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Uma metamorfose ambulante: “José Matias” por entre paisagens
Uma metamorfose ambulante:
José Matias
por entre paisagens
O meu amigo conhece (pelo menos de tradição, como se conhece Helena de Tróia ou Inês de Castro) a formosa Elisa Miranda, a Elisa da Parreira… Foi a sublime beleza romântica de Lisboa, nos fins da Regeneração. Mas realmente Lisboa apenas a entrevia pelos vidros da sua grande caleche, ou nalguma noite de iluminação do Passeio Público entre a poeira e a turba, ou nos dois bailes da Assembleia do Carmo […] a Deusa raramente emergia de Arroios e se mostrava aos mortais. Mas quem a viu, e com facilidade constante, quase irremediavelmente, logo que se instalou em Lisboa, foi o José Matias […]
QUEIRÓS, José Maria Eça de. Contos. [Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós].
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, pp.365- 366.
Natural de Póvoa do Varzim, o escritor e diplomata José Maria Eça de Queirós (1845-1900) principiou a sua incursão no universo das Letras no último ano do curso, na Universidade de Coimbra. Foi nesse ambiente – no entender do próprio Eça, asfixiante – que um grupo de estudantes da Faculdade de Direito passou a criticar as regras rígidas da universidade e, mais adiante, o próprio conceito de nação que se desenhava. Esses contestadores, que ficariam para a posteridade como a Geração de 70, passaram a se defrontar, em intermináveis tertúlias que o jovem Eça passaria a também frequentar, com as questões limite de um Portugal finissecular.
Póvoa do Varzim, tendo o prédio da Câmara Municipal à esquerda, 1868.
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?search=C%C3%A2mara+Municipal+P%C3%B3voa+do+Varzim&title=Special:MediaSearch&go=Go&type=image
Eça de Queirós publicou mais de uma dezena de romances e fundou ou colaborou com dezenas de jornais e revistas, em Portugal e no estrangeiro. Atuando como diplomata, viveu a maior parte da vida adulta distante da terra natal, mas nunca rompeu com os laços de origem, contribuindo, em um período de grande turbação política e agitação cultural, com a mudança de mentalidade da sociedade portuguesa. Sua obra chega até nós como um verdadeiro patrimônio da cultura lusa.
Publicado pela primeira vez na Revista Moderna, em 1897, o conto “José Matias”, demonstra a destreza do autor no manejo da narrativa curta e ainda hoje leva os leitores a se perguntarem: o que leva um indivíduo, com as delícias da materialidade a seus pés, a abrir mão de tudo em favor da eleita, por quem dissipa tudo até chegar à miséria?
Ainda nos tempos de faculdade o protagonista, apelidado pelos colegas de “Matias coração de esquilo”, aparentava uma “inabalável quietação [que] parecia provir duma imensa superficialidade sentimental” QUEIRÓS, José Maria Eça de. Contos. [Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós]. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, p.365.. Era um sujeito tão “escandalosamente banal” que intrigou o professor de filosofia que faz as vezes de narrador. Enquanto acompanhava o enterro de José Matias, ele perfazia junto a um conhecido os descaminhos do amigo, até o seu triste fim, no Cemitério dos Prazeres. Ainda que José Matias tivesse partido desta vida completamente arruinado, a mão de um protetor garantiu-lhe um bom lugar por toda a eternidade, uma vez que lá repousavam – e ainda repousam – celebridades e figuras históricas de Portugal.
Via principal do Cemitério dos Prazeres
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?search=Cemit%C3%A9rio+dos+Prazeres&title=Special:MediaSearch&go=Go&type=image
Enquanto dava o último adeus ao amigo, o nosso professor de filosofia fez do leitor o seu confidente, voltando a uma “tarde agreste de Janeiro”, última vez em que viu Matias, “metido num portal da Rua de São Bento, [onde] tiritava dentro de uma quinzena cor de mel, roída nos cotovelos, e cheirava abominavelmente a aguardente.”
QUEIRÓS, José Maria Eça de. Contos. [Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós].
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, p. 361.
Esquina da Rua de São Bento e Rua do Sol ao Rato, por Roque Gameiro
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O triste fim do moço causa perplexidade e aguça uma curiosidade um tanto mórbida sobre os motivos que o levaram à queda. Ficamos sabendo que, na mocidade, José Matias não fora mal-arranjado. Ele e o narrador frequentaram juntos a Universidade de Coimbra, tal e qual o autor da narrativa, que, entre 1861 e 1866, vagueava “por toda essa Coimbra, de tão lavados e doces ares, do Salgueiral até Celas, [onde] se erguia ela [a universidade], com as suas formas diferentes de comprimir, escurecer as almas”.
QUEIRÓS, José Maria Eça de. Notas contemporâneas: crônicas e artigos.
Acessível em: https://books.google.com.br/books?id=nxqlCgAAQBAJ
Último acesso: 30/03/2018.
Universidade de Coimbra
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=17732149
Como dizia Eça, o dia a dia dentro da universidade podia até se mostrar opressivo. Mas as noites em Coimbra eram bem mais inspiradoras. Os estudantes, fruindo a boemia, davam asas à imaginação e, dentre eles, o nosso protagonista: “Era uma noite de Abril, de lua cheia. Passeámos depois em bando, com guitarras pela Ponte e pelo Choupal. […] e o José Matias, encostado ao parapeito da ponte, com a alma e os olhos perdidos na lua!”
QUEIRÓS, José Maria Eça de. Contos. [Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós]. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, p. 364.
Entrada da Ponte de Santa Clara e vista da cidade de Coimbra.
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Como a mãe, antes de falecer, deixara para o recém-formado a fortuna de cinquenta contos de réis, nada mais o prendia à terra natal. José Matias foi morar com o tio em Arroios. Da janela da nova residência, passou a divisar: “o largo e belo jardim de rosas do Conselheiro Matos Miranda, cuja casa, com um arejado terraço entre dois torreõezinhos amarelos, se erguia no cimo do outeiro e se chamava a Casa da Parreira.” QUEIRÓS, José Maria Eça de. Contos. [Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós]. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, p. 365. A vista era ainda mais aprazível porque, por entre os jardins, passeava diariamente a esposa do Conselheiro, que “Alta, esbelta, ondulosa, digna da comparação bíblica da palmeira ao vento” QUEIRÓS, José Maria Eça de. Contos. [Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós]. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, p. 366., tornava-se ela própria parte inseparável da paisagem:
esta presença real da divina criatura no seu ser criou no José Matias modos novos, estranhos, derivando da alucinação. Como o Visconde de Garmilde [o tio de Matias] jantava cedo, à hora vernácula do Portugal antigo, José Matias ceava, depois de S. Carlos, naquele delicioso e saudoso Café Central, onde o linguado parecia frito no céu, e o Colares no céu engarrafado. Pois nunca ceava sem serpentinas profusamente acesas e a mesa juncada de flores. Por quê? Porque Elisa também ali ceava, invisível.
QUEIRÓS, José Maria Eça de. Contos. [Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós].
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, p. 369.
O Teatro Nacional de São Carlos: a casa da ópera em Portugal.
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A imaginação transbordante de José Matias redimensionou o café e o Teatro São Carlos, em consonância com a grandiloquência da sua paixão:
Decentemente não podia andar com a imagem de Elisa numa tipoia de praça, nem consentir que a augusta imagem roçasse pelas cadeiras de palhinha da plateia de S. Carlos. Montou, portanto, carruagens dum gosto sóbrio e puro: e assinou um camarote na Ópera, onde instalou, para ela, uma poltrona pontifical, de cetim branco, bordado a estrelas de ouro.
QUEIRÓS, José Maria Eça de. Contos. [Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós].
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, p. 369.
O culto diário à vizinha fez José Matias arder como uma casa em chamas. Mas, ao invés de se declarar diretamente, limitava-se a, postado à janela, contemplar a bela Elisa, sempre à mesma hora. Impressionado, o narrador exclama: “esta felicidade, meu amigo, durou dez anos… Que escandaloso luxo para um mortal!” QUEIRÓS, José Maria Eça de. Contos. [Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós]. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, p. 370.
Ao final de uma década de contemplação mútua, Elisa enviuvou. Era a chance de ouro para Matias, segundo seus amigos; o que, no entanto, não surtiu o efeito esperado. Quando, ao olhar para o outro lado dos jardins, o incansável admirador percebeu que estava diante da “jaula insegura de uma leoa”, fez as malas e seguiu para a estação ferroviária de Santa Apolônia, de onde saiu para a cidade do Porto, como quem volta ao útero materno.
Estação de Santa Apolônia, Lisboa, em fotografia de Augusto Xavier Moreira (c.1865).
https://pt.wikipedia.org/wiki/Esta%C3%A7%C3%A3o_Ferrovi%C3%A1ria_de_Lisboa-Santa_Apol%C3%B3nia#/media/Ficheiro:Gare_de_Santa_Apolonia_-_Archivo_Pittoresco_1_1866.jpg
Enquanto Matias fugia de um provável compromisso, Elisa – de ascendência humilde, galgou os primeiros degraus da mobilidade social pelas vias do casamento – passou a viver sozinha na casa da Parreira, em Arroios. A viúva assumiu o governo da própria vida e saiu em busca do amado para realizar o sonho do casamento perfeito.
José Matias, para a surpresa de todos, abriu mão da “sorte grande”. Os amigos, em princípio, aplaudiram a sua atitude, por entenderem que a sua ausência de Lisboa salvava as aparências. Mas ficaram atônitos diante da recusa inarredável do rapaz:
Meu caro amigo! Os meses cerimoniais de luto passaram, depois outros, e José Matias não se arredou do Porto. Nesse Agosto o encontrei eu instalado fundamentalmente no Hotel Francfort, onde entretinha a melancolia dos dias abrasados, fumando (porque voltara ao tabaco), lendo romances de Julio Verne, e bebendo cerveja gelada até que a tarde refrescava e ele se vestia, se perfumava, se floria para jantar na Foz.
QUEIRÓS, José Maria Eça de. Contos. [Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós].
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, pp. 371-372.
De admirador incondicional da vizinha, voltou à condição de boêmio inveterado. E, como também lhe morresse o tio Garmilde, ganhou outra bolada de cinquenta contos, “em terras excelentes e livres”, que, tão logo passaram a seu nome, foram dilapidadas na vida mundana. Abastado, José Matias circulava por lugares da moda, como a Foz do Douro, naquele que passou a ser considerado o “terceiro grande período histórico da cidade”:
desde o primeiro quartel do século XIX até ao segundo quartel do século XX. […] Começou a moda dos banhos de mar, o que levou a que todos os anos, no período do Verão, cada vez mais pessoas se dirigissem à Foz. As ligações terrestres e os transportes públicos foram melhorando a ligação do centro do Porto à Foz, o que cada vez aumentou mais o número de pessoas de todo o Noroeste português que aí passavam férias.
MOURA, Nuno Augusto Monteiro de Campos. A Foz do Douro: Evolução urbana. Dissertação de mestrado em Planeamento Urbano e Regional. Faculdade de Letras. Universidade do Porto, 2009, p. III.
Quanto à Elisa da Parreira, depois de seis meses de luto e sem receber qualquer aceno do amado, casou-se novamente e tornou-se a Senhora Torres Nogueira. Como o casal permaneceu na mesma casa, em Arroios, Matias, tão logo soube do novo casório, voltou para Lisboa e retomou o doce ofício de cortejar a vizinha a média distância:
[…] em Outubro, como o Torres Nogueira continuava a vindimar em Carcavelos, o José Matias, para contemplar o terraço da Parreira, já abria de novo as vidraças, larga e extaticamente!
QUEIRÓS, José Maria Eça de. Contos. [Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós].
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, p. 377.
Embora parecesse que tudo voltara ao que era dantes, José Matias e Elisa já não eram os mesmos. A jovem viúva seguiu o caminho que aliava posição social e os prazeres de cama e mesa. Ao contrário do primeiro marido – que, por ser bem mais velho, ostentava um perfil paternal – ela encontrou, dessa vez, um homem viril para desposá-la. Quando José Matias percebeu as novas regras de conjugalidade entre Elisa e o esposo, viu maculada a imagem da santa que, até então adorara, sem reservas.
A preservação de corpo e espírito que Matias devotara a sua deusa por uma década finalmente cessou. Passou a frequentar locais de reputação duvidosa, deixando entrever que não era só a paisagem urbana que mudava de rosto; ele próprio se desfigurava.
O amor por Elisa, que em tantos momentos o enlevara, tornou-se um fado e José Matias, sujeito atormentado, passou a exibir de forma veemente a sua frustração, para o estupor da conservadora sociedade lisboeta:
Desesperadamente, durante um ano, remexeu, aturdiu, escandalizou Lisboa! São desse tempo algumas das suas extravagâncias lendárias… Conhece a da ceia? Uma ceia oferecida a trinta ou quarenta mulheres das mais torpes e das mais sujas, apanhadas pelas negras vielas do Bairro Alto e da Mouraria, que depois mandou montar em burros, e gravemente, melancolicamente, posto na frente, sobre um grande cavalo branco, com um imenso chicote, conduziu aos altos da Graça, para saudar a aparição do sol!
QUEIRÓS, José Maria Eça de. Contos. [Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós].
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, p. 377.
Ao escolher mulheres decaídas nas áreas mais antigas de Lisboa, onde o fado falava mais alto, em meio à jogatina e à prostituição, e promover um rito pagão, José Matias principiou a ritualização da própria ruína. Dissipando o legado familiar, circulou pelo baixo mundo lisboeta, até lhe restar tão somente a casa de Arroios. Mas nem esse derradeiro bem escapou à penhora.
Quando o protagonista – agora, um boêmio inveterado – percebeu que Elisa estava prestes a enviuvar pela segunda vez, tornou a se recolher. O narrador foi encontrá-lo na casa que fora do tio e se deprimiu ao constatar a decadência reinante. Matias permanecia alheio à realidade que o circundava, mas sem descuidar da única riqueza que lhe restava e que se encontrava diante dos seus olhos:
Na casa da parreira, duas janelas brilhavam fortemente alumiadas, abertas à macia aragem. E essa claridade viva envolvia uma figura branca, nas longas pregas de um roupão branco, parada à beira do terraço, como esquecida numa contemplação. Era Elisa, meu amigo! Por trás, no fundo do quarto, o marido certamente arquejava, na opressão da anasarca. Ela, imóvel, repousava, mandando um doce olhar, talvez um sorriso, ao seu doce amigo. O miserável, fascinado, sem respirar, sorvia o encanto daquela visão benfazeja. E eles rescendiam, na moleza da noite, todas as flores dos dois jardins…
QUEIRÓS, José Maria Eça de. Contos. [Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós].
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, p. 378.
Elisa compreendeu, pelo devotamento do sujeito enamorado, que era ela a dona daquele destino, que Matias resolveu trilhar sem concessões. Viúva mais uma vez, ela não poderia contrair um terceiro matrimônio. Mas mantinha-se bela e rica, o que lhe permitiu conquistar um amante. Mudou-se para a Rua de São Bento e instalou, na extremidade da rua, o apontador de Obras Públicas, um “belo moço, sólido, branco, de barba escura, em excelentes condições de quantidade (e talvez mesmo de qualidade) para encher um coração viúvo, e, portanto, “vazio”, como diz a Bíblia”. QUEIRÓS, José Maria Eça de. Contos. [Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós]. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, p. 380.
Era sintomático que o felizardo fosse um apontador de Obras Públicas e, como tal, circulasse por toda a cidade, assim como a divina Elisa, saída das vielas de Setúbal para a agitação urbana de Lisboa e, o próprio José Matias que, na direção contrária, sairia de cena nos espaços ocupados pela burguesia, para reaparecer nos cantos mais empobrecidos da cidade, nos quais a nata da sociedade lisboeta se recusaria a colocar os pés.
Muralha de Setúbal. Porta de São Sebastião
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Amante de espírito, um José Matias maltrapilho passou a viver às escondidas “[em um] portal negro […] em frente ao prédio novo e às varandas de Elisa! […] Era um dos pátios da Lisboa antiga, sem porteiro, sempre escancarados, sempre sujos, cavernas laterais da rua, donde ninguém escorraça os escondidos da miséria ou da dor.” QUEIRÓS, José Maria Eça de. Contos. [Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós]. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, p. 381.
Pátio do Peneireiro, Lisboa, por Roque Gameiro
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Aquele ponto negro na arquitetura lisboeta tinha o seu porquê. Afinal, a cidade perdera, com a modernidade, o semblante outrora pacífico. Com a industrialização crescente, no final do século XIX, a massa proletária se expandiu e, enxotada das áreas centrais que a remodelação urbana embelezou, passou a viver num ambiente hostil e caótico, em meio a parcas condições sanitárias e baixa qualidade de vida.
Percebemos que, tal e qual os invisíveis de Lisboa, José Matias “quase se acimenta à paisagem, à própria cidade – em permanente construção/ruína como ele – , em um amálgama que incomoda, faz arder os olhos.” ERTHAL, Aline Duque. “Ruy Belo e João Miguel Fernandes Jorge: cidades de volumes e cristas.” In: ALVES, Ida; ANCHIETA, Marleide. Grafias da Cidade na poesia contemporânea (Brasil-Portugal). Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2015, p. 246.
Mesmo posto na rua, continuou a contemplar a janela da senhora noite adentro, para não ser visto em tão mau estado. Era uma brasa que se apagava, mas o pouco que ardia se prestava a queimar cigarros, um após o outro, nos desvãos da Rua de São Bento, para que Elisa pudesse percebê-lo, em meio à escuridão.
Vítima de congestão nos pulmões, José Matias morreu, sem choro, nem vela, “de madrugada, estirado no ladrilho, todo encolhido no jaquetão delgado, arquejando, com a face coberta de morte, voltada para as varandas de Elisa.” QUEIRÓS, José Maria Eça de. Contos. [Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós]. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, p. 384. Foi, por fim, engolido pela paisagem urbana.
Diferentemente da sua eleita que podia se dar ao luxo de ter um amante carnal e outro espiritual, José Matias só trazia consigo o seu incomensurável amor e, fatalmente, ao se perder pela cidade – corpo pulsante e mutável, como ele próprio – veio a sucumbir. Tornou-se um sem-lugar, porque não havia mais espaço, na virada do século XIX para o século XX, para um romântico irremediável.
Ainda que teça, no campo da ficção, uma crítica contundente ao idealismo que vitimou, dentre tantos, um amigo caro, como foi Antero de Quental, Eça de Queirós presta-lhe uma última deferência, por reconhecer, neste espaço de inadequação, os verdadeiros poetas. E o faz pela boca de um filósofo, até então convicto que o pensamento lógico deveria nortear pensamentos e ações:
[…] sempre a Matéria, mesmo sem o compreender, sem dele tirar a sua felicidade, adorará o Espírito, e sempre a si própria, através dos gozos que de si recebe, se tratará com brutalidade e desdém. […] Só por isto valeu a pena trazer à sua cova este inexplicado José Matias, que era talvez muito mais que um homem – ou talvez ainda menos que um homem… Com efeito, está frio; – mas que linda tarde!
(QUEIRÓS, 2009, p. 384)
Que vivam, pois, os eternos poetas!
Placa do Largo Eça de Queirós, em Póvoa do Varzim, Portugal.
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