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Porto Alegre no olhar de Augusto Meyer

Porto Alegre no olhar de

Augusto Meyer

ou Memórias sentimentais da cidade de um menino e moço
De todas as histórias de fadas, a mais impressionante sempre me pareceu a Hora Adormecida no Tempo.

O poeta modernista Augusto Meyer (1902-1970) nasceu em Porto Alegre, cidade onde passou sua infância e mocidade. Deixou a capital gaúcha em 1937, quando foi convidado por Getúlio Vargas para organizar o Instituto Nacional do Livro, no Rio de Janeiro, instituição que dirigiu por 26 anos. Retornava, contudo, seguidamente à cidade natal e, com seu olhar poético, muito descreveu o espaço urbano porto-alegrense, quer objetivamente, nos textos publicados em jornais e revistas, quer poeticamente ou mesmo através das recordações que a memória lhe propiciava.

Em 1966, as Edições O Cruzeiro, do Rio de Janeiro, lançaram a Coleção Tempo e Memória, de reminiscências, diários e confissões, cabendo a Augusto Meyer a inauguração desse novo empreendimento com o livro Segredos da infância (1949), a que se seguiu No tempo da flor (1966). Essas duas obras memorialísticas apresentam o relato de Meyer sobre os primeiros anos de sua vida, transcorridos em Porto Alegre.

No tempo da flor, o autor vale-se de um dos pontos mais marcantes da cidade – a Praça da Matriz, para não só descrever esse locus de especial recordação para ele, como para tecer considerações sobre o tempo e sua passagem. Se as praças mudam, é lógico que as pessoas também mudam, expressa o narrador:

Nesse jogo vertiginoso, mudam as cousas por dentro e por fora, e, ao passo que as paisagens lentamente se desmancham, recompostas noutra forma, também o espectador vai trocando de alma e de pele, apesar de conservar o mesmo nome, confiado nas certidões de registro civil. O Eu da gente é um inquilino que se imagina dono de si mesmo, proprietário do nariz, e dentro dele moram não sei quantos locatários irresponsáveis, que acabam estragando a casa. […] “Muda, muda, que eu também já mudei”, dizem-lhe as casas, as ruas, as posturas municipais. E de mudanças vamos vivendo, enquanto não vem a hora da grande mudança.
MEYER, Augusto. No tempo da flor. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1966. p. 7

A cidade revela ao poeta que está em mutação. É ela quem o avisa que se encontra em fase de transformação, assumindo outros ares, trazidos pela modernidade. A intimidade do poeta com sua cidade o leva a aproximá-la à sua própria mudança como pessoa: “Muda, muda, que eu também já mudei”. A cidade mostra-se em movimento e o narrador coloca-se na condição de espectador. Sente sua casa com estranheza, nela habitando como se fosse um inquilino, na situação de um proprietário que sofre um calote: “O dono de si mesmo descobre que foi logrado, vagamente se dá conta do embuste…“. O olhar do poeta avista o espaço da década de 1960, período no qual escreve a narrativa, mas sua memória ainda capta a paisagem dos anos de sua infância e juventude, em 1920, as quais “lentamente se desmancham, recompostas noutra forma, também o espectador vai trocando de alma e de pele“. Nesse período, é a cidade que fala ao poeta. O silêncio se quebra pela memória, pela paisagem da Porto Alegre que traz consigo.

Ele reconhece que não há “esta cousa imutável e intemporal” a não ser na ilusão do nome… do seu próprio nome, pois lembra que até a praça teve mais de um batismo, “Matriz, Palácio, Dom Pedro II, Marechal Deodoro”. A praça da infância, para o narrador, revela-se pela profusão de momentos vividos, e o conduzem a sua construção e reconstrução enquanto sujeito, que, embora tenha o mesmo nome de registro ao longo da vida, ressignifica-se: “houve, isto sim, muitas praças da matriz, desmanchadas e recomeçadas a cada instante”.

Praça da Matriz, década de 1900

As plantas da cidade e o instantâneo fotográfico expressam a “grata ilusão” de que “a praça até parece que há de ancorar na eternidade”, com a mesma igreja, a mesma sacada, o mesmo tipo de janela e os mesmos telhados, o mesmo lugar onde conversava despropositadamente em noites de lua cheia. A fotografia, contudo, traz consigo o paradoxo, torna-se fantasma, pois sua fixidez não revela as alterações que se dão pela passagem do tempo.

A paisagem do presente não permite reconhecer no espaço a paisagem pretérita. Nesse caso, impossibilitado de refigurar o passado, opta pela refiguração da paisagem no seu imaginário: “faz de conta que houve uma Praça da Matriz no meu tempo de criança, e outra Praça da Matriz, mais tarde, no tempo da flor”.

O álbum de fotografias do Atelier Calegar, impresso na Itália em 1910, o qual o narrador designa como um dos seus tesouros, possibilita que ele “reviva” a cidade “no tempo do bom tempo, quando não havia obelisco, apenas o chafariz que representava a bacia do Guaíba

Chafariz da Praça da Matriz, década de 1900
Esse álbum que o ajuda a resgatar essa Porto Alegre reúne imagens da tenra infância e até de um momento histórico anterior ao período de vida do narrador. As fotografias têm, para ele, o papel de manterem vivas as cidades de suas memórias. A pluralidade reveste a Porto Alegre do escritor na amplitude e na variedade de seus significados, os mesmos que a singularizam e a tornam una e especial:

Lá no alto, para os lados da igreja, outro vulto marmóreo branqueava por entre as oliveiras; o Conde de Porto Alegre. Creio que não cheguei a conhecer as grades que cercavam a praça dos começos do século, mas ainda me lembro muito bem das grades da Praça da Conceição […] Vejo a Bailante, com seu frontão triangular, lembrando as grandes noites do Parthenon Literário; a Matriz de Nossa Senhora Madre de Deus, a autêntica matriz barroca, não a ostentosa catedral de granito, inacabada e sem alma; e ao lado, a capelinha do Divino. O Teatro São Pedro e o Tesouro, casarões gêmeos, davam à praça um digno arremate, como a rima arquitetônica daquele poema, ritmo disciplinado e severo, que não tornei a ver em parte alguma, nos casos de idêntica solução de simetria.

MEYER, Augusto. No tempo da flor. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1966. p. 9
A praça da D. Pedro II (como se chamava a Praça da Matriz). Ao fundo a Igreja da Matriz, obra iniciada em 1772, concluída em 1780 e demolida em 1929 para que ali fosse construída a Catedral Metropolitana. Ao lado, a capela do Divino
Teatro São Pedro e Tribunal de Justiça do RS, década de 1910

A beleza e a simetria arquitetônica da praça completavam-se com o panorama do Guaíba. O anseio progressista, no entanto, desfigurava sua identidade. Ao importarem da França “o projeto, o arquiteto e até as pedras”, ao arrancarem o chafariz, peça central desse lugar mágico, foi, para ele, como se tivessem removido o coração da praça. As figuras de mármore que contornavam o chafariz e que simbolizavam os cinco rios que formam o estuário do Guaíba, ao serem transferidas para a Praça da Conceição, passam a ser uma lição de mau gosto e, à medida que novas construções são feitas, em substituição às antigas, “repetia-se com tranquila brutalidade o atentado contra a velha Praça da Harmonia”.

Praça da Matriz, 1920
Meyer mora, de 1912 a 1922, no sobrado alugado pelo seu pai, o “Velho Meyer”, como era conhecido. Nele, o antigo professor instalou o curso de preparatórios, na Praça da Matriz, número 24. Em seu relato, percebe-se a praça como seu mundo e sua referência. A configuração desse espaço traz consigo um sujeito que tem sua cidade não apenas como solo que o gerou, mas que cultiva seu período de florescer:
Era o tempo da flor, na Praça da Matriz, em Porto Alegre. Como exploramos então, sentados num banco da praça, os quatro cantos do mundo! Como sabíamos corrigir os poetas e refutar os filósofos! […] Bastariam os alunos do Velho Meyer para encher de rapaziada os bancos; mas também não se esqueça o Ginásio Anchieta, na Rua da Igreja, ali pertinho. […] Na praça, atavam-se amizades, travavam-se crespas discussões políticas, a cinturão e sopapo, tiravam-se as diferenças.
MEYER, Augusto. No tempo da flor. Rio de Janeiro:
O Cruzeiro, 1966. p. 11-12
O símbolo que possibilita a representação do passado é, nas palavras de Paul Ricoeur, o que “dá testemunho da radicação primordial do Discurso na Vida. Nasce onde a força e a forma coincidem”. No caso de Augusto Meyer, a memória do narrador é reavivada pela memória da própria cidade. Ao resgatar a paisagem e a vida em Porto Alegre, faz, na narrativa sobre a cidade, um retorno a sua própria identidade.
vista aérea da Praça da Matriz, década de 1950
Falar da cidade é falar do tempo da flor, mas também falar de saudade. A transformação da cidade mostra a passagem do tempo: “a cidade natal muda de cara e perde a memória das nossas andanças”. No tempo da flor resgata uma memória que se fixou no discurso, nas lembranças de amigos e parentes, nos periódicos, na literatura, na praça, no Guaíba e traz à tona aqueles momentos aos quais “parece que a alegria é eterna”.
vista aérea da Praça da Matriz, década de 2010
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MEYER, Augusto. No tempo da flor. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1966. p. 8
MEYER, Augusto. No tempo da flor. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1966. p. 7
MEYER, Augusto. No tempo da flor. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1966. p. 7

MEYER, Augusto. No tempo da flor. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1966. p. 7

MEYER, Augusto. No tempo da flor. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1966. p. 7
MEYER, Augusto. No tempo da flor. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1966. p. 7-8
MEYER, Augusto. No tempo da flor. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1966. p. 7
MEYER, Augusto. No tempo da flor. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1966. p. 8
MEYER, Augusto. No tempo da flor. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1966. p. 138
Virgilio Calegari nasceu em 1868, em Bérgamo, na Itália. Em 1881, chegou ao Brasil, estabelecendo-se no Rio Grande do Sul, onde inaugurou, na capital do estado, seu estúdio fotográfico designado Atelier Calegari, o qual teve seu endereço definitivo na Rua dos Andradas, nº. 171. Além de retratista consagrado da elite, Virgílio Calegari registrou, por meio da fotografia, o povo e a cidade de Porto Alegre. Contribuiu significativamente para a memória da cidade ao reunir, em álbum, imagens feitas ao longo de um período de quarenta anos, as quais possibilitam acompanhar o processo de modernização de Porto Alegre.
MEYER, Augusto. No tempo da flor. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1966. p. 8
MEYER, Augusto. No tempo da flor. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1966. p. 9
MEYER, Augusto. No tempo da flor. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1966. p. 10
Paul Ricoeur nasceu em Valence, na França, em 1913, e faleceu, em Châtenay-Malabry, na França, em 2005. Sua obra desenvolve uma crítica da interpretação, associando linguística, história e psicanálise para propor uma hermenêutica do sentido.
RICOEUR, Paul. Teoria da Interpretação. Lisboa: Edições 70, 1976. p. 71 Na obra referida, ao discutir conceitos sobre os termos explicação e compreensão, Paul Ricoeur concentra-se nas definições de metáfora e de símbolo. Quanto à metáfora, o filósofo indica tratar-se de um conceito que se concretiza apenas no âmbito da linguagem, ao ter sua existência vinculada a uma situação de enunciação. Já o símbolo traz certa opacidade em sua definição, uma vez que carrega consigo “algo de não semântico e também algo de semântico” (RICOEUR, 1976, p. 57), ou seja, sua compreensão extrapola o entendimento linguístico do termo, uma vez que a subjetividade que o envolve relaciona-se a áreas diferentes de experiências de cada sujeito e se vincula a variados métodos de investigação.
MEYER, Augusto. No tempo da flor. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1966. p. 138
Agradecemos ao artista plástico Gabriel AV as fotos de Covilhã.