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Uma metamorfose ambulante: “José Matias” por entre paisagens

Uma metamorfose ambulante:

José Matias

por entre paisagens

O meu amigo conhece (pelo menos de tradição, como se conhece Helena de Tróia ou Inês de Castro) a formosa Elisa Miranda, a Elisa da Parreira… Foi a sublime beleza romântica de Lisboa, nos fins da Regeneração. Mas realmente Lisboa apenas a entrevia pelos vidros da sua grande caleche, ou nalguma noite de iluminação do Passeio Público entre a poeira e a turba, ou nos dois bailes da Assembleia do Carmo […] a Deusa raramente emergia de Arroios e se mostrava aos mortais. Mas quem a viu, e com facilidade constante, quase irremediavelmente, logo que se instalou em Lisboa, foi o José Matias […]

QUEIRÓS, José Maria Eça de. Contos. [Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós]. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, pp.365- 366.

Natural de Póvoa do Varzim, o escritor e diplomata José Maria Eça de Queirós (1845-1900) principiou a sua incursão no universo das Letras no último ano do curso, na Universidade de Coimbra. Foi nesse ambiente – no entender do próprio Eça, asfixiante – que um grupo de estudantes da Faculdade de Direito passou a criticar as regras rígidas da universidade e, mais adiante, o próprio conceito de nação que se desenhava. Esses contestadores, que ficariam para a posteridade como a Geração de 70, passaram a se defrontar, em intermináveis tertúlias que o jovem Eça passaria a também frequentar, com as questões limite de um Portugal finissecular.

Eça de Queirós publicou mais de uma dezena de romances e fundou ou colaborou com dezenas de jornais e revistas, em Portugal e no estrangeiro. Atuando como diplomata, viveu a maior parte da vida adulta distante da terra natal, mas nunca rompeu com os laços de origem, contribuindo, em um período de grande turbação política e agitação cultural, com a mudança de mentalidade da sociedade portuguesa. Sua obra chega até nós como um verdadeiro patrimônio da cultura lusa.

Publicado pela primeira vez na Revista Moderna, em 1897, o conto “José Matias”, demonstra a destreza do autor no manejo da narrativa curta e ainda hoje leva os leitores a se perguntarem: o que leva um indivíduo, com as delícias da materialidade a seus pés, a abrir mão de tudo em favor da eleita, por quem dissipa tudo até chegar à miséria?

Ainda nos tempos de faculdade o protagonista, apelidado pelos colegas de “Matias coração de esquilo”, aparentava uma “inabalável quietação [que] parecia provir duma imensa superficialidade sentimental” QUEIRÓS, José Maria Eça de. Contos. [Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós]. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, p.365.. Era um sujeito tão “escandalosamente banal” que intrigou o professor de filosofia que faz as vezes de narrador. Enquanto acompanhava o enterro de José Matias, ele perfazia junto a um conhecido os descaminhos do amigo, até o seu triste fim, no Cemitério dos Prazeres. Ainda que José Matias tivesse partido desta vida completamente arruinado, a mão de um protetor garantiu-lhe um bom lugar por toda a eternidade, uma vez que lá repousavam – e ainda repousam – celebridades e figuras históricas de Portugal.

Enquanto dava o último adeus ao amigo, o nosso professor de filosofia fez do leitor o seu confidente, voltando a uma “tarde agreste de Janeiro”, última vez em que viu Matias, “metido num portal da Rua de São Bento, [onde] tiritava dentro de uma quinzena cor de mel, roída nos cotovelos, e cheirava abominavelmente a aguardente.”

QUEIRÓS, José Maria Eça de. Contos. [Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós]. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, p. 361.

O triste fim do moço causa perplexidade e aguça uma curiosidade um tanto mórbida sobre os motivos que o levaram à queda. Ficamos sabendo que, na mocidade, José Matias não fora mal-arranjado. Ele e o narrador frequentaram juntos a Universidade de Coimbra, tal e qual o autor da narrativa, que, entre 1861 e 1866, vagueava “por toda essa Coimbra, de tão lavados e doces ares, do Salgueiral até Celas, [onde] se erguia ela [a universidade], com as suas formas diferentes de comprimir, escurecer as almas”.

QUEIRÓS, José Maria Eça de. Notas contemporâneas: crônicas e artigos.
Acessível em: https://books.google.com.br/books?id=nxqlCgAAQBAJ
Último acesso: 30/03/2018.

Como dizia Eça, o dia a dia dentro da universidade podia até se mostrar opressivo. Mas as noites em Coimbra eram bem mais inspiradoras. Os estudantes, fruindo a boemia, davam asas à imaginação e, dentre eles, o nosso protagonista: “Era uma noite de Abril, de lua cheia. Passeámos depois em bando, com guitarras pela Ponte e pelo Choupal. […] e o José Matias, encostado ao parapeito da ponte, com a alma e os olhos perdidos na lua!”

QUEIRÓS, José Maria Eça de. Contos. [Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós]. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, p. 364.

Como a mãe, antes de falecer, deixara para o recém-formado a fortuna de cinquenta contos de réis, nada mais o prendia à terra natal. José Matias foi morar com o tio em Arroios. Da janela da nova residência, passou a divisar: “o largo e belo jardim de rosas do Conselheiro Matos Miranda, cuja casa, com um arejado terraço entre dois torreõezinhos amarelos, se erguia no cimo do outeiro e se chamava a Casa da Parreira.” QUEIRÓS, José Maria Eça de. Contos. [Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós]. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, p. 365. A vista era ainda mais aprazível porque, por entre os jardins, passeava diariamente a esposa do Conselheiro, que “Alta, esbelta, ondulosa, digna da comparação bíblica da palmeira ao vento” QUEIRÓS, José Maria Eça de. Contos. [Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós]. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, p. 366., tornava-se ela própria parte inseparável da paisagem:
esta presença real da divina criatura no seu ser criou no José Matias modos novos, estranhos, derivando da alucinação. Como o Visconde de Garmilde [o tio de Matias] jantava cedo, à hora vernácula do Portugal antigo, José Matias ceava, depois de S. Carlos, naquele delicioso e saudoso Café Central, onde o linguado parecia frito no céu, e o Colares no céu engarrafado. Pois nunca ceava sem serpentinas profusamente acesas e a mesa juncada de flores. Por quê? Porque Elisa também ali ceava, invisível.

QUEIRÓS, José Maria Eça de. Contos. [Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós].
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, p. 369.

A imaginação transbordante de José Matias redimensionou o café e o Teatro São Carlos, em consonância com a grandiloquência da sua paixão:

Decentemente não podia andar com a imagem de Elisa numa tipoia de praça, nem consentir que a augusta imagem roçasse pelas cadeiras de palhinha da plateia de S. Carlos. Montou, portanto, carruagens dum gosto sóbrio e puro: e assinou um camarote na Ópera, onde instalou, para ela, uma poltrona pontifical, de cetim branco, bordado a estrelas de ouro.

QUEIRÓS, José Maria Eça de. Contos. [Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós]. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, p. 369.
O culto diário à vizinha fez José Matias arder como uma casa em chamas. Mas, ao invés de se declarar diretamente, limitava-se a, postado à janela, contemplar a bela Elisa, sempre à mesma hora. Impressionado, o narrador exclama: “esta felicidade, meu amigo, durou dez anos… Que escandaloso luxo para um mortal!” QUEIRÓS, José Maria Eça de. Contos. [Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós]. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, p. 370. Ao final de uma década de contemplação mútua, Elisa enviuvou. Era a chance de ouro para Matias, segundo seus amigos; o que, no entanto, não surtiu o efeito esperado. Quando, ao olhar para o outro lado dos jardins, o incansável admirador percebeu que estava diante da “jaula insegura de uma leoa”, fez as malas e seguiu para a estação ferroviária de Santa Apolônia, de onde saiu para a cidade do Porto, como quem volta ao útero materno.

Enquanto Matias fugia de um provável compromisso, Elisa – de ascendência humilde, galgou os primeiros degraus da mobilidade social pelas vias do casamento – passou a viver sozinha na casa da Parreira, em Arroios. A viúva assumiu o governo da própria vida e saiu em busca do amado para realizar o sonho do casamento perfeito.

José Matias, para a surpresa de todos, abriu mão da “sorte grande”. Os amigos, em princípio, aplaudiram a sua atitude, por entenderem que a sua ausência de Lisboa salvava as aparências. Mas ficaram atônitos diante da recusa inarredável do rapaz:

Meu caro amigo! Os meses cerimoniais de luto passaram, depois outros, e José Matias não se arredou do Porto. Nesse Agosto o encontrei eu instalado fundamentalmente no Hotel Francfort, onde entretinha a melancolia dos dias abrasados, fumando (porque voltara ao tabaco), lendo romances de Julio Verne, e bebendo cerveja gelada até que a tarde refrescava e ele se vestia, se perfumava, se floria para jantar na Foz.

QUEIRÓS, José Maria Eça de. Contos. [Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós].
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, pp. 371-372.

De admirador incondicional da vizinha, voltou à condição de boêmio inveterado. E, como também lhe morresse o tio Garmilde, ganhou outra bolada de cinquenta contos, “em terras excelentes e livres”, que, tão logo passaram a seu nome, foram dilapidadas na vida mundana. Abastado, José Matias circulava por lugares da moda, como a Foz do Douro, naquele que passou a ser considerado o “terceiro grande período histórico da cidade”:

desde o primeiro quartel do século XIX até ao segundo quartel do século XX. […] Começou a moda dos banhos de mar, o que levou a que todos os anos, no período do Verão, cada vez mais pessoas se dirigissem à Foz. As ligações terrestres e os transportes públicos foram melhorando a ligação do centro do Porto à Foz, o que cada vez aumentou mais o número de pessoas de todo o Noroeste português que aí passavam férias.

MOURA, Nuno Augusto Monteiro de Campos. A Foz do Douro: Evolução urbana. Dissertação de mestrado em Planeamento Urbano e Regional. Faculdade de Letras. Universidade do Porto, 2009, p. III.

Quanto à Elisa da Parreira, depois de seis meses de luto e sem receber qualquer aceno do amado, casou-se novamente e tornou-se a Senhora Torres Nogueira. Como o casal permaneceu na mesma casa, em Arroios, Matias, tão logo soube do novo casório, voltou para Lisboa e retomou o doce ofício de cortejar a vizinha a média distância:

[…] em Outubro, como o Torres Nogueira continuava a vindimar em Carcavelos, o José Matias, para contemplar o terraço da Parreira, já abria de novo as vidraças, larga e extaticamente!

QUEIRÓS, José Maria Eça de. Contos. [Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós].
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, p. 377.

Embora parecesse que tudo voltara ao que era dantes, José Matias e Elisa já não eram os mesmos. A jovem viúva seguiu o caminho que aliava posição social e os prazeres de cama e mesa. Ao contrário do primeiro marido – que, por ser bem mais velho, ostentava um perfil paternal – ela encontrou, dessa vez, um homem viril para desposá-la. Quando José Matias percebeu as novas regras de conjugalidade entre Elisa e o esposo, viu maculada a imagem da santa que, até então adorara, sem reservas. A preservação de corpo e espírito que Matias devotara a sua deusa por uma década finalmente cessou. Passou a frequentar locais de reputação duvidosa, deixando entrever que não era só a paisagem urbana que mudava de rosto; ele próprio se desfigurava. O amor por Elisa, que em tantos momentos o enlevara, tornou-se um fado e José Matias, sujeito atormentado, passou a exibir de forma veemente a sua frustração, para o estupor da conservadora sociedade lisboeta:
Desesperadamente, durante um ano, remexeu, aturdiu, escandalizou Lisboa! São desse tempo algumas das suas extravagâncias lendárias… Conhece a da ceia? Uma ceia oferecida a trinta ou quarenta mulheres das mais torpes e das mais sujas, apanhadas pelas negras vielas do Bairro Alto e da Mouraria, que depois mandou montar em burros, e gravemente, melancolicamente, posto na frente, sobre um grande cavalo branco, com um imenso chicote, conduziu aos altos da Graça, para saudar a aparição do sol!

QUEIRÓS, José Maria Eça de. Contos. [Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós].
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, p. 377.

Ao escolher mulheres decaídas nas áreas mais antigas de Lisboa, onde o fado falava mais alto, em meio à jogatina e à prostituição, e promover um rito pagão, José Matias principiou a ritualização da própria ruína. Dissipando o legado familiar, circulou pelo baixo mundo lisboeta, até lhe restar tão somente a casa de Arroios. Mas nem esse derradeiro bem escapou à penhora. Quando o protagonista – agora, um boêmio inveterado – percebeu que Elisa estava prestes a enviuvar pela segunda vez, tornou a se recolher. O narrador foi encontrá-lo na casa que fora do tio e se deprimiu ao constatar a decadência reinante. Matias permanecia alheio à realidade que o circundava, mas sem descuidar da única riqueza que lhe restava e que se encontrava diante dos seus olhos:

Na casa da parreira, duas janelas brilhavam fortemente alumiadas, abertas à macia aragem. E essa claridade viva envolvia uma figura branca, nas longas pregas de um roupão branco, parada à beira do terraço, como esquecida numa contemplação. Era Elisa, meu amigo! Por trás, no fundo do quarto, o marido certamente arquejava, na opressão da anasarca. Ela, imóvel, repousava, mandando um doce olhar, talvez um sorriso, ao seu doce amigo. O miserável, fascinado, sem respirar, sorvia o encanto daquela visão benfazeja. E eles rescendiam, na moleza da noite, todas as flores dos dois jardins…

QUEIRÓS, José Maria Eça de. Contos. [Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós].
Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, p. 378.

Elisa compreendeu, pelo devotamento do sujeito enamorado, que era ela a dona daquele destino, que Matias resolveu trilhar sem concessões. Viúva mais uma vez, ela não poderia contrair um terceiro matrimônio. Mas mantinha-se bela e rica, o que lhe permitiu conquistar um amante. Mudou-se para a Rua de São Bento e instalou, na extremidade da rua, o apontador de Obras Públicas, um “belo moço, sólido, branco, de barba escura, em excelentes condições de quantidade (e talvez mesmo de qualidade) para encher um coração viúvo, e, portanto, “vazio”, como diz a Bíblia”. QUEIRÓS, José Maria Eça de. Contos. [Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós]. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, p. 380.

Era sintomático que o felizardo fosse um apontador de Obras Públicas e, como tal, circulasse por toda a cidade, assim como a divina Elisa, saída das vielas de Setúbal para a agitação urbana de Lisboa e, o próprio José Matias que, na direção contrária, sairia de cena nos espaços ocupados pela burguesia, para reaparecer nos cantos mais empobrecidos da cidade, nos quais a nata da sociedade lisboeta se recusaria a colocar os pés.

Amante de espírito, um José Matias maltrapilho passou a viver às escondidas “[em um] portal negro […] em frente ao prédio novo e às varandas de Elisa! […] Era um dos pátios da Lisboa antiga, sem porteiro, sempre escancarados, sempre sujos, cavernas laterais da rua, donde ninguém escorraça os escondidos da miséria ou da dor.” QUEIRÓS, José Maria Eça de. Contos. [Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós]. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, p. 381.

Aquele ponto negro na arquitetura lisboeta tinha o seu porquê. Afinal, a cidade perdera, com a modernidade, o semblante outrora pacífico. Com a industrialização crescente, no final do século XIX, a massa proletária se expandiu e, enxotada das áreas centrais que a remodelação urbana embelezou, passou a viver num ambiente hostil e caótico, em meio a parcas condições sanitárias e baixa qualidade de vida.

Percebemos que, tal e qual os invisíveis de Lisboa, José Matias “quase se acimenta à paisagem, à própria cidade – em permanente construção/ruína como ele – , em um amálgama que incomoda, faz arder os olhos.” ERTHAL, Aline Duque. “Ruy Belo e João Miguel Fernandes Jorge: cidades de volumes e cristas.” In: ALVES, Ida; ANCHIETA, Marleide. Grafias da Cidade na poesia contemporânea (Brasil-Portugal). Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2015, p. 246.

Mesmo posto na rua, continuou a contemplar a janela da senhora noite adentro, para não ser visto em tão mau estado. Era uma brasa que se apagava, mas o pouco que ardia se prestava a queimar cigarros, um após o outro, nos desvãos da Rua de São Bento, para que Elisa pudesse percebê-lo, em meio à escuridão.

Vítima de congestão nos pulmões, José Matias morreu, sem choro, nem vela, “de madrugada, estirado no ladrilho, todo encolhido no jaquetão delgado, arquejando, com a face coberta de morte, voltada para as varandas de Elisa.” QUEIRÓS, José Maria Eça de. Contos. [Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós]. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, p. 384. Foi, por fim, engolido pela paisagem urbana.

Diferentemente da sua eleita que podia se dar ao luxo de ter um amante carnal e outro espiritual, José Matias só trazia consigo o seu incomensurável amor e, fatalmente, ao se perder pela cidade – corpo pulsante e mutável, como ele próprio – veio a sucumbir. Tornou-se um sem-lugar, porque não havia mais espaço, na virada do século XIX para o século XX, para um romântico irremediável.

Ainda que teça, no campo da ficção, uma crítica contundente ao idealismo que vitimou, dentre tantos, um amigo caro, como foi Antero de Quental, Eça de Queirós presta-lhe uma última deferência, por reconhecer, neste espaço de inadequação, os verdadeiros poetas. E o faz pela boca de um filósofo, até então convicto que o pensamento lógico deveria nortear pensamentos e ações:

[…] sempre a Matéria, mesmo sem o compreender, sem dele tirar a sua felicidade, adorará o Espírito, e sempre a si própria, através dos gozos que de si recebe, se tratará com brutalidade e desdém. […] Só por isto valeu a pena trazer à sua cova este inexplicado José Matias, que era talvez muito mais que um homem – ou talvez ainda menos que um homem… Com efeito, está frio; – mas que linda tarde!

(QUEIRÓS, 2009, p. 384)

Que vivam, pois, os eternos poetas!

Placa do Largo Eça de Queirós, em Póvoa do Varzim, Portugal.
https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/4/49/Placa_largo_e%C3%A7a_queiroz_povoa_varzim.jpg

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O escritor Antero de Quental nasceu em 18 de abril de 1842, em Ponta Delgada, nos Açores, mesmo local em que veio a falecer aos 49 anos de idade, após atentar contra a própria vida. Estudou Direito em Coimbra e integrou as tertúlias frequentadas por Eça de Queirós, Ramalho Ortigão e demais colegas da Faculdade de Direito que originariam o grupo do “Cenáculo”. Foi esse o grupo que, tendo Antero à frente, acabou por se envolver em uma polêmica literária com o poeta António Feliciano de Castilho, a qual ficou conhecida como a Questão Coimbrã ou Questão do Bom Senso e Bom Gosto, em 1865.

Essa mesma ponte, onde Matias suspirara, em 1897, – ano da publicação do conto – não existia mais. A ponte manuelina, de pedra, foi substituída, entre 1873 e 1875, por outra, toda de ferro: a Santa Clara. No século XX, devido às trepidações próprias do material utilizado, a poente Santa Clara foi gradualmente substituída por uma via mais moderna, de concreto e argamassa.

Para se referir a mulheres mitológicas, o narrador menciona duas que ficaram para sempre como arquétipos de beleza e sedução: Helena de Troia e Inês de Castro. A primeira, de acordo com a mitologia grega, era a mulher mais bela da Grécia. Helena foi esposa do rei de Esparta, Menelau. O rapto de Helena foi levado a cabo pelo herói Teseu, que queria desposá-la. A segunda, Inês de Castro (1325-1355), uma nobre da região de Castela, na Espanha, fez parte da corte de D. Constança, quando esta última esteve em Portugal para casar com o Infante Pedro, filho do rei Afonso IV. A relação amorosa entre Pedro e Inês e sua morte cruel se tornou o mais famoso e trágico caso de amor da história portuguesa, várias vezes recontado por escritores e poetas, entre eles, Camões (Canto III de Os Lusíadas) e Fernão Lopes.

Em 1851, o golpe de Estado do marechal-duque de Saldanha instaurou uma nova etapa politica em Portugal, designada por Regeneração, um movimento simultaneamente político e social que pretendia conciliar as diversas facções do Liberalismo. Tinha também o propósito de harmonizar os interesses da alta burguesia com os das camadas rurais e das burguesias pequena e média. Para normatizá-lo, procedeu-se à revisão da Carta Constitucional (o Ato Adicional de 1852 alargava o sufrágio e estabelecia eleições diretas para a Câmara dos Deputados), assegurando o rotativismo partidário (com alternância no poder entre Regeneradores e Progressistas) e promovendo uma série de reformas econômicas.

Caleche era a carruagem de quatro rodas e dois assentos usada para passeios ou viagens.

Póvoa do Varzim é uma cidade situada ao norte de Portugal, nos arredor «es do Porto. A região começou a ser ocupada há, pelo menos, quatro mil anos atrás. Nos últimos três séculos, constituiu-se em importante cidade balnear.


https://www.cm-pvarzim.pt/territorio/visite-povoa-de-varzim/?filter0=0-16

https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Projecto_da_Linha_do_Ave_-_GazetaCF_1145_1935.jpg

Um grupo de estudantes que causou um grande burburinho em meados de 1860, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, veio a se constituir poucos anos mais tarde em um corpo emblemático, que passaria a ser conhecido como a Geração de 70. Tendo o jovem Antero de Quental como figura aglutinadora e agregando personalidades do porte de Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro, Teófilo Braga, Eça de Queirós, Oliveira Martins, Jaime Batalha Reis e Guilherme de Azevedo, esse grupo imprimiu um cunho próprio à cultura portuguesa na virada do século, chegando até as raias da República, deixando as suas marcas na literatura e na crítica literária, na historiografia, no ensaísmo e na política.

Publicação quinzenal, a Revista Moderna, publicada entre os anos de 1897 e 1899, contou com a participação de autores ilustres, dentre os quais Eça de Queirós. Tinha uma proposta diferenciada, apresentando-se como um produto com qualidade estética e de conteúdo, o que não impediu que, a partir do trigésimo número, a sua produção fosse descontinuada.

QUEIRÓS, José Maria Eça de. Contos. [Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós]. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009, pp.363- 384.

Ainda no início do século XIX, era comum que os enterros ocorressem dentro das igrejas. Em 1833, para acolher os vitimados pelo surto de cólera, que entrou pela Foz do Douro e se espalhou pelo reino, foi planificado o Cemitério dos Prazeres na parte ocidental de Lisboa, na freguesia da Estrela, próximo ao Campo de Ourique. Pela monumentalidade dos jazigos é possível perceber que o Prazeres vem acolhendo, desde então, os entes queridos das famílias mais influentes de Lisboa.
A Rua de São Bento, considerada à época uma das artérias mais compridas de Lisboa, ainda hoje é um importante eixo de ligação entre as freguesias de Estrela e Campo de Ourique, na parte ocidental,e Santo António e Misericórdia, no outro extremo. Mantém-se como um dos percursos preferidos dos lisboetas. Coração político da cidade, nela viveram Alexandre Herculano (1810-1877) e Hintze Ribeiro (1849- 1907).
A “quinzena” que consta no texto queirosiano é espécie de agasalho; um jaquetão.

Alfredo Roque Gameiro (1864-1935) atuou como pintor e artista gráfico especializado em aquarelas. A ilustração apresentada faz parte de um conjunto de cem aquarelas e gravuras concebidas pelo artista entre 1910 e 1920 e publicadas no livro Lisboa Velha, em 1925.

A Universidade de Coimbra é a mais tradicional de Portugal. Fundada no século XII, está implicada com os primórdios do reino, este último emancipado ainda no século anterior. A Faculdade de Direito, por sinal, formou a nata da intelectualidade portuguesa oitocentista, dentre os quais diplomatas, escritores, jornalistas e até Ministros de Estado, com particular atenção para a Geração de 70, a partir da segunda metade do século XIX.

Arroios é uma freguesia do concelho de Lisboa, pertencente à Zona Centro da capital e uma dos preferidos dos turistas, por aliar a tradição cultural e a modernidade de arquitetura, comércio e demais serviços.
Com a industrialização crescente, criaram-se espaços coletivos que se prestavam a receber a classe operária em franca expansão. Construídos pela iniciativa privada, os pátios e vilas tinham um custo mais baixo, apesar da precariedade das acomodações. A esse respeito, a RTP produziu interessantes documentários, assim intitulados “Pátios e vilas de Lisboa – Parte I” e “Pátios e vilas de Lisboa – Parte II”, acessíveis em https://arquivos.rtp.pt/conteudos/patios-e-vilas-em-lisboa-parte-i/ e https://arquivos.rtp.pt/conteudos/patios-e-vilas-em-lisboa-parte-ii/

O Café Central funcionava na Rua Garrett, 111-113. Tendo servido usualmente os seus clientes até 1875, deixou saudades na clientela fiel. Ali passou a funcionar a Livraria Sá Costa, mantendo-se no local até os anos 40, do século XX.

O Teatro Nacional de São Carlos (TNSC) é a mais emblemática casa de ópera de Lisboa, em Portugal. Inaugurado em 30 de junho de 1793 pelo Príncipe Regente D. João, o São Carlos substituiu o Teatro Ópera do Tejo, destruído no Terramoto de 1755. O teatro localiza-se no centro histórico de Lisboa, na zona do Chiado.

A Estação Ferroviária de Lisboa-Santa Apolónia, inaugurada em definitivo em 1865, é uma interface da Linha do Norte, que serve a cidade de Lisboa, em Portugal. Situa-se na freguesia de São Vicente em Lisboa, com acesso pela Avenida Infante Dom Henrique.

O Hotel Francfort, inaugurado em 1867, na Rua Santa Justa, nº 70 a 72, diz muito da rápida urbanização da região portuense, na segunda metade dos oitocentos, como é possível perceber diante do elevador inaugurado na mesma rua, em 1902, com a presença do rei D. Carlos I. Atualmente, o referido hotel não existe mais.

Ainda hoje, a Foz do Douro é um local muito frequentado pelos bem nascidos. É o encontro do Rio Douro com o oceano que confere um toque especial à paisagem e o incremento de serviços – os passeios marítimos, as visitas às esplanadas e jardins e a frequência cosmopolita aos bares e casa de show –, com funcionamento dia e noite, atrai uma grande massa de turistas.

“Vindimar” significa “fazer a vindima (de); colher a uva (de) e, por extensão, fazer a colheita de apanhar.”

Carcavelos é uma freguesia de Cascais. Ainda em nossos dias o litoral é bastante cobiçado e movimenta o turismo local, devido à localização privilegiada. A malha de transportes goza de boa bem estrutura e permite conexões rápidas com Lisboa e Sintra.

“Fado”, neste contexto, remete a decreto do destino, sorte, estrela.

O Bairro Alto e a Mouraria pertencem à zona antiga da cidade, datando a sua criação pelos idos do século XV. Por terem nascido em m «eio à dinâmica provocada pelos Descobrimentos, a malha era caracterizada por “[um] emaranhado de ruas estreitas, becos sem saída e dificuldades de saneamento.” O Bairro Alto passou por processos de urbanização para que ali viesse se estabelecer a rica burguesia mercantil, nos séculos subsequentes. Mas no século XIX, como ocorre aos centros degradados, perdera os seus atrativos junto à classe emergente e passara a ser habitado por populações marginalizadas.

Sobre a Mouraria, o Instituto Superior Técnico destaca que “o terramoto de 1755 não veio a provocar grandes destruições no bairro e é assim que chega aos nossos dias a malha urbana medieval em que surgem características das cidades árabes, ou seja, uma malha apertada em que as parcelas de reduzidas dimensões são inteiramente ocupadas com edificações ou logradouros; as ruas, becos e escadas são sempre muitos estreitos e definem uma rede complexa; os largos são de pequenas dimensões e resultam de acções acidentais (demolição de um exercício ou desacerto entre ruas).

Associado à marginalidade a que a Mouraria foi votada e às más características fisiográficas que a zona apresenta, como sejam as más exposições solares (encostas voltadas a norte), as encostas expostas aos ventos frios de norte(as “nortadas”) e os acentuados declives que o terreno apresenta, a área nunca foi apetecível para as classes mais ricas em termos sociais e económicos, facto que pode ajudar a explicar a [sua] degradação […]” Degradação essa que lhe permitiu, por sua tradição boêmia, tornar-se o beço do fado. Vale a pena apreciar a paisagem de ontem e de hoje, ao som dos fados “Ai,Mouraria” , com a interpretação de Amália Rodrigues, e “Adeus, Mouraria”, pela voz de Pedro Moutinho.

Acesse: https://www.youtube.com/watch?v=JacwAYB8n98 e https://www.youtube.com/watch?v=TIGZiNkenYI

Chama a atenção, na freguesia da Graça, as elevadas altitudes que permitem uma visão privilegiada da cidade de Lisboa, como o Instituto Superior Técnico destaca: “No que diz respeito às altitudes, a Graça apresenta uma pequena área de maior elevação, que se situa entre os 80 e 100 metros e onde se situa o miradouro da Graça, estando toda a restante zona incluída numa vasta área cuja altitude percorre um intervalo que vai de 50 a 80m.”
Como Tiago Monteiro explicita, “o fado não apenas era uma manifestação de caráter urbano como também costumava ser associado a parcelas da população às quais a própria noção de caráter era colocada sob rasura, segundo o código de costumes da época – marinheiros, prostitutas, feirantes, criminosos arraia-miúda, pessoas de “má vida” em geral, que habitavam os bairros antigos e degradados, próximos à zona portuária, da capital Lisboa em meados do século XIX.”(MONTEIRO, 2013, p. 147) Mesmo deixando à vista a cara do Portugal profundo, o fado, a partir da Revolução dos Cravos passou a ser rechaçado, devido a sua apropriação pelo regime salazarista, mas recentemente vem retomando o seu espaço. Em 2011, o gênero foi elevado à categoria de patrimônio imaterial pela UNESCO.
“Anasarca” é um sintoma que provoca um inchaço por todo o corpo do paciente e prenuncia o aparecimento de várias doenças infecciosas.
O “coração vazio” de que nos fala o conto remete a uma citação bíblica, do Velho Testamento: “Da­rei a eles um coração não dividido e porei um novo espírito dentro deles; retirarei deles o coração de pedra e lhes darei um coração de carne.” (Ezequiel, 11:19) O coração viúvo, portanto, é aquele que está preparado para amar novamente.
Agradecemos ao artista plástico Gabriel AV as fotos de Covilhã.