domingo de Carnaval em que as ruas da cidade histórica se viam à mercê dos brincantes:
(MONTELLO, Josué de Sousa. Largo do Desterro. Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira, 1981, p. 23.)
A igreja de Santaninha constituirá o lugar de predileção do protagonista, visto ter sido nela que se realizaram o seu batismo, a crisma, a primeira comunhão, o casamento com Minervina, o batismo dos filhos e o casamento da filha adotiva Celeste. Nessa igreja, Deus abençoará o seu centenário, convidando o leitor a experimentar os anos que se seguirão desse marco na narrativa. Páginas à frente, quando do retorno a São Luís, após a enchente na região de sua fazenda no interior do estado, novamente a famosa igreja será lembrada, ainda que pelos fios da memória, dado o seu desaparecimento em prol da modernidade. O mal-estar que se apodera do major decorre não diretamente do fato de que a sua “igreja” tenha desaparecido, mas de sua proximidade da morte em razão do esquecimento ou da falta de lucidez. O lugar de memória se torna mais importante do que o lugar físico, geográfico.
Além da Igreja de Santaninha, outro lugar de predileção do major é o sobrado, localizado no Largo do Desterro, onde vive do primeiro casamento até a morte de Minervina, cujo retrato encerrou num aposento do sobrado de onde resgataria anos mais tarde, já refeito da traição da esposa.
(MONTELLO, Josué de Sousa. Largo do Desterro. Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira, 1981, p. 54.)
Em razão da solidão atroz da casa deserta: sem o “filho” Filinto, morto em razão de uma doença congênita; sem Celeste, rapidamente sugada pela gripe espanhola; sem o genro, alvejado com um tiro de revólver no peito em pleno ato de sonambulismo e diante da tentativa frustrada de suicídio, o Major foge, no tópico IX – “Longe do mundo” -, para a fazenda no interior do estado e lá constrói o novo lugar de predileção, onde espera ser enterrado. Novas amizades e novas companhias são tecidas, a começar pela aproximação de Tininha, filha mais nova de sua caseira Sinhá Libânia.
Lá tentará reconstruir a vida de modo a não se sentir mais tão solitário. Entretanto, o exílio não é uma condição da qual alguém possa simplesmente fugir, visto que persegue o exilado e o assombra com constantes lembretes de sua situação. No caso do major, isso acontece em decorrência da morte das pessoas que conheceu na fazenda e com as quais passou a conviver:
(MONTELLO, Josué de Sousa. Largo do Desterro. Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira, 1981, p. 216.)
(MONTELLO, Josué de Sousa. Largo do Desterro. Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira, p. 231-232.)
MONTELLO, Josué de Sousa. Largo do Desterro. Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira, 1981, p. 240. )
(MONTELLO, Josué de Sousa. Largo do Desterro. Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira, 1981, p. 245-246)
(MONTELLO, Josué de Sousa. Largo do Desterro. Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira, 1981, p. 260)
A sensação de apinhamento, sem a devida espaciosidade para se sentir livre se agrava com a pressão exercida pela vizinhança que acreditava que ele, “um velho pervertido”, teria engravidado a adolescente Tininha. Sentindo-se perseguido e constantemente ameaçado tanto pelos falsos boatos quanto pelas matérias difamatórias, nosso protagonista decide por se casar com Tininha para poder, assim, reaver a sensação perdida de liberdade.
O casamento com Tininha, entretanto, não foi capaz de demover essa sensação de apinhamento. Do mesmo modo que o mundo construído na fazenda ruiu inesperadamente, o lar construído com Tininha começou a desfazer-se logo após o major se adaptar à situação. Enquanto era apenas sua protegida, a adolescente tratava-o de maneira muito carinhosa e, às vezes, até íntima, o que o levou a acreditar que pudesse realmente contrair com ela uma relação matrimonial, todavia, pouco tempo após casar-se com o Taborda, Tininha tornou-se fria e distante. Quando confrontada, confessou a paixão por outro homem e a insatisfação por ainda continuar casada com um velho que prometera “morrer” em um ano. Sentindo-se apinhado e em profunda condição de exílio, dada a transformação do sobrado pelas mãos “modernas” da jovem esposa, o major reconhece que já devia ter morrido há muito tempo.
Dos lugares de pertencimento à experiência do exílio, o Major Taborda se configura no personagem do “desterro”, que se expatria para a fazenda com o intuito de fugir da solidão atroz e que é novamente impelido a abandonar o lugar construído por outro, o mesmo, o sobrado do Largo do Desterro onde fora feliz e infeliz, herói e vítima.
Em nome da felicidade de todos, livra-se do apinhamento que o sufoca e alcança, a partir da decisão de se lançar escada abaixo, a espaciosidade com os braços abertos para a explosão de gargalhadas da Calu Malafaia. Do desterro nasce o asilo do acolhimento.
(MONTELLO, Josué de Sousa. Largo do Desterro. Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira, 1981, p. 322.)