Uma Viagem a Portugal com José Saramago
Uma Viagem a Portugal com
José Saramago
Tome o leitor as páginas seguintes como desafio e convite. Viaje segundo seu projecto próprio, dê mínimos ouvidos à facilidade dos itinerários cômodos e de rastro pisado, aceite enganar-se na estrada e voltar atrás, ou, pelo contrário, persevere até encontrar saídas desacostumadas para o mundo. Não terá melhor viagem.” José Saramago, Viagem a Portugal
SARAMAGO, José. Viagem a Portugal. Companhia das Letras, 1997. p. 14
O livro Viagem a Portugal foi escrito pelo prêmio Nobel de Literatura José Saramago e publicado em 1981 após uma longa viagem de quase um ano feita pelo autor, entre outubro de 1979 e julho de 1980, quando ele percorreu as terras portuguesas de Norte a Sul e de Leste a Oeste a convite da editora Círculo de Leitores.
Esse livro foi originalmente publicado com fotos, sendo que o Real Gabinete Português de Leitura possui um exemplar para consulta em sua sede no Rio de Janeiro. No entanto, depois de várias edições com fotos, foi colocada no mercado uma edição de Viagem a Portugal só com o texto, o que de maneira nenhuma atrapalha a compreensão do leitor, já que a refinada escrita literária do seu autor é extremamente rica na descrição dos lugares visitados.
Nessa Viagem a Portugal descrita por Saramago, o autor se diz um viajante e não um simples turista. E é ele próprio que explica o que distingue um termo do outro: “Há grande diferença. Viajar é descobrir, o resto é simples encontrar” SARAMAGO, José. Viagem a Portugal.Companhia das Letras, 1997. p. 287. E é nessa busca por descobrir Portugal que o viajante Saramago nos apresenta um país muito especial.
A paisagem é o personagem principal do livro, mas o autor a transforma através das descrições que faz. A partir de um ponto de vista diferenciado, Saramago nos faz descobrir cidades, vilas, aldeias, castelos, igrejas, monumentos e museus sob uma perspectiva que muito se afasta da tradicional apresentação de lugares nos guias turísticos. Logo na primeira página do livro, podemos observar essa forma saramaguiana de nos mostrar Portugal. O que poderia ser uma mera descrição do Rio Douro – que faz fronteira entre Portugal e Espanha – se transforma, graças à criativa perspectiva crítica de Saramago, numa discussão sobre a questão da nacionalidade:
Vinde cá, peixes, vós da margem direita que estais no rio Douro, e vós da margem esquerda que estais no rio Duero, vinde cá todos e dizei-me que língua é a que falais quando aí em baixo cruzais as aquáticas alfândegas, e se também lá tendes passaportes e carimbos para entrar e sair. (…), peixes que viveis nessas confundidas águas, que tão depressa estais duma banda como da outra, em grande irmandade de peixes que uns aos outros só se comem por necessidades de fome e não por enfados de pátria. […]
Essa reflexão sobre a questão da identidade se cruza com outras reflexões questionadoras que o escritor faz ao ver a paisagem de Portugal sob diferentes ângulos históricos e culturais, entrelaçando-os com observações sobre os costumes do país e trazendo para o texto ainda diversas alusões literárias. Saramago inclui citações dos seus autores preferidos e, valendo-se deles, fala da paisagem portuguesa a partir de referências a livros, como no caso da freguesia portuguesa de Ereira, distante cerca de 45 quilômetros de Coimbra, onde nasceu e viveu o escritor Afonso Duarte.
Antes de ir a Montemor-o-Velho, passará o Mondego, far-se-á esquecido da imaginação querela. Procura outras imaginações, a bem dizer nem as procura, apenas as quer ver com seus olhos Ereira, terra onde nasceu e viveu Afonso Duarte, um dos maiores poetas portugueses deste século, hoje inexplicavelmente apartado das atenções. Ereira é terra tão vizinha da água que, transbordando o Mondego, mais o rio Arunca que perto lhe passa, vai a cheia entrar-lhe nas casas, familiarmente, como velhos conhecidos que se reencontram. Terá sido num dia assim que Afonso Duarte escreveu: “Há só mar no meu País./ Não há terra que dê pão:/ Mata-me de fome! A doce ilusão! De frutos como o Sol”. O viajante também nasceu em alagadiças terras, sabe o que são enchentes, mas, quando relê Afonso Duarte, toma com rigor a altura das águas em quatro versos medidas (…).”
SARAMAGO, José. Viagem a Portugal. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p 130-131
Ao figurar assim o que se poderá chamar de paisagens literárias, Saramago descreve de forma especial muitos locais que a princípio não teriam interesse turístico, mas que se tornam distintos exatamente por esse olhar singular do autor, que estabelece um diálogo rico com os lugares pelos quais passou.
Além de trazer para o livro sua bagagem literária, Saramago também define parte do trajeto que faz em função dos autores que leu e admira, como quando decide ir a Samardã, cidade que visita exatamente porque nela viveu o escritor Camilo Castelo Branco.
A poucos quilômetros de Vila Real está Vilarinho de Samardã, e logo a seguir Samardã, Hão-de perdoar-se ao viajante estas fraquezas: vir de tão longe, ter mesmo à mão de ver coisas tão ilustres como um palácio velho, dois vales, cada qual sua beleza, uma serra lendária, e correr, em alvoroço, a duas pobres aldeias, só porque ali andou e viveu Camilo Castelo Branco. Uns vão a Meca, outros a Jerusalém, muitos a Fátima, o viajante vai a Samardã. Por essa estrada seguiu, a cavalo ou de traquitana, o doido do Camilo quando jovem. Em Vilarinho passou ele, palavras suas: “os primeiros e únicos anos felizes da mocidade”, e na Samardã se deu o assinalado caso do lobo que resistiu a cinco tiros e acabou comendo a metade da ovelha que faltava. São episódios de vidas e de livros, razão mais do que bastante para que o viajante ande à procura da casa de Vilarinho, perguntando a umas mulheres que lavam no tanque, e elas apontam, é logo adiante. Lá está o dístico, mesmo ao lado da ombreira da porta, mas esta casa é particular, não tarda que venha alguém. Ainda teve o viajante tempo para ouvir o zumbido das abelhas e seguir ao longo da casa, espreitando as varandas corridas, a desejar ingenuamente viver ali, e é aí que lhe aparece uma senhora a indagar destas curiosidades. É ela sobrinha-bisneta de Camilo, cumpridora parente que dá resposta cabal às perguntas do viajante, aos pés de ambos corre um regueiro de água, e as abelhas não se calam, há realmente momentos felizes na vida.”
O viajante tem o dever de medir as palavras. Não lhe fica bem desmandar-se em adjectivos, que são a peste do estilo, muito mais quando substantivo se quer como neste caso. Mas a Igreja de Nossa Senhora da Orada, pequena construção românica decentemente restaurada, é tal obra-prima de escultura que as palavras são fatalmente demais porque são desgraçadamente de menos.
Mesmo seguindo nessa viagem por roteiros muito próprios, Saramago não se furta a descrever os muitos e reconhecidos castelos, palácios e museus que são famosos em Portugal e que, tradicionalmente, figuram em guias turísticos. Esses locais importantes e de fama internacional também fizeram parte do percurso seguido pelo autor durante os dez meses de sua jornada. Ele partiu do Douro, no Norte de Portugal, e percorreu o país incansavelmente, inventariando muitos desses monumentos.
Extremamente minucioso nas visitas realizadas, o escritor nos fala de pinturas, esculturas e painéis, construções históricas e joias arquitetônicas de muitos séculos passados, algumas de períodos até pré-históricos, mas sempre descritos a partir de um ponto de vista que busca valorizar mais o ser humano e seu trabalho de criaçao que os monumentos. Isso pode ser observado claramente quando narra a sua visita à povoação de Monsanto, na Beira Baixa, por exemplo, onde um castelo domina a paisagem local, o qual lhe causou “assombro” não só por sua estrutura, mas também pelas pessoas que viveram ali.
[…] O viajante vai até o ponto mais alto das muralhas e se pergunta: “Que gente viveu dentro desse castelo? Que homens e que mulheres, suportaram o peso das muralhas, que palavras foram gritadas de uma torre a outra torre, que outras murmuradas nestes degraus ou à boca da cisterna? Aqui andou Gualdim Pais, com os seus pés de ferro e o seu orgulho de mestre dos Templários. Aqui humilde gente segurou, com os braços e o peito sangrando, as pedras assaltadas. O viajante quer entender razões e encontra perguntas: por que foi?, para que foi?, terá sido apenas para que eu, viajante, aqui estivesse hoje?, têm as coisas esse tão pouco sentido?, ou será esse o único sentido que as coisas podem ter?
Ao longo de cerca de 400 páginas, o viajante de Saramago segue um mapa que se sobrepõe a vários outros. O itinerário de Saramago revela predileção por cidades pequenas, procurando descobrir os tesouros que estão ali escondidos, como é o caso da Casa da Câmara de Castelo Novo.
Esta é a Casa da Câmara, românica, construída no tempo de D. Dinis. O viajante prepara-se para protestar contra o chafariz que ali foi posto por D. João V, mas emenda o rompante, vê como o românico digeriu e absorveu este barroco, ou como o barroco se deixou sujeitar ao românico que tinha chegado primeiro. Junte-se o pelourinho, manuelino, e estão aqui três épocas: os séculos XIII, XVI e XVIII. Sabiam trabalhar a pedra esses homens, e respeitar o espaço, quer o próximo, quer o distante, não fosse assim e teríamos aqui grandes e incontáveis brigas arquitectónicas.
No roteiro seguido, Saramago não se cansa de descrever o importante patrimônio histórico que pode ser encontrado nas cidades pequenas ou mesmo aldeias, como é o caso do Convento de Tomar, denominação atribuída a um conjunto de edificações históricas, situado na freguesia de São João Baptista, na cidade de Tomar, que em 2011 tinha cerca de 7 mil habitantes.
O início da construção do Convento de Tomar remonta a 1160 e está intimamente ligado aos primórdios do reino de Portugal e ao papel então desempenhado pela Ordem dos Templários, tendo sido reconfigurado e expandido nos séculos subsequentes.
O Convento de Tomar é o pórtico, é o coro manuelino, é a charola, é a grande janela, é o claustro. É o resto. De tudo, o que mais toca o viajante é a charola, pela antiguidade, decerto, pela exótica forma octogonal, sem dúvida, mas sobretudo, porque vê nela uma expressão plástica perfeita do santuário, lugar secreto, acessível mas não exposto, ponto central e foco à roda do qual gravitam os fiéis e se dispõem a figurações secundárias. A charola, assim concebida, é, simultaneamente, sol radiante e umbigo do mundo.
Praticamente nada escapa ao olhar arguto e extremante analítico e descritivo do viajante, mas há momentos em que ele gostaria de poder se eximir dessa tarefa tal a magnitude do monumento ao qual faz referência, como expressa quando visitou o Mosteiro da Batalha.
O viajante escreve estas palavras muito seguro de si, mas em seu íntimo sabe que não tem salvação possível. Onde dez mil páginas não bastariam, uma é de mais. Tem muita pena de não estar viajando de avião, assim poderia dizer: “Mal pude olhar, ia muito alto.” Mas é pelo chãozinho natural que vai, e está quase a chegar, não há aqui fugir um homem ao seu dever. Mais fácil tarefa foi a de Nuno Alvares, que só teve de vencer os castelhanos.
SARAMAGO, José. Viagem a Portugal. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p 237
O viajante de Saramago também não se importa em perder-se no caminho que segue durante a sua jornada. Como ele mesmo diz, quando está se dirigindo a São Quintino, freguesia portuguesa do concelho de Sobral de Monte Agraço: “A São Quintino vai-se por um caminho que começa por esconder-se no descaimento duma curva da estrada principal e depois lança uma bifurcação onde o viajante, ou acerta com o que procura, ou, errando, tem sempre a certeza de ganhar alguma coisa.” SARAMAGO, José. Viagem a Portugal. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p 254
Nesses perder-se e achar-se, o viajante encontra muitos tesouros quase escondidos, como a igrejinha dessa freguesia.
A Igreja de São Quintino merecia carreiras directas de autocarro guia sabedor, tão capaz de falar de azulejos como de arquitetura, de manuelino como de renascença, do espaço de fora como da harmonia de dentro. É, nesta encosta, aberta aos livres horizontes, uma jóia preciosa quase ignorada.”
Nesses caminhos a que Saramago nos leva, o viajante confessa que, em muitos lugares, gostaria de ficar e não apenas passar, como aconteceu na cidade litorânea de Nazaré, freguesia do concelho da Nazaré, no litoral oeste de Portugal.
Que veio o viajante fazer à Nazaré? Que faz em todas as povoações e lugares onde entra? Olhar e passar, passar e olhar. Já se sangrou em saúde, já declarou que viajar não é isto, mas sim estar e ficar, e não pode estar sempre a dizê-lo. Porém, aqui terá de retornar a ladainha para que lhe seja garantida a absolvição: devia estar e ficar para ver os pescadores irem ao mar e do mar voltarem, oxalá que todos; devia saber a cor e o bater das ondas; devia puxar os barcos; devia gritar com quem gritasse e chorar com quem chorasse; devia pesar o peixe e o salário, o morrer e o viver. Seria nazareno, depois de ter sido poveiro e vareiro. Assim, é apenas um viajante que passa em dia feriado, ninguém no mar, mar mansinho, e com um Sol tão luminoso que deslumbra, muitas pessoas passeando na marginal ou sentadas no muro, e uma procissão de automóveis besourando. (…)”
Assim como ressaltou o valor do ser humano por trás de paisagens e construções, Saramago se extasiou também com o que muita gente nem daria valor, como foi o caso da pequena igreja de Carcavelos, situada a cerca de 25 quilômetros de Lisboa, onde diz que viu “uma das mais magníficas decorações de azulejos policromos que o viajante teve diante dos seus privilegiados olhos”. SARAMAGO, José. Viagem a Portugal. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 288
O Convento de Mafra é grande. Grande é o Convento de Mafra. De Mafra é grande o convento. São três as maneiras de dizer, podiam ser algumas mais, e todas se podem resumir desta maneira simples: o Convento de Mafra é grande. Parece o viajante que está brincando, porém o que ele não sabe é pegar nesta fachada de mais de duzentos metros de comprimento, nesta área ocupada de quarenta mil metros quadrados, nestas quatro mil e quinhentas portas e janelas, nestas oitocentas e oitenta salas, nestas torres com sessenta e dois metros de altura, nestes torreões, neste zimbório.”
Além da dificuldade de descrever monumentos como esse Convento, em função da sua magnitude, o viajante de Saramago enfrenta outros apuros, como relata no fragmento abaixo, sobre Lisboa:
O viajante vem para a rua, é um viajante perdido. Aonde irá? Que lugares irá visitar? Que outros deixará de lado, por sua deliberação ou impossibilidade de ver tudo e falar de tudo? E que é ver tudo? Tão legítimo seria atravessar o jardim e ir ver os barcos no rio como entrar no Mosteiro dos Jerônimos. Ou então, nada disto, ficar apenas sentado no banco ou sobre a relva, a gozar o esplêndido e luminoso Sol. Diz-se que barco parado não faz viagem. Pois não, mas prepara-se para ela. O viajante enche de bom ar o peito, como quem levanta as velas a apanhar o vento do largo, e ruma para os Jerônimos.”
[…], onde o viajante entrega as armas, as bagagens e as bandeiras é sob a abóbada do transepto. São vinte e cinco metros de altura, num vão de vinte e nove metros por dezanove. Não há aqui pilar ou coluna que ampare a enorme massa da abóbada, lançada num só vôo. Como um enorme casco de barco virado ao contrário, este bojo vertiginoso mostra o cavername, cobre com as suas obras vivas o espanto do viajante, que está vai não vai para ajoelhar ali mesmo e louvar quem tal maravilha concebeu e construiu.