O Jardim Botânico
A emergência da paisagem em
Clarice Lispector:
o Jardim Botânico
Uma das maiores especialistas na arte da representação do mal em suas formas mais tênues e menos perceptíveis e, nesse sentido, inspirada pela obra do romancista Herman Hesse, a escritora brasileira nascida na Ucrânia Clarice Lispector (1920-1977) estendeu sua pesquisa ético-estética aos domínios da psicologia e das relações sociais. Presente em algumas de suas narrativas e de suas crônicas, a paisagem configura-se enquanto emergente, ou seja, ainda não completamente distinta na percepção da “natureza” que, enquanto tal, pertence ao regime do informe e do irrepresentável.
Pensemos na expressão “mato” em português e em seus possíveis sentidos. De acordo com o dicionário Houaiss, ela pode significar “vegetação constituída de plantas não cultivadas, de porte médio, e sem qualquer serventia”; “área coberta com esse tipo de vegetação”; “qualquer planta tida como sem serventia” ou “qualquer lugar afastado das cidades; interior, roça, campo”. Composto aleatoriamente e de vegetação indistinta, o mato remete, assim, à dificuldade de se configurar e de se nomear os elementos de um conjunto natural, a não ser em termos de uma negatividade: plantas indesejáveis, vegetação inútil, território marginal.
Assim, ao debruçar-se sobre a representação da experiência subjetiva da paisagem em um dos contos de Clarice Lispector, o presente texto discute duas margens da apreensão da paisagem: a natureza por um lado e o espaço científico, por outro.
Em muitas situações discursivas a paisagem é simplesmente confundida com a natureza e, assim, perde-se a por completo a instigante diferença que existe entre essas duas noções, sobretudo enquanto dadas na experiência subjetiva. A pesquisadora Anne Cauquelin lembra o caráter ilusório da equivalência entre natureza e paisagem, propondo a expressão “invenção da paisagem”, que constitui também o título de seu estudo. Cauquelin sublinha em seu livro que a paisagem é sempre de alguma maneira construída, constituindo na verdade uma “forma simbólica” – que remete ao universo das representações e à continuidade de sua inscrição nas tradições das diversas culturas, sobretudo artísticas –, e não à própria “natureza”. Isso significa que nós fazemos paisagem ao percebê-la enquanto tal: “Enquadramos, colocamo-nos à distância, lançamos mão de metáforas e de metonímias, contextualizamos, chegamos até mesmo a ‘intertextualizar’”.
Dessa maneira, a “paisagem” torna-se possível graças ao uso das figuras retóricas e de diversas referências culturais, ou seja, devido à invenção de uma linguagem, visual e verbal, para aquilo que não tem nome. O espectador transforma a natureza em paisagem para poder concebê-la, a “invenção da paisagem” sendo, destarte, a invenção de uma linguagem para o vasto e informe regime da natureza.
De acordo com a filósofa Hélène Cixous, existe, com efeito, uma diferença muito significativa entre os textos longos e os textos breves que compõem a obra lispectoriana, e é sobretudo nesses últimos que a autora brasileira “desenvolve uma filosofia do mundo, com suas leis e sua economia”. Assim, a protagonista do conto “Amor”, que compõe o volume Laços de família, de 1960, ultrapassa o destino de seu percurso de bonde para se encontrar repentinamente, quase acidentalmente, no Jardim Botânico e vivenciar o dinamismo dos limites entre a natureza, a paisagem e o espaço científico:
Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.
Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.
Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.
A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.
De longe via a aleia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.
Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.
Um movimento leve e íntimo a sobressaltou – voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aleia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pelos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.
Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.
Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranquila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.
Ao mesmo tempo que imaginário – era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudos, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega – era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.
As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada… Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos, enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado… O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.
Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.
Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria – e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.
A descrição da experiência subjetiva do jardim botânico mantém, assim, uma relação de tensão com a visão do jardim como uma “coleção” ordenada e delimitada de diversas plantas. De fato, o espaço de um jardim botânico é construído e institucionalizado. Em termos de uma experiência subjetiva, a paisagem do Jardim Botânico descrita no texto de Lispector mantém então o contato não apenas com a informidade da natureza, tendo como sua outra contrapartida ainda também a concepção científica do espaço, que se apresenta em termos positivistas tais como “recipiente, descentrado, geometrizado, universal, objetivo, substancial, totalizado, externo, sistemático, neutro, coerente e atemporal”, enquanto do ponto de vista da experiência, a paisagem dá-se como “mediação, centrada, contexto, densidades, específica, subjetiva, relacional, destotalizada, interna, estratégica, potente, contraditória” e, sobretudo, como “temporal”.
“A paisagem é o mundo sob o olhar do ser humano. Trata-se de um espelho que reflete nossos medos e nossas fantasias, mas também nossa crescente determinação e nossa compreensão do lugar do ser humano no mundo”. Em despeito de muitas definições da paisagem que a concebem em termos radicalmente construtivos, e, portanto, unilateralmente positivos, a envolvente experiência dos limites entre natureza, paisagem e espaço científico é descrita por Lispector enquanto uma experiência do não-saber. O texto comentado corresponde, assim, à experiência da crise, àquilo “que ela chama de verdadeiro conhecimento ou verdadeiro amor”. Em termos da experiência subjetiva, na breve narrativa cuja paisagem é o tema do presente estudo, “talvez em um certo nível o belo, que pertence à estética, tenha sido substituído pela verdade”.