Caminhar pelo arquipélago açoriano com Bellis Azorica
Caminhar pelo arquipélago açoriano com Bellis Azorica
João Miguel Fernandes Jorge
Açoreanos me chamassem açoreano
e a esse tão antigo rosto português
me trouxessem
JORGE, João Miguel Fernandes. Bellis Azorica.
Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1999. p. 11
Bellis azorica “espécie de plantas pertencente à família Asteraceae, endémica das ilhas do arquipélago dos Açores onde é conhecida pelo nome popular de margarida e onde surge em todas as ilhas, exceto na ilha Graciosa e na ilha de Santa Maria.” É com essa definição que seguimos pelos caminhos do solo açoriano traçados por um livro de poemas do poeta português João Miguel Fernandes Jorge, que indica como título exatamente esse nome científico da margarida natural dos Açores.
Bellis Azorica (1999) é um livro que, desde o título, nos instiga a conhecer algumas ilhas dos Açores através do olhar observador de um sujeito poético muito atento aos detalhes e peculiaridades do arquipélago português. Assim como a própria composição do nome científico da flor nos adianta, com referência ao epíteto azorica, tratar-se de uma espécie de planta que só existe nas ilhas dos Açores, esse belo livro nos leva a conhecer um espaço geográfico específico, refigurado pelo olhar do poeta que o percorre e transmite em poesia sua singularidade.
A obra conta com 72 poemas em que o poeta do Portugal continental descreve o que viu em suas viagens aos Açores, partilhando olhares que pousam e se concentram na paisagem, nas pessoas e nos acontecimentos cotidianos. Não é a primeira vez que o poeta dedica uma obra a esse arquipélago português. De acordo com informações do jornal português Público, João Miguel Fernandes Jorge lançara, em 1992, o livro Terra Nostra que traz poemas também situados nesse mesmo espaço. No texto, a jornalista Alexandra Lucas Coelho aponta que a referida obra se encerrava com um poema intitulado “Final” e trazia os seguintes versos: “Tudo estava perdido/ e a viagem terminara./ Não havia outra coisa a fazer/ senão regressar a casa./ Fechar o livro e esperar pelo/ próximo barco./ Partir para a ilha fronteira/ com o produto da rapina/ versos fragmentos de versos/ que foram o rosto.“
Mesmo sem o conhecimento prévio de Terra Nostra, mas com leitura dessa resenha, podemos associar não somente a epígrafe de Bellis Azorica, que também utilizamos como epígrafe para esta página, como também o título do segundo poema do livro – “De Volta às Ilhas” – ao fato de que há uma relação de forte proximidade e familiaridade do sujeito poético com esse espaço, traço que se fará ainda mais acentuado com o tom nostálgico que perpassa os versos de inúmeros poemas e acaba também por nos envolver e aos lugares nele reapresentados.
João Miguel Fernandes Jorge nos ajuda a percorrer, ou nos dá a ver, lugares das nove ilhas dos Açores, mas iremos nos concentrar mais atentamente em apenas quatro delas: Santa Maria, São Miguel, São Jorge e Flores. Para visualizar melhor esse arquipélago, é útil recorrermos ao mapa ampliado a seguir, notando também a localização de algumas vilas que aparecem com certa recorrência nos poemas selecionados:
O poema de abertura da obra chama-se “A voz” e, por mais que não nos indique ainda alguma paisagem específica, é necessário recuperá-lo, pois parece ser uma bela forma de, literalmente, dar voz à subjetividade poética que se apresenta neste livro, anunciando que “A voz/ que entoava/ essa ave pequena/ o mínimo pássaro// não é outra coisa/ mais/ do que/ minha alma// hei-de/ ouvir/ canção// por/ sobre a névoa/ da ilha.” JORGE, João Miguel Fernandes. Bellis Azorica. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1999. p. 13.
Então, considerando Bellis Azorica uma obra de retorno aos Açores, o segundo poema do livro, “De Volta às ilhas”, dará início a essa revisitação a partir da primeira ilha açoriana do nosso circuito: Santa Maria. O poema inicia-se debaixo de chuva, com um sujeito poético que já se coloca em posição de espectador desde os primeiros versos e atenua sua habilidade de observação direta, recordando parte da paisagem que avista:
DE VOLTA ÀS ILHAS
Chove em Santa Maria. A circunstância torna severa
a exposição das provas, a procura de submersos barcos.
(…)
As casas de Malbusca sucedem-se
perdem-se, iguais, na memória. Casa de forno e
chaminé. Não chegar a ser nada do que já existiu –
o voto secreto. As funduras da Maia, São Lourenço,
a mancha do ilhéu, prepotência de quem olha os demais
por cima do ombro. A vinha coberta de abandono.
(…)
JORGE, João Miguel Fernandes. Bellis Azorica.
Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1999. p. 14.
Casas da Malbusca – Captura de tela do vídeo “Santa Maria Açores Malbusca”
A quase única rua de Vila do Porto. As grandes caixas
de ferro nos campos sobre o mar, corroídas, forçadas
a um arrombamento. Alguém quer num dos ferrosos
corpos erguer a sua capela. Ao
menos que falasse como falam os seres humanos.
JORGE, João Miguel Fernandes. Bellis Azorica.
Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1999. p. 14.
Porto de Vila do Porto – Captura de tela do vídeo “Vila do Porto Ilha Santa Maria, 12 Agosto 2017”
17 DE NOVEMBRO DE 1994, 5ª FEIRA
O círculo do voo do milhafre. A sardanisca nas
pedras negras dos muros da Caloura deixa um traço
azul tão escuro, ainda de mais sombra ao sol
atlântico de novembro. A cor de pus da centopeia que
ficou esmagada no mosaico velho perto da lareira,
enquanto outra se fixou numa racha da parede. Era
um líquido grosso de um falso branco.
A chuva trouxe insectos negros, grossos
cabelos que se movem sob a energia do próprio negro.
Círculos, espirais de escuro sobre a humidade do
mês. Abrem nos campos as cápsulas, suspendem sobre
a terra o vermelhão da semente. A sombria asa
desce e rasa o sul da ilha, desde o ilhéu de Vila
Franca do Campo.
JORGE, João Miguel Fernandes. Bellis Azorica.
Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1999. p. 17.
Assim está bem. Uma vez tentei escrever um poema sob o
equilíbrio destas margens das lagoas, sobre o flutuar da pedra-
-pomes, sobre a geometria das casas: sótão, barras quase sempre
verdes, arrecadação para os utensílios agrícolas. Os versos
seriam sobre alguém que nunca vi e que, por certo, nunca
existiu. Uma paisagem tem que apresentar vários planos
completos e nunca consegui registrar o contraste do corpo.
[…]
JORGE, João Miguel Fernandes. Bellis Azorica.
Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1999. p. 21 [grifo nosso]
As reflexões sobre a própria escrita, as percepções geográficas e biológicas e a inserção de outras linguagens e objetos artísticos, configurando um belo diálogo entre temas distintos, conferem um caráter híbrido ao poema, fazendo com que experimentemos outras percepções para além do literário. Nesse livro, em especial, é comum encontrar referências à música erudita. Os poemas “Em três movimentos”, “Clifford still, Carlos Seixas, Johan Jakob Froberger, Fátima Maldonado, etc.” e “Mozart/Alicia de Larrocha” exemplificam o que aqui se pretende dizer pelos seus próprios títulos.
Sem nos apartarmos das reflexões que envolvem a própria linguagem poética, continuamos a explorar um pouco mais o arquipélago, agora percorrendo a ilha de São Jorge. Existem algumas meditações sobre a ilha em poemas variados, mas há um que se destaca justamente por retratar um local abandonado, a Fajã do Belo, que se descortina através de ruínas no poema “Entre Fajãs”:
ENTRE FAJÃS
Entre a Fajã dos Cubres e a Caldeira de Santo
Cristo fica uma pequena aldeia abandonada –
eu sei, a palavra aldeia não faz parte da
geografia açoreana, mas é uma das palavras mais
perfeitas do português – Fajã do Belo,
se o mapa de S. Jorge que possuo não está
errado. O basalto das casas sem telha e
muros de ruína fala do abandono de séculos. De
muitos anos será e tudo parece sofrer o rescaldo
de um incêndio ateado entre o mar e a escarpa
da ilha. Escombros
e uma insensível flora de naufrágio
guardam a cruz do cemitério.
A pedra do sepulcro torna-se próxima do visitante
– mas quem visita a ruína?
Casas pobres de outro tempo construídas que
foram de sólidos materiais estremecem na
decrepitude de um mundo antigo. Casas ricas
de outros tempos com balcões onde ninguém
assoma, vejo-as perecer no correr das ilhas.
JORGE, João Miguel Fernandes. Bellis Azorica.
Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1999. p. 111
A imagem de satélite mostra dois aspectos que valem a pena serem destacados a respeito da Fajã do Belo: o primeiro deles é a localização, visto que, assim como descreve poema, está exatamente entre a Fajã da Caldeira do Santo Cristo (à esquerda) e a Fajã dos Cubres (à direita). O segundo, na verdade, é uma casualidade e provavelmente está associado a questões técnicas na realização da captura da imagem ou na própria reprodução da imagem no site do Google. Trata-se da distinção entre os tons de verde coincidindo com uma aparência sombreada que paira sobre essa terra abandonada e confere à nossa percepção imagética um tom ainda mais misterioso e sombrio.
As fajãs são terrenos planos à beira-mar cuja formação está diretamente relacionada à atividade vulcânica e marinha. A ilha de São Jorge está repleta de fajãs, todas elas com sua beleza peculiar, além de características biológicas distintas. Geralmente possuem microclimas que influenciam na permanência ou não da população em suas áreas. A do Belo, por exemplo, que segundo registros antigos recebeu esse nome porque pertenceu a um homem chamado Diogo Nunes Belo, encontra-se praticamente abandonada desde 1980, após um terremoto que atingiu a região. Apesar disso, proprietários de terras desta fajã ainda preservam alguns tipos de cultivo nos terrenos. O poema escolhido reflete muito bem o abandono da área quando, lançando um olhar solitário, a voz lírica compõe não somente esse ambiente, como também uma atmosfera quase misteriosa ao meditar sobre as ruínas de outros tempos.
Fajã do Belo: À esquerda, captura de imagem do vídeo “Fajã do Belo 28 Janeiro 2017 Ilha São Jorge, Açores” e à direita, fotografia retirada do site Wikipedia.
FAJÃ GRANDE
Leio em Francisco Pimentel Gomes acerca dos
quarenta e um recintos fortificados das Flores
e do Corvo. Muitos não passaram de casas da
guarda; fortins baterias vigias, de bem poucos
haverá pedra sobre pedra. Segue-se a lista de
capitães-mores, oficiais e sargentos e um pouco
do enredo a que se ligaram na ilha.
Na Fajanzinha, antes de chegarmos à Igreja,
logo a seguir ao pequeno largo, há uma casa
pintada de ocre, com janela rente ao chão,
escada exterior de pedra.
A Fajã Grande. As ribeiras despenham-se pela
encosta. Formam com a terra da Fajã e com o mar
um corpo circular. Famílias seguem o movimento
natural, geram-se, destroem-se: a variação, o
instante, a mobilidade: sobre o caminho de
bruma e quase treva de verdes, no outro século
e ainda neste, um rápido rapaz é o mensageiro.
Correu a difícil vereda e traz desde o porto da
vila, a notícia de alguém que conseguiu regressar
da não longe América. E recebe moeda de prata
pela boa-nova, o estafeta que parece constante
e eterno na agilidade da corrida entre o tempo
e o céu. A rudeza da sua mão aceita fumegante
tijela de café pobremente feito de fava torrada.
JORGE, João Miguel Fernandes. Bellis Azorica.
Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1999. p. 78.