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O Rio Implacável de Clarice Lispector

O Rio Implacável de

Clarice Lispector

É que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina. Sem falar que eu em menino me criei no Nordeste. Também sei das coisas por estar vivendo. Quem vive sabe, mesmo sem saber que sabe. Assim é que os senhores sabem mais do que imaginam e estão fingindo de sonsos.

LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 12.

Recusando a imagem da passante eternizada por Baudelaire ou da sua versão brasileira cantada por Vinicius de Moraes e Tom Jobim, Clarice Lispector, em A Hora da Estrela, faz com que leitor acompanhe os passos de uma nordestina que não tinha o “doce balanço” ou o “corpo dourado” da garota de Ipanema. A paisagem pela qual Macabéa passa também não se traduz em sinuoso deleite. Na verdade, através da trajetória da datilógrafa alagoana, o romance comprova que o Rio de Janeiro também podia ser bastante inóspito e implacável. Em A Hora da Estrela, o embate causado pela dominação do centro sobre a periferia e a falta de pertencimento do indivíduo em trânsito servem de premissa para as discussões filosóficas e existenciais, bem ao gosto de Clarice. A dor do isolamento, da inadequação e das opressões sociais só tem alento quando Macabéa observa o porto e o mar carioca, espaços que não apenas remetem ao seu local de origem, mas também significam saídas e rotas fuga de uma realidade esmagadora.

Devo registrar aqui uma alegria. É que a moça num aflitivo domingo sem farofa teve uma inesperada felicidade que era inexplicável: no cais do porto viu um arco-íris. Experimentando o leve êxtase, ambicionou logo outro: queria ver, como uma vez em Maceió, espocarem mudos fogos de artifício.

LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 35.

A alagoana é atropelada pela realidade de uma cidade, que é, ao mesmo tempo, maravilhosa, para os seus moradores e visitantes ilustres e abastados, e violenta, para os marginalizados. Considerando mais uma vez os estudos de Yi-Fu Tuan, é possível afirmar que Macabéa e até mesmo o narrador chegam a nutrir um sentimento topofóbico pelo Rio de Janeiro, e sem, de fato, entender, a personagem só consegue vislumbrar um futuro feliz na evasão desse espaço que chegava a ser mais inóspito do que a secura do sertão:

O quarto ficava num velho sobrado colonial da áspera rua do Acre entre as prostitutas que serviam a marinheiros, depósitos de carvão e de cimento em pó, não longe do cais do porto. O cais imundo dava-lhe saudade do futuro. (O que é que há? Pois estou como que ouvindo acordes de piano alegre – será isto o símbolo de que a vida da moça iria ter um futuro esplendoroso? Estou contente com essa possibilidade e farei tudo para que esta se torne real).

LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 30.

Visão de satélite com marcação na Rua do Acre
Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Pra%C3%A7a_Mau%C3%A1

Rua do Acre, Rio de Janeiro, 23/10/2016
Fonte: https://www.flickr.com/photos/gijlmar/31961655752

Macabéa tinha a rua do Acre para morar, a rua do Lavradio para trabalhar, mas somente o cais do porto, onde, no domingo, ia espiar “um ou outro prolongado apito de navio cargueiro”, o que lhe proporcionava alguma esperança. Mesmo circulando em ambientes povoados por outros desfavorecidos, a personagem não conseguia interagir com alguém. Mas, ainda assim, gostava da movimentação, dos ruídos os quais serviam para comprovar que tanto ela como a cidade estavam vivas:

Ela era calada (por não ter o que dizer) mas gostava de ruídos. Eram vida. Enquanto o silêncio da noite assustava: parecia que estava prestes a dizer uma palavra fatal. Durante a noite na rua do Acre era raro passar um carro, quanto mais buzinassem, melhor para ela

LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 33.

Rua do Lavradio, Rio de Janeiro
Fonte: https://www.flickr.com/photos/claudiolara/454089357

A alagoana só teve a sua solidão um pouco aplacada quando encontrou um par, iguais em quase tudo na vida. Embora se tratasse de um relacionamento também fadado ao fracasso, é com o também nordestino Olímpico que Macabéa consegue desenvolver algum laço. A mesma origem e o mesmo sofrimento que os levou a migrar para a capital fluminense, de alguma forma, os irmanava:

As poucas palavras entre os namorados versavam sobre farinha, carne-de-sol, rapadura, melado.  Pois esse era o passado de ambos e eles esqueciam o amargor da infância, porque esta, já que passou, é sempre acre-doce e dá até nostalgia. Pareciam por demais irmãos, coisa que, – só agora estou percebendo – não dá pra casar. Mas eu não sei se eles sabiam disso. Casariam ou não?  Ainda não sei, só sei que eram de algum modo inocentes e pouca sombra faziam no chão

LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 47.

Considerando a paisagem, um curioso fato também unia o casal. Ambos não sabiam passear e admirar os encantos da Cidade Maravilhosa. Logo quando se conhecem, em um dia chuvoso, Olímpico e Macabéa escolhem perambular por lojas bastante incomuns tal finalidade: um açougue e uma loja de ferramentas. Quando finalmente conseguem ir a um lugar mais propício para um passeio, um fato desconcertante acontece com a moça frustrando a tentativa de romance:

E uma vez os dois foram ao Jardim Zoológico, ela pagando a própria entrada. Teve muito espanto ao ver os bichos. Tinha medo e não os entendia: por que viviam? Mas quando viu a massa compacta, grossa, preta e roliça do rinoceronte que se movia em câmera lenta, teve tanto medo que se mijou toda.

LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 55.

Contudo o alagoano, ambicioso e totalmente ciente de sua condição, consegue vislumbrar meios para sobreviver na cidade grande. Para trapacear e aplicar pequenos golpes, o “malandro” tira coragem de “cabra-macho” do fato de já ter matado alguém quando vivia na sua terra natal. Já Macabéa, criada pela sua tia por conta do falecimento dos seus pais quando ainda bebê, não carrega suas raízes nordestinas e nunca teve voz ou vez. Mostra-se completamente perdida, automatizada e desarticulada na sua própria vida:

Limito-me a humildemente – mas sem fazer estardalhaço de minha humildade que já não seria humildade – limito-me a contar as fracas aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela.

LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 15.

A todo momento, a personagem de Clarice é apresentada como um ser errante. Uma migrante sem conhecimento da sua cultura, que apenas existe, e acha que viver é sofrer por se estar-no-mundo. Do ponto de vista das sensações, nem a cor, nem o cheiro, nem o gosto, eventualmente associados a Macabéa e aos espaços em que ela circula são agradáveis. O mesmo não se aplica a carioca Glória. Ainda que igualmente periférica, a beleza e desenvoltura social fazem com que ela seja apreciada e desejada por todos à sua volta. Do mesmo modo, o subúrbio carioca habitado pela moça também é farto e tentador:

É que na suja desordem de uma terceira classe de burguesia havia, no entanto, o morno conforto de quem gasta todo o dinheiro em comida, no subúrbio comia-se muito. Glória morava na rua General não-sei-o-quê, muito contente de morar em rua de militar, sentia-se mais garantida. Em sua casa até telefone tinha. Foi talvez essa uma das poucas vezes em que Macabéa viu que não havia lugar no mundo e exatamente porque Glória tanto lhe dava. Isto é, um farto copo de grosso chocolate de verdade misturado com leite e muitas espécies de roscas açucaradas, sem falar num pequeno bolo

LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 66.

A comparação entre as duas personagens também permite entender como, em A Hora da Estrela, há uma relação corpo/paisagem. Descrito como “seca” e “sem corpo”, Macabéa parece representar o sertão árido e pouco fértil. A moça é como um cacto transplantado para a floresta tropical. Já o corpo voluptuoso de Glória, um verdadeiro oásis para o retirante Olímpico, está relacionado à cidade também marcada pela miscigenação:

Glória possuía no sangue um bom vinho português e também era amaneirada no bamboleio do caminhar por causa do sangue africano escondido. Apesar de branca, tinha em si a força da mulatice. Oxigenava em amarelo-ovo os cabelos crespos cujas raízes estavam sempre pretas. Mas mesmo oxigenada ela era loura, o que significava um degrau a mais para Olímpico

LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 59.

Nessa relação corpo e paisagem, outra personagem entra em cena: a cartomante. Madama Carlota traziam em seu corpo as marcas da época em que vivia “no Mangue”, um espaço marcado pela prostituição. A sua nova casa era repleta de objetos plásticos que parecem denotar a passagem do seu passado como prostituta e seu presente como charlatã: de amores falsos e a falsa fé. A sua tentativa da cafetina de encobrir a decadência de seu corpo, sem dentes, como a pele enrugada e corpo flácido, através de artifícios, como acessórios, roupas e maquiagem, também parece estar a par e passo com o inútil esforço das prostitutas que tentavam arrumar e acender incensos para trazer algum charme e disfarçar o odor do lugar na tentativa de cativar a clientela:

Continuemos, pois, embora com esforço: madama Carlota era enxundiosa, pintava a boquinha rechonchuda com vermelho vivo e punha nas faces oleosas duas rodelas de ruge brilhoso. Parecia um bonecão de louça meio quebrado

LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 72.

Outro fator é mostrado quando Macabéa repara na casa da cartomante: tudo é feito de plástico. A decoração e a personagem são mostradas como um símbolo de riqueza, vida, fartura e sucesso inexistentes, já que plástico e os outros “luxos” que apresenta não são nada, apenas coisas enganosas. Dessa forma, assim como Madama Carlota, que é fiel a Deus e as cartas, a sua crença, vida e sucesso são ilusórios. Toda a sua casa, roupas, joias e objetos são feitos para dar esperanças aos que veem de fora.

Enquanto isso olhava com admiração e respeito a sala onde estava. Lá tudo era de luxo. Matéria plástica amarela nas poltronas e sofás. E até flores de plástico. Plástico era o máximo. Estava boquiaberta.

LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 72.

Também é nas ruas da cidade que Macabéa é abatida por um automóvel, símbolo da velocidade, da potência e do luxo. Uma sarjeta de um beco escuro do Rio de Janeiro foi sua última morada:

enorme como um transatlântico o Mercedes amarelo pegou-a – e neste mesmo instante em algum único lugar do mundo um cavalo como resposta empinou-se em gargalhada de relincho. Macabéa ao cair ainda teve tempo de ver, antes que o carro fugisse, que já começavam a ser cumpridas as predições de madama Carlota, pois o carro era de alto luxo. Sua queda não era nada, pensou ela, apenas um empurrão. Batera com a cabeça na quina da calçada e ficara caída, a cara mansamente voltada para a sarjeta.

LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 79.

Enquanto está deitada no chão, entre pessoas que só a observam – e finalmente a veem –, a protagonista lembra-se do único lugar que lhe dava esperanças: o cais do porto e o mar. Desse modo, apenas na hora de sua morte é que ela encontra esse desejo, na sua hora de estrela, ela encontra a sua imagem. A morte permite com que Macabéa alcance a si mesma e sua representação na cidade, não como um nada, mas sim, como uma mulher nordestina. Dessa forma, é apenas no final, quando recebe boas notícias, que é tragicamente atropelada, conhecendo, assim, pela primeira vez, a felicidade, ao finalmente não ser mais invisível no Rio de Janeiro.

Júlia Garcia e Andreia Castro
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Agradecemos ao artista plástico Gabriel AV as fotos de Covilhã.