Um percurso pela paisagem carioca de Caetano Veloso
Um percurso pela paisagem carioca de
Caetano Veloso
Gosto muito raro
Trago em mim por ti
E uma estrela sempre a luzir
Bonde da Trilhos Urbanos
Vão passando os anos
E eu não te perdi
Meu trabalho é te traduzir
Interessante observar que, diferente do Rio, São Paulo não reflete a Bahia. “Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto / Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto / É que Narciso acha feio o que não é espelho / E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho”, canta o sujeito caetânico de “Sampa” (Muito – Dentro da estrela azulada, 1978).
Ainda em “Meu Rio”, os versos “O teu carnaval é um vapor luzidio” e “Mangueira no coração” guardam a chave de entrada do paradoxo que a cidade é. Aliás, as referências ao Morro da Mangueira, localizado na Zona Norte da cidade, fazendo fronteira com o estádio de futebol Maracanã, sempre estiveram na paisagem sonora do cancionista.
Mas é em 1994 que esta relação amorosa recíproca se acentua, quando o Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira homenageou Caetano Veloso e os outros três Doces bárbaros – Gilberto Gil, Maria Bethânia e Gal Costa – com o samba-enredo: “Atrás da verde e rosa só não vai quem já morreu”. No mesmo ano, Caetano lança num disco da cantora Alcione a canção “Onde o Rio é mais baiano” (Brasil de Oliveira da silva do samba). A canção que também foi gravada por Maria Bethânia (Maria Bethânia ao vivo, 1995) e pelo próprio autor (Livro, 1997) tem versos importantes para nossa viagem: “A Bahia / Estação primeira do Brasil / Ao ver a Mangueira / Nela inteira se viu / Exibiu-se sua face verdadeira”.
Na letra, Tia Ciata (Hilária Batista de Almeida, 1854-1924) é metonímia das matriarcas baianas responsáveis por “trazerem o samba pro Rio”. Nessa fé na festa de “Onde o Rio é mais baiano”, José Bispo Clementino dos Santos, mais conhecido como Jamelão (1913-2008), tem papel fundamental, tendo sido a voz dos samba-enredos da Mangueira por anos; e presença marcante na Festa de Iemanjá – divindade de religião de matriz africana, considerada a mãe das águas e celebrada no dia dois de fevereiro, na praia do Rio Vermelho, bairro da cidade de Salvador-BA. Atentemos ao trânsito de significantes entre Ciata-Jamelão, Bahia-Rio, espelhos cuja convergência é a Mangueira, escola de samba e estação importante para o trem carioca de Caetano Veloso.
É no Centro que está a Lapa, cantada na canção “Lapa” (Zii e zie, 2009) como espaço idílico, vértice que reúne a zona norte e a zona sul: “cool e popular”, “pobre e requintado”, onde a “PUC [referência a Pontifícia Universidade Católica] e a gíria dos bandidos”, “Lula e FH”, ex-presidentes Luís Inácio da Silva e Fernando Henrique Cardoso, emblemas de polos sociais opostos, podem circular e conviver. “Tudo vinha desaguar na Lapa / Lapa / Minha inspiração”, canta o sujeito que tem a Lapa como a musa do Rio possível. E a relação espelhar Bahia-Rio é reafirmada: “Pelourinho [lugar onde os escravizados eram castigados] vezes Rio é Lapa”, canta Caetano. Novamente a ponte, o trânsito imagético, o cruzamento paisagístico e a relação espelhar entre as cidades.
Da Lapa, a bordo de um “automóvel que parece voar” chegamos à “Paisagem útil” (Caetano Veloso, 1968), onde o Aterro do Flamengo e o bairro da Glória, na região central da cidade, flutuam no ar “no alto do céu do Rio”. O título da canção inverte e desmente “Inútil Paisagem”, composição de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira. Se nesta temos um sujeito que renega a paisagem onde não vê a amada – “Pra que tanto céu / Pra que tanto mar / De que serve esta onda que quebra / E o vento da tarde / De que serve a tarde”; na canção de Caetano a paisagem, onde “uma lua oval da Esso / comove e ilumina o beijo / dos pobres, tristes, felizes / corações amantes”, é travessia para o cinema, o teatro e trabalho. E os altíssimos postes de luz são um “frio palmeiral de cimento” no Aterro carioca, contrastando com as “palmas altas / mandam um vento a mim / assim Caymmi” da soteropolitana Itapuã, lugar cantado na canção “Itapuã” (Circuladô, 1991).
Entramos na Zona Sul carioca pela Praia do Leme cantada em “Branquinha” (Estrangeiro, 1989), canção dedicada a Paula Lavigne, mulher e empresária de Caetano Veloso: “Branquinha / Carioca de luz própria, luz / Só minha / Quando todos os seus rosas nus / Todinha / Carnação da canção que compus / (…) / Rainha / De janeiro, do Rio, do onde é / Sozinha / Mão no leme, pé no furacão / Meu irmão / Neste mundo vão”.
Chegamos à praia de “Copacabana da melancolia” (da canção “Ia”, Noites do Norte), talvez a praia mais famosa do país, localizada na Zona Sul da cidade, também aparece no cancioneiro de Caetano em “Copacabana / Copacabana / Louca total e completamente louca” (“Joia”, disco Joia, 1975); e onde “turistas ingleses [são] assaltados”, em “Americanos” (Circuladô vivo, 1992). Ainda em “Americanos” temos o sujeito apontando: “Viados americanos trazem o vírus da aids / Para o Rio no carnaval / Viados organizados de São Francisco conseguem / Controlar a propagação do mal”. O carnaval “vapor luzidio” do Rio caetânico agora é veneno-remédio do paradoxo brasileiro.
Agora chegamos à praia que, fazendo fronteira com Copacabana, é ícone da vida carioca: Ipanema, presente em “Tropicália” (Caetano Veloso, 1968): “Viva Iracema-ma-ma / Viva Ipanema-ma-ma-ma-ma / Viva Iracema-ma-ma / Viva Ipanema-ma-ma-ma-ma”. A relação espelhar com Iracema, mito fundador de certa visão do Brasil oitocentista, anuncia que Ipanema é o signo do país na segunda metade do século XX. Tanto é assim que se falava numa doença geracional chamada “ipanemia”, modelo cultural-existencial, ethos carioca que Caetano apresentou numa coluna no jornal Pasquim (14 de janeiro de 1970).
Os sintomas da ipanemia estão presentes também em “Tempo de estio” (Muito – Dentro da estrela azulada, 1978): “É o amor / É o calor / A cor da vida / É o verão / Meu coração / É a cidade // Rio, eu quero / Suas meninas”. A cultura alternativa se inscreve e se vive nas areias de Ipanema, que no começo dos anos 1970 abrigava um píer frequentado pelo pessoal da contracultura.
Essa geração ipanêmica em transe aparece também na canção “Cinema novo, com Gilberto Gil (Tropicália 2, 1993): “E a Terra entrou em transe / E no sertão de Ipanema / Em transe no mar de Monte Santo / E a luz do nosso canto e as vozes do poema / Necessitaram transformar-se tanto / Que o samba quis dizer: “eu sou cinema””; e na antológica “Menino do rio” (Cinema transcendental, 1979), dedicada a um surfista famoso na época, o Peti, muso inspirador de um jeito de corpo carioca, “Tensão flutuante do Rio” e que faz o Havaí ser aqui.
Em “Sem cais”, em parceria com Pedro Sá (Zii e Zie, 2009), o sujeito caetânico “cata colo” e deita na areia da(s) praia(s) das zonas Oeste e Sul da cidade: “Barra, Gávea e Arpoador / Deuses brancos de luz do mar / Deuses negros um esplendor / Quem é essa e o que será?”. Mas é no Leblon, o bairro da Zona Sul mais nobre da cidade, que ele permanece mais e reside. Em “O quereres” (Velô, 1984) ele diz “Onde queres Leblon sou Pernambuco”; em “Fora da ordem” (Circuladô) – “Estou de pé em cima do monte de imundo lixo baiano / Cuspo chicletes do ódio no esgoto exposto do Leblon / Mas retribuo a piscadela do garoto de frete do Trianon / Eu sei o que é bom”; e em “Haiti”, com Gilberto Gil (Tropicália 2, 1993) – “E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual / Notar um homem mijando na esquina da rua / Sobre um saco brilhante de lixo do Leblon”. O foco está no canal-esgoto-lixo exposto, nas contradições do bairro que tem uma taxa altíssima de desigualdade social: ricos muito ricos e miseráveis.
O bairro aparece também no título de duas canções: “Falso Leblon” (Zii e Zie) e “As camélias do quilombo do Leblon”, parceria com Gilberto Gil (Dois amigos, um século de música, 2015). Na primeira temos o sujeito entre entorpecentes que ele recusa (“Ecstasy, bala, balada / E me chama depois / Pra dar uma e dar dois”); questionamentos (“E depois de amanhã? / O que faremos do Rio / Quando enriquecendo / Passarmos a dar as cartas / As coordenadas / De um mundo melhor”); sons (os músicos “Francisco Alves / Seu Jorge, os Hermanos”) e solidão: “Me sinto muito sozinho / (…) / Quem sou eu?”, dialogando com a voz de “Lapa”: “Só eu / Eu sozinho, só e solitário / Sob a chuva da Bahia”. Destaque-se a paisagem chuvosa nas duas canções. Diferente dos dias solares cristalizados no imaginário do Rio de Janeiro turístico.
Na segunda canção, “As camélias do quilombo do Leblon”, mais esperançoso e em tom messiânico, o sujeito conta a história antes do bairro se tornar o signo do modo zonasulista carioca de ser. O desejo é que o passado quilombola seja reconstituído: “As camélias da segunda abolição virão”. “Capoeiras das ruas do Rio”, Caetano e Gil se enunciam partícipes da “guarda negra da redentora”, perguntam e respondem: “O que fazer / Chegando aqui? / As camélias do Quilombo do Leblon / Brandir”. O Quilombo da canção existiu no final do século XIX; na chácara onde eram cultivadas as camélias símbolo do movimento abolicionista e flor preferida da princesa Isabel, a “redentora” da canção.
Um Leblon bem distante do que se vê hoje. Um Leblon que certamente abrigaria melhor Macabéa e o sujeito caetânico santamarense suburbano de “Meu Rio”. Convoco a personagem de Clarice Lispector para encerrar conosco o passeio porque é inspirado pelo livro A hora da estrela (1977) que Caetano compõe “O nome da cidade” para a irmã Maria Bethânia cantar no show em homenagem à obra clariciana: “Onde será que isso começa / A correnteza sem paragem / O viajar de uma viagem / A outra viagem que não cessa / Cheguei ao nome da cidade / Não à cidade mesma, espessa / Rio que não é rio: imagens / Essa cidade me atravessa”, canta o sujeito da canção.
Gravada por Maria Bethânia em A beira e o mar (1984), “O nome da cidade” tem o retirante como tópico central. Tópico que Caetano usara entre trocadilhos na canção “Épico” (Araçá azul, 1973): “Sinto calor, sinto frio / Nor-destino no Brasil? / Vivo entre São Paulo e Rio / Porque não posso chorar”; e, como vimos, em “Meu Rio” – “Baianos, paraenses e pernambucanos”.
As dúvidas (“Será que tudo me interessa? / Cada coisa é demais e tantas / Quais eram minhas esperanças? / O que é ameaça e o que é promessa?”); os riscos (“Meninos maus, mulheres nuas”, que, note-se, retorna em “Meu Rio” como eixos da paisagem: “Rapazes maus, moças nuas”); e o fracasso (“Cheguei ao nome da cidade / Não à cidade mesma, espessa / Rio que não é rio: imagens / Essa cidade me atravessa”) estão traçados.
Nesta canção não há uma cidade Rio definida, pronta, e sim uma movência de imagens que faz o sujeito da canção chegar ao nome da cidade, nunca à cidade em si. O aboio “Ôôôôôôô ê boi! ê bus!” mescla rural e urbano, antigo e presente, arcaico e civilizado, palmas de Itapuã e “frio palmeiral de cimento”, Amaro e Leblon: plasma uma cidade da expectativa e da presença, da ameaça e da promessa. O jogo sonoro “boi bus” anima a historiografia da cidade cantada: do povo (e seus projetos de futuro) que ergueu a megalópole: vida de gado na mobilidade via ônibus, ou trem, ou avião, ou bonde [“da Trilhos urbanos”]. Em geral, melancólico, apontando o sertão que está em toda parte, o sofrimento do nor-destino (assim, partido) que vê o padecimento da promessa de felicidade.
Em “O nome da cidade” aparece o desejo que o sujeito tem de confrontar o sofrimento da cidade, do Rio cantado (“Letras demais, tudo mentindo”) e do Rio que ele experimenta (“Ruas voando sobre ruas”). Enquanto o bossanovista Tom Jobim canta “Da janela vê-se o Corcovado / O Redentor que lindo”, o sujeito caetânico entoa “O Redentor, que horror! Que lindo!”. O Rio parece ser mais e melhor nas “letras demais”, na TV. Aqui a voz se mistura com o espaço espesso, assim como a história do menino santamarense se mistura, se espalha, nas canções de Caetano Veloso e seu Rio de Janeiro. Um Rio no qual “A gente chega sem chegar / Não há meada, é só o fio”. A cidade atravessa Caetano, “igual, sem fim, minha terra / passava dentro de mim” (“Onde eu nasci passa um rio”, Domingo, 1967); e é atravessada pelo traço do poeta: “hoje eu sei que o mundo é grande / e o mar de ondas se faz / mas nasceu junto com o rio / o canto que eu canto mais”, canta o santamarense acolhido em Guadalupe. Do rio (Subaé, de Santo Amaro) ao Rio (de Janeiro), imagens da travessia “infinitivamente pessoal”, do “errante navegante, sozinho, só e solitário”.