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O Rio Triste: imagens de Lisboa em Fernando Namora

O Rio Triste: imagens de Lisboa em

Fernando Namora

O Tejo a derramar pelas margens cintilações afogueadas, a cidade extasiada, uma poalha fumarenta sobre o casario — Lisboa a banhar-se no antecipado crepúsculo.

NAMORA, Fernando. O Rio Triste. Rio de Janeiro: Nórdica, 1982, p. 46.

Fernando Namora foi um escritor português, autor de uma vasta obra, muito divulgada e traduzida nos anos 70 e 80. A leitura das obras de Namora é capaz de despertar múltiplas sensações ao leitor através das estratégias de escrita que o autor utiliza. Um desses meios que desejamos destacar é a composição da paisagem e da ambientação dos espaços, bem presentes em seu percurso literário. Em sua primeira fase de escrita dialogou de forma direta com os ideais neorrealistas, e, portanto, esteve muito engajado com as questões sociais de sua época. Porém, sua produção é marcada por fases distintas, apresentando diferentes faces ao longo do tempo. O momento que por ora nos interessa é o ciclo citadino, iniciado a partir da publicação de O Homem Disfarçado, em 1957. Nesse período, o autor escreveu livros que têm como marca elementos urbanos, principalmente lisbonenses, como é o caso de seu último romance aqui destacado, O Rio Triste, que foi publicado em 1982.

Em O Rio Triste, a narrativa é construída a partir de uma notícia de jornal, datada de 1965, sobre o desaparecimento repentino de Rodrigo na cidade onde reside, Lisboa. Ao tentarem reconstituir a vida desse cidadão, os dois narradores do romance nos convidam a percorrer alguns pontos da cidade, evidenciando a relação do desaparecido com tais espaços. Dessa maneira, a leitura do romance é um chamado para uma imersão ao universo lisbonense pelo olhar de Fernando Namora. O autor destaca locais capazes de criar sentidos a partir da conexão que estabelecem com os sujeitos narrados, fazendo com que o Rio Tejo, o Café Martinho e outros elementos da capital participem dos desdobramentos narrativos até o final.

O Tejo surge na obra do início ao fim, manifestando sua importância no romance desde a sugestão no título, que faz referência ao rio e o coloca como um elemento triste da cidade, pois o mesmo parece refletir os sentimentos dos personagens. Percebemos, através dessa interação (Tejo x sujeito), a ideia que o arquiteto e filósofo finlandês, Juhani Pallasmaa, propõe em seu livro: Os olhos da pele: a arquitetura e os sentidos (2011), a respeito do diálogo vivo entre espaço e corpo:

Nossos corpos e movimentos estão em constante interação com o ambiente; o mundo e a individualidade humana se redefinem um ao outro constantemente. A percepção do corpo e a imagem do mundo se tornam uma experiência existencial contínua; não há corpo separado de seu domicílio no espaço, não há espaço desvinculado da imagem inconsciente de nossa identidade pessoal perceptiva.

PALLASMAA, Juhani. Os olhos da pele: a arquitetura e os sentidos. Tradução técnica: Alexandre Salvaterra. Porto Alegre: Bookman, 2011, p. 38.

Rio Tejo – Ponte 25 de abril (Lisboa).
Foto por Glauco Zuccaccia, disponível no Unsplash.
Fonte: https://unsplash.com/photos/zzb1hka1geM

Refletindo sobre a conexão entre corpo e espaço e visualizando a fotografia acima, observamos que é no rio que Rodrigo e Teresa têm o primeiro encontro, é também no Tejo que acreditam que Rodrigo foi visto pela última vez, e é ainda nesse espaço que seu provável cadáver é encontrado. Através da narrativa, atravessamos o Tejo de cacilheiro junto com o casal por meio das lembranças da esposa sobre as diversas travessias que fez com o marido, anteriormente ao seu desaparecimento. Ao acessarmos suas memórias, conhecemos um antes e um depois da paisagem observada por ela. Teresa coloca em contraste o presente e o passado, fazendo uma analogia entre as transformações da cidade e as mudanças em seu próprio relacionamento. A imagem a seguir traz o tradicional barco, conhecido como cacilheiro, usado ainda hoje para passeios no Tejo e tão presente e significativo em O Rio Triste.

Travessia de Cacilheiro no Rio Tejo (Lisboa).
Foto por Manuel Palmeira, disponível no Unsplash.
Fonte: https://unsplash.com/photos/zH63VptO-uo

O encontro no cacilheiro foi o início da história do casal, fazendo com que, ao longo dos anos, eles repetissem a travessia com frequência para relembrar e reafirmar aquele amor. Mas o momento de rememoração não corresponde ao passado recordado, e assim como a relação se desgastou, o mesmo ocorreu com a paisagem, marcada por diversas transformações ao longo do tempo:

Um entardecer no Rio, nesse ano tinha havido incêndios nas florestas, o casco acobreado dos grandes navios na sua imobilidade de paquidermes (ou de monstros hibernando?), até o fumo na atmosfera sugeria queimadas, o rio crescia quando nos afastávamos do cais num golfar de espumas, o perfil temível dos guindastes. Tinham repetido a travessia do Tejo, primeiro todas as semanas, quase sempre ao domingo, era mais calmo, depois todos os meses, como um rito amoroso. Uma promessa mútua. O rito, porém, cansara, deixara de ter sentido. Pior: sentiam-no ridículo. Mas sem o dizerem.

Esse diálogo da paisagem com o ruir da relação amorosa de Rodrigo e Teresa ocorre em outros momentos, evidenciando como o passar do tempo e as mudanças urbanas parecem ter influenciado no esvaziamento daquele amor. No trecho seguinte notamos o desaparecimento das gaivotas, que fogem do homem e das suas intervenções na paisagem natural:

Certa noite, tinham feito amor depois de um desses passeios rituais, que a repetição ia esvaziando de significado (“As gaivotas são por metade, ou menos, do que dantes, já reparaste?” — “Sim, vão desaparecendo, as aves fogem dos homens, o homem é o ser vivo mais destruidor”), e quando os corpos se deitaram, lassos, lado a lado, na ressaca do desejo cumprido sem convicção, ele com o olhar algures na parede decorada com um friso de leques chineses, ela riscando-lhe o ventre com a unha aguda (unhas muito brancas, sem um pingo de sangue), veio aquele comentário — comentário de Teresa: — Hoje fizemos um amor triste.

Em meio ao desaparecimento e as buscas por Rodrigo, entramos também no universo literário daquela época em que o principal ponto de encontro dos literatos era um café. André Bernardes, escritor que passa a ser também narrador de O Rio Triste, nos transporta para esse ambiente urbano que instiga e ao mesmo tempo impossibilita à escrita. Quando André assume a narração, somos invitados a andar pelas ruas de Lisboa e parar no Café Martinho, algumas vezes também referido no romance como Café das Arcadas.

Café Martinho, no início do século XX.
Fonte: https://restosdecoleccao.blogspot.com/2014/06/cafe-martinho.html

Café Martinho, no início do século XX.
Fonte: https://restosdecoleccao.blogspot.com/2014/06/cafe-martinho.html

Esse estabelecimento, que ficava localizado na Praça D. João da Câmara (antiga Largo Camões), no Rossio, possui grande importância na narrativa, pois é frequentado tanto pelo escritor, André Bernardes, e vários outros intelectuais e seus grupos como também era frequentado por Rodrigo, o desaparecido, sendo uma espécie de estabelecimento que liga de certa forma os personagens. Sobre a relação de Rodrigo com o café, o narrador destaca:

Ao fim da tarde, no regresso do emprego, era um dos frequentadores do Café Martinho, onde se reuniam tertúlias de artistas, estrategicamente isoladas uma das outras por cordões de mesas de clientela avulsa — os Abrantes da cidade. Dir-se-iam praças fortes em permanente estado de sítio, embora mutuamente neutralizadas pelo modo como se dispunham no terreno. Rodrigo pertencia à terra-de-ninguém pacificadora, mas bem gostaria de se achar do lado dos sediosos.

Praça D. João Câmara (antigo Largo Camões), no início do século XX.
Foto por Alexandre Cunha in AML.
Fonte: https://lisboadeantigamente.blogspot.com/2016/01/praca-dom-joao-da-camara.html

O Café Martinho que reuniu tantos literatos, como Alexandre Herculano, Almeida Garrett, entre outros, ganha destaque e passa a ser “um templo” na obra. André, que deseja escrever um romance no qual o amigo Faria Gomes será o personagem principal, logo adverte que o café será o lugar do crime, o local de inspiração para tal tarefa de escrita, ressaltando mais uma vez a importância daquele ponto de encontro:

Nos romances policiais, os detetives sagazes apuram o faro indo muitas vezes ao local do crime e tentando reproduzir, pelos elementos colhidos, a personalidade do criminoso. Um puzzle excitante. Na construção de certos romances acontece o mesmo. Neste caso de Faria Gomes o local do crime é o café. Assim, desço as ruas que ele, diariamente, ao começo da tarde (a sua hora matutina), escolhia para chegar ao centro da cidade, e entro no café das arcadas. É esta a sua mesa. Estes os comparsas da sua comédia ou do seu drama. Sem saudar nenhum deles, quando muito um erguer do queixo — tal como ele faria —, peço um “carioca” em chávena e compro o jornal.

É através do olhar do escritor André, que passa a narrar o desaparecimento de Rodrigo, que temos acesso ao processo de escrita citadino, em meio aos cafés, aos autocarros e ao caos solitário da multidão. Em certa deambulação pelas ruas de Lisboa com Faria Gomes, o amigo dirige-se a André a respeito de seu livro e da relação de sua escrita com a cidade: “— O seu livro chegou ao café vindo da rua, sem ajudas, sem maquinações. Foram a rua, o leitor, que o impuseram, nunca se esqueça disso”.

Por meio da narração do personagem-escritor vamos acompanhando as figuras que o rodeiam e conhecendo o cotidiano e as particularidades da vida de Rodrigo e da família, à medida que André Bernardes começa a frequentar a casa de Teresa para coletar informações sobre o marido desaparecido. Os indivíduos que passam a ser descritos por Bernardes parecem ter algo que os liga. Todos, em maior ou menor grau, são atravessados pela solidão, um sentimento que no livro é colocado em diálogo com o espaço em que todos eles vivem: a cidade de Lisboa. Percebemos uma solidão sempre em conexão com o ambiente urbano lisbonense, pois de início ao fim a cidade está ali, participando e se fazendo ecoar nos corpos narrados, mesmo que algumas vezes de forma indireta, seja pela presença dos automóveis, das ruas, do café ou ainda pelo esvaziamento das relações sociais.

Elementos urbanos em Rua de Lisboa. Foto por David Gil em Unsplash.
Fonte: https://unsplash.com/photos/dxKtddkoZGI

Durante o romance, as impressões dos narradores sobre Rodrigo demonstram um homem solitário, cada vez mais afastado da família. Esse afastamento se alarga, e ele também parece longe de acompanhar aquele cenário urbano que se transforma com muita velocidade, gerando uma sensação de não pertencimento do indivíduo àquele contexto. A paisagem natural, rara em ambientes urbanos, parece não caber mais. A imobilidade e a lentidão do rio não se enquadram ao ritmo acelerado da paisagem urbana.

Assim como o Tejo é sugerido logo no título da obra, o mesmo também demonstra sua relevância no suposto desenlace do caso de Rodrigo, ao fim do romance, pois entre algumas possibilidades de justificativas para o sumiço do personagem, acreditamos que uma delas possa ser acompanhar o destino do rio, demonstrando que não há mais como o lisboeta existir naquele espaço, sendo a melhor opção o recolhimento, o desaparecimento e o possível suicídio:

Aí estava o céu turvo, nem uma aberta. O arrepio nas árvores, que pareciam encolher-se ao perpassar da aragem. O Tejo, ao fundo, numa pardacenta imobilidade de expectativa. Daí a meses, porém, nem Tejo estático haveria: já tinham erguido os prumos de cimento para o edifício que se apossara do último reduto da colina. O Tejo iria desaparecer.

Dessa maneira, o Tejo é apresentado ao longo do romance como fiel testemunha daquelas vidas criadas por Fernando Namora em O Rio Triste. O fluxo das águas parece correr em ressonância com os corpos que com ele se encontram, demonstrando a força e a representatividade desse espaço para a cidade de Lisboa e seus habitantes. Para fecharmos o passeio pela capital a convite de Namora, finalizamos com alguns versos da música O Tejo, da banda Madredeus, que evidenciam o caráter testemunhal do rio:

Madrugada,
Descobre-me o rio
que atravesso tanto
para nada;

E este encanto,
prende por um fio,
a testemunha do que eu sei dizer.

Karina Frez Cursino

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PALLASMAA, Juhani. Os olhos da pele: a arquitetura e os sentidos. Tradução técnica: Alexandre Salvaterra. Porto Alegre: Bookman, 2011.

Juhani Pallasmaa é um arquiteto e filósofo finlandês. Foi professor de arquitetura da Universidade Aalto, e diretor do Museu de Arquitetura da Finlândia, de 1978 a 1983. Suas exposições sobre a arquitetura finlandesa, planejamento e artes visuais foram mostradas em mais de 30 países. Escreveu diversos artigos sobre filosofia da cultura, psicologia ecológica e teoria da arquitetura e teoria da arte.

NAMORA, Fernando. O Rio Triste. Rio de Janeiro: Nórdica, 1982.

NAMORA, Fernando. O Homem Disfarçado. Lisboa: Arcádia, 1957.

Agradecemos ao artista plástico Gabriel AV as fotos de Covilhã.