Mercadores e tavernas: tristeza na Lisboa de Gil Vicente
Mercadores e tavernas: tristeza na Lisboa de
Gil Vicente
Ó travessa zinguizarra
de Mata Porcos escura
como estás de má ventura
sem ramos de barra a barra.
Tens há tantos dias
as tuas pipas vazias
os tonéis secos em pé?
Ou te tornaste Guiné
ou o barco das enguias
Certamente o nome “Gil Vicente” soa familiar a maior parte dos leitores contemporâneos. Da compilação de suas obras, que abarca mais de 40 textos, alguns são mais íntimos do público em geral, como O Auto da Barca do Inferno e Farsa da Inês Pereira; outros, nem tanto, como os Auto da Sibila Cassandra e de Mofina Mendes . Gil Vicente produziu, por mais de 30 anos, seu trabalho artístico e literário e é impossível dissociá-lo das mudanças ocorridas em Portugal, na época das Grandes Navegações. Olhar para este contexto auxilia sobremaneira na compreensão da obra vicentina sem, no entanto, encerrá-la.
Gil Vicente é uma voz vinda do século XVI. Para ouvi-la precisamos aprimorar nossos ouvidos; procurar novos significados e instrumentos. É preciso, diante dos seus textos, não ter pressa, nutrir nossa curiosidade, tal como um navegante que está em busca de novos mundos. Para buscar a paisagem quinhentista, sobretudo a de Lisboa escondida em Gil Vicente, por vezes, é preciso remover pedras e vasculhar ruínas , como nos ensinou o arquiteto Manuel da Maia.
Como cidade portuária, as panorâmicas de Lisboa, em sua maior parte, são representadas a partir do mar.
A face da Ribeira fica em evidência na maior parte dessas representações. A Ribeira é a zona onde o espaço físico (urbs) encerra também a dimensão social (civitas). Neste espaço prevalecem a topografia acidentada e os ofícios ligados às atividades marítimas – consideradas as características principais da cidade de Lisboa, desde os tempos das grandes navegações. Além, é claro, do intenso comércio com representantes de vários países, como se vê no díptico da Rua Nova dos Mercadores.
Pintura – Rua Nova dos Mercadores, em Lisboa. Autor anônimo,
Séc. XVI. Londres, Kelmscott Manor Collection – Society of Antiquaries of London.
(uma tela original, hoje dividida em duas).
Ilustração – Rua Nova dos Mercadores:
Reconstituição segundo o Livro de Horas de D. Manuel. Roque Gameiro.
Está üa lavrandeira
Lá no bairro sobre Alfama,
Que mais parideira dama
Não há i mais parideira.
Nesta Lisboa, o corpo feminino de origem popular deambula pelas artérias da cidade vendendo ervas, hortaliças, leite e queijo na Ribeira; estripando peixes e assando sardinhas; carregando potes de água na cabeça para vendê-la de porta em porta. Essas mulheres se misturam à paisagem da principal cidade do reino. Pode-se dizer que Gil Vicente está atento aos aspectos materiais e imateriais que a constroem.
O Pranto da Maria Parda é visto como a “grande obra lisboeta” do dramaturgo português. A personagem que dá título ao texto lamenta pelas ruas a falta de vinho nas tabernas. Com efeito, em muitas passagens, traz à memória os tempos em que a bebida não lhe faltava. Diferentemente de boa parte das peças vicentinas que apresenta nas suas rubricas a data e a festividade a que se relaciona a apresentação, O Pranto da Maria Parda foi datado no interior do texto:
E ante de meu finamento
ordeno meu testamento
desta maneira seguinte
na triste era de vinte
e dous desd’o nascimento
Em dezembro de 1521, além da carestia que assolava Lisboa, Dom Manuel, que se encontrava no Paço da Ribeira juntamente com sua corte, conforme descreve Damião de Gois na Crônica do Felicíssimo Rei D. Manuel, foi acometido por uma “febre specia de modorra; doença de que naquelle tempo em Lisboa morria muita gente” e veio a falecer no dia 13 de dezembro, após grande delírio, recitando“ em alta, e clara voz, dizia os versos dos Psalmos, de que muitos sabia de cor”.
Maria Parda tem um nome, mas muito se aproxima daqueles anônimos que morreram desde o final de 1521, em virtude da carestia dos alimentos:
Eu so quero prantear
este mal que a muitos toca
As impressões posteriores das folhas volantes do texto vicentino coincidiram com períodos em que a população de Lisboa sofreu não só com a escassez de abastecimento de alimento, mas com o excesso de cobrança das cargas tributárias, o que corrobora a apresentação de Pranto da Maria Parda em tempos de crise, bem como a atualidade do tema exposto pelo texto que, anos depois, ainda prevalecia no gosto popular.
O fólio presente no Livro de Horas de D. Manuel simultaneamente nos transporta para o cortejo fúnebre de D. Manuel e para a Rua Nova dos Mercadores, em 1521.
- Paços do castelo
- Mosteiro Santa Maria da Graça
- Mosteiro de São Vicente
- Escola Geral
- Igreja de Santo Estevão
- Porta do Charafiz (ou Chafariz?) de Cavalos
- Sé Velha de Lisboa
- Porta da Ribeira
- Paços do castelo
- Mosteiro Santa Maria da Graça
- Mosteiro de São Vicente
- Escola Geral
- Igreja de Santo Estevão
- Porta do Charafiz (ou Chafariz?) de Cavalos
- Sé Velha de Lisboa
- Porta da Ribeira
A – Região de Rua cata-que-farás
Rua de Cata Que Farás
que farei e que farás?
Quando vos vi tais chorei
Que foi de vosso bom vinho?
E tanto ramo de pinho laranja, papel e cana
B – Região Rua Sam Gião e Travessa Mata Porcos
Ó rua de sam Gião […]
Quem levou teus trinta ramos
[…]
Ó travessa zinguizarra
de Mata Porcos escura
como estás de má ventura
sem ramos de barra a barra.
Tens há tantos dias
as tuas pipas vazias
os tonéis secos em pé?
C – Região da Rua da Ferraria
Ó rua da Ferraria
onde as portas eram maias
como estás chea de guaias
com tanta louça vazia.
Já me a mi aconteceu
na menhã que Deos naceu
à honra do nacimento
beber ali um de cento
que nunca mais pareceu
D – Ribeira – Praça dos Canos
Fui-me ò Poço do Chão
fui-me à praça dos Escanos
carpi-vos manas e manos
que a dezasseis o dão.
Ó velhas amarguradas
que antre três sete canadas
soíamos de beber
agora tristes remoer
ete raivas apertadas
E – Parte da região de Alfama
Quem viu nunca toda Alfama
com quatro ramos cagados
os tornos todos quebrados?
Ó bicos de minha mama
Bem ali ò Santo Esprito
i’eu sempre dar no fito
num vinho claro rosete.
Ó meu bem doce palhete
quem pudera dar um grito
F – Parte da Região da Mouraria
Ó rua da Mouraria
quem vos fez matar à sede
pela lei de Mafamede
com a triste d’água fria?
G – Região Poço de Borratém
Olha de molher de bem
dizem que em tempo de figos
nam hei i nenhuns amigos
nem os busque entam ninguém
E diz o enxemplo dioso
que bem passa de goloso
o que come o que no tem.
Muita água há em Borratem
e no Poço do Tinhoso
Gil Vicente é um autor conhecido por misturar diversos gêneros textuais em uma única obra. No Pranto da Maria Parda, ele subverte a estrutura normativa do pranto; entremeia o diálogo, por meio de um jogo retórico, de provérbios populares; e finaliza com um testamento de teor báquico.
Especialmente no Pranto que Maria Parda, traça um itinerário das ruas de Lisboa, as quais possuíam tavernas e apresentavam, antes do período de carestia, as ramas nas portas como ornamento e sinônimo de pipas cheias de vinho. O texto nos indica que a sua procura se inicia pela Ribeira – área de importância administrativa, bem como de grande fluxo de pessoas e informações. Não há dúvidas de que o número de tavernas na região era significativo, devido ao consumo elevado de vinho, tanto por ser um elemento comum à alimentação da população da época, sem distinção de estratos sociais, quanto por suas propriedades medicinais, sendo, comumente, seu consumo receitado pelos físicos (médicos). Esta grande demanda pode ser exemplificada, por exemplo, pelo grande número de pessoas que se dedicavam ao ofício nas tavernas.
A primeira referência de Maria Parda é a Rua Sam Gião, presente nas artérias da Judiaria Velha de Lisboa.
A personagem lamenta que a rua não ostente mais os trinta ramos pendurados nas suas portas. Nos versos seguintes, ela nos conduz à vizinha e zinguizarra Travessa de Mata-porcos, que lhe parecia irreconhecível sem os ramos que a adornavam de barra a barra e que tem agora as pipas vazias e os tonéis secos em pé.
Ó rua de sam Gião […]
Quem levou teus trinta ramos
Ó travessa zinguizarra
de Mata Porcos escura
como estás de má ventura
sem ramos de barra a barra.
Tens há tantos dias
as tuas pipas vazias
os tonéis secos em pé?
Triste também é se deparar com a Carniceria Velha, que agora passa por um período de privação, tal como na Quaresma, nas suas grelhas a carne é substituída pelo peixe: Triste quem nam cega em ver nas Carnecerias Velhas muitas sardinhas nas grelhas.
Seu passo trôpego sobe a rua da Ferraria, talvez à altura da Igreja de Santa Madalena:
Ó rua da Ferraria
onde as portas eram maias
como estás chea de guaias
com tanta louça vazia.
Já me a mi aconteceu
na menhã que Deos naceu
à honra do nacimento
beber ali um de cento
que nunca mais pareceu.
Maria Parda despede-se nesta rua da Judiaria Velha. No verso, a referência às maias pode ser pelo costume popular de trazer essas flores às portas ou uma referência aos cultos pagãos ligados à fertilidade e à entrada de um novo ano agrícola, tradicionalmente realizados no mês de maio. Antes, pelo contrário, o que Maria Parda encontra não é o indício de um período de festividades, ou auspícios de uma boa colheita, mas um sítio coberto de choros e lamentações.
Cambiante, move-se até a rua Cata-que-farás, à altura do Palácio Corte-Real, mas o cenário é igualmente desolador:
Rua de Cata Que Farás
que farei e que farás?
Quando vos vi tais chorei
Que foi de vosso bom vinho?
E tanto ramo de pinho laranja, papel e cana
Ó tavernas da Ribeira nam vos verá
a vós ninguém
mosquitos o Verão que vem
porque sereis areeira
Quem viu nunca toda Alfama
com quatro ramos cagados
os tornos todos quebrados?
Ó bicos de minha mama
Bem ali ò Santo Esprito
i’eu sempre dar no fito
num vinho claro rosete.
Ó meu bem doce palhete
quem pudera dar um grito
Ó triste rua dos Fornos
que foi da vossa verdura?
Agora rua d’amargura
É na principal rua do bairro dos Mouros que Maria Parda expressa o seu esgotamento, diante de caminhada tão extenuante. Afinal, os muçulmanos são proibidos de consumir bebida alcoólica por motivo religioso. Todavia, Gil Vicente ainda brinca com sentidos das palavras. O público certamente gargalha ao ver a velha arrancar os cabelos e pelos que traz no queixo, devido ao desespero por falta de vinho. Mas o verso de carpir estas queixadas também sugere que Maria Parda está cansada de se lamuriar.
A matéria acerca da paisagem na obra de Gil Vicente, bem como em outros autores quinhentistas, ainda é um terreno pouco explorado, mas é sobremaneira importante para o conhecimento do contexto social e intelectual desta época. Época de grandes fluxos migratórios, de novidades na forma da organização das cidades e da informação. Acreditamos que Gil Vicente estava atento a essa paisagem, tanto que notamos a incorporação desses elementos à sua obra.
Maria Parda vai morrer, não sem antes mendigar aos taverneiros uma última canada. Todos negam. Cada um desses taverneiros é uma imagem que reflete a grande diversidade étnica, cultural e linguística daquele meio. Os provérbios, as metáforas economicistas fazem parte daquele cotidiano e Maria Parda não é voz única, em meio à paisagem. Em Lisboa, naquele “triste ano de 1522”, muitos só desejam prantear, pois existe um mal que a muitos toca.