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Qualquer coisa que me ajude a existir: fragmentos de uma Lisboa conflituosa em Memória de Elefante, de António Lobo Antunes

Qualquer coisa que me ajude a existir: fragmentos de uma Lisboa conflituosa em
Memória de Elefante
de

António Lobo Antunes

Esta cidade que era a sua oferecia-lhe sempre, através das suas avenidas e das suas praças, o rosto infinitamente variável de uma amante caprichosa que as árvores escureciam do cone de sombra dos remorsos melancólicos […]. Entre a Angola que perdera e a Lisboa que não reganhara o médico sentia-se duplamente órfão, e esta condição de despaisado continuara dolorosamente a prolongar-se porque muita coisa se alterara na sua ausência […].

ANTUNES, António Lobo. Memória de Elefante. 30ª edição [E-book].
Alfragide: BIS/Leya, 2013, p. 32.

Podemos atribuir, informalmente, a expressão “memória de elefante” como característica de alguém que possua uma capacidade fora do comum para lembrar-se das coisas. A respeito de alguém que consiga, com facilidade, trazer à tona fatos e acontecimentos como se tivessem acontecido recentemente: tomar algo passado como referência com a segurança da própria memória. É normalmente entendido como algo benéfico, uma habilidade. Em que medida tal atributo pode ser ambíguo? Se reconhecermos a necessidade do esquecimento para lidar com a realidade da vida, a improbabilidade de esquecer está diretamente ligada à impossibilidade de superar o passado. Como é possível representar esse passado e suas repercussões no presente, já que ele não pode ser reprimido ou ignorado?

Memória de Elefante é o primeiro romance da vasta obra de António Lobo Antunes. Publicado em 1979, esse romance foi concebido em um momento de efervescência política, um dos períodos mais marcantes da história recente de Portugal. Cinco anos antes, em 25 de abril de 1974, um movimento revolucionário tomou o poder no país, em um processo que ficou conhecido como Revolução dos Cravos, depondo o regime ditatorial mais longo da Europa no século XX, o Estado Novo português. Um argumento fundamental para o poder da ditadura foi a importância de manter os domínios de Portugal fora da Europa, então outro fator a ser considerado é o processo de independência das então colônias portuguesas em África, marcado por uma extensa guerra de quase quinze anos, que mobilizou uma parcela muito grande da população. Apesar disso, a memória da presença portuguesa em África, mesmo depois do fim da ditadura e do início do processo de descolonização, foi considerada um tabu, um obstáculo especialmente difícil de ser contornado.

A resposta da população veio na forma das representações artísticas e, mais especificamente, por meio da literatura. Lobo Antunes, especializado em psiquiatria, foi convocado para o serviço militar obrigatório, tendo servido, durante 1971 e 1973, como médico do Exército português em Angola. Seus três primeiros romances (Memória de Elefante, de 1979, Os cus de Judas, do mesmo ano, e Conhecimento do Inferno, de 1980) têm a guerra, de maneira mais ou menos explícita, como fio condutor. Ainda que sejam ficcionais, o próprio autor reconheceu a natureza pessoal dessas obras: “eu esgotei a biografia, nos três primeiros, num processo de catarse que eu precisava me libertar”.

A narrativa de Memória de Elefante, obra que é nosso objeto em questão, acompanha o percurso de um dia na vida de um médico-psiquiatra que passa por um momento de crise. Separado da ex-esposa, por quem ele ainda tem sentimentos, e das filhas com quem ele tem dificuldade de se comunicar, o médico sofre em meio à nova rotina, com a vontade de voltar ao que existia no passado, mas sem a capacidade de assumir as responsabilidades de suas escolhas no presente. Ex-combatente da Guerra Colonial, as memórias do conflito armado em Angola se confundem em meio a seus pensamentos, enquanto encara a cidade onde nasceu e cresceu, mas sem sentir-se conectado, como podemos observar na citação escolhida como epígrafe para esse texto.

Lobo Antunes, protegido pelo véu da ficcionalidade, evoca a própria história e convida o leitor a compartilhar da angústia e do trauma ligados à falta de pertencimento e à dificuldade de encontrar o próprio perdão. Enquanto acompanhamos os acontecimentos do dia em questão, o fluxo da narrativa é propositadamente confuso, diversas vezes interrompido pelos pensamentos, memórias e digressões do narrador-protagonista. O leitor é constantemente relembrado das questões que ocupam a cabeça do médico: “Porque será que continuamente me recordo do inferno, interrogou-se ele: por de lá não ter escapado ainda ou por o haver substituído por outra qualidade de tortura?”. ANTUNES, António Lobo. Memória de Elefante. 30ª edição [E-book]. Alfragide: BIS/Leya, 2013, p. 42.

Nesse sentido, um dos pontos fundamentais na leitura de Memória de Elefante é a maneira conflituosa por meio da qual o protagonista se orienta e se relaciona com os espaços (tanto físicos quanto temporais) que ocupa durante a narrativa. Sua sobrevivência no presente depende de sua capacidade de transformar o que vive e o que vê em algo com o qual ele possa se identificar, sendo seu dilema a maneira como esses lugares estão ligados à memória — marcados pelo trauma do que ele não consegue esquecer. Existe uma dinâmica no comportamento do médico entre tentar ficar longe do que lhe faz mal e ao mesmo tempo não conseguir se distanciar.

Um desses espaços é o apartamento para o qual o médico se muda após o divórcio, localizado no Monte Estoril, uma região rica, marcada pela presença de turistas e pela profusão de hotéis e de cassinos. Descrita pelo protagonista como símbolo de artificialidade e decadência, essa paisagem é contrastada pela imagem de Lisboa, geograficamente distante, representação daquilo que perdeu e gostaria de ter novamente:

por que norte magnético me orientarei, eu que tão poucos pontos de referência conservo já e tanta dificuldade possuo em me fabricar novos? E imaginou-se à deriva na cidade, sem bússola, perdido num labirinto de travessas, porque o Estoril permaneceria para sempre uma ilha estrangeira a que se achava incapaz de se adaptar, longe dos ruídos e dos cheiros da sua floresta natal. Do apartamento avistava-se Lisboa, e olhando a mancha espraiada da cidade ele sentia-a ao mesmo tempo afastada e próxima, dolorosamente afastada e próxima como as filhas, a mulher, e o sótão de tecto oblíquo em que moravam (o Pátio das Cantigas, chamava-lhe ela), pejado de gravuras, de livros, e de brinquedos desarrumados de crianças.

ANTUNES, António Lobo. Memória de Elefante. 30ª edição [E-book]. Alfragide: BIS/Leya, 2013, p. 51.

Mapa explicitando a distância geográfica entre os cenários de Memória de Elefante.
A distância entre o centro histórico de Lisboa e o Monte Estoril é de cerca de 30km. Montagem minha, a partir do mapa disponível em http://www.paginasmovimento.com.br/mapa-portugal.html. Último acesso em 09/08/2022.

É no contexto do Estoril que o médico apresenta ao leitor uma de suas relações conflituosas com o espaço. Ainda que defina sua condição como “oito mil metros de profundidade oceânica da tristeza […] sem batiscafo, sem escafandro, sem oxigênio, o que significa, obviamente, que agonizo” ANTUNES, António Lobo. Memória de Elefante. 30ª edição [E-book]. Alfragide: BIS/Leya, 2013, p. 11., o mar é uma referência de familiaridade nesse cenário estranho no qual o protagonista se encontra: “A varanda pulava directamente para o Atlântico por sobre as roletas do casino […]. Estendido nos lençóis sem descer a persiana, o psiquiatra sentia os pés tocarem o escuro do mar, diferente do escuro da terra pela inquietação ritmada que o agita”. ANTUNES, António Lobo. Memória de Elefante. 30ª edição [E-book]. Alfragide: BIS/Leya, 2013, p. 9.

O Monte Estoril, ao fundo, do ponto de vista de Cascais.
Fotografia disponibilizada em https://pt.wikipedia.org/wiki/Monte_Estoril#/media/Ficheiro:Estoril.jpg

O romance começa no Hospital Psiquiátrico Miguel Bombarda, onde trabalha o protagonista-narrador. Acompanhamos o seu plantão matutino, observando a arquitetura, os outros funcionários e os pacientes. São os problemas do médico que definem a sua relação com cada um dos personagens, inclusive nos momentos quando está avaliando casos clínicos. Um exemplo claro é ao examinar o caso de um jovem, usuário de drogas, alienado pela família que tenta interná-lo a qualquer custo: “por este tipo e por mim já não existe muito a fazer, pensou o psiquiatra, encontramo-nos ambos, embora de maneiras diversas, no fundo dos fundos, onde nenhum braço chega […]. Só oxalá que eu não arraste ninguém por esta queda abaixo.” ANTUNES, António Lobo. Memória de Elefante. 30ª edição [E-book]. Alfragide: BIS/Leya, 2013, p. 20.

Pavilhão de segurança do Hospital Miguel Bombarda.
Essa e outras imagens estão disponíveis no site da Direção-Geral do Patrimônio Cultural Português (DGPC): http://www.patrimoniocultural.gov.pt/pt/patrimonio/patrimonio-imovel/pesquisa-do-patrimonio/classificado-ou-em-vias-de-classificacao/geral/view/323308/.

As inseguranças do médico definem inclusive a relação com o seu próprio ofício. Em determinado momento, o protagonista-narrador se questiona a respeito da noção de loucura e se por acaso seus pacientes não seriam de fato os “normais”, pela liberdade de agir como quisessem, enquanto o resto do mundo do lado de fora estaria destinado à loucura, fazendo referência às dimensões do hospital: “possível aqui e lá fora que os muros do hospital são concêntricos e abarcam o país inteiro até ao mar, ao Cais das Colunas e às suas ondas domesticadas”. ANTUNES, António Lobo. Memória de Elefante. 30ª edição [E-book]. Alfragide: BIS/Leya, 2013, p. 17. Importante destacar a menção ao Cais, um dos espaços de maior relevância histórica em Lisboa, às margens do rio Tejo.

O Cais das Colunas, com a Praça do Comércio (antigo Terreiro do Paço) ao fundo.
Disponível em https://lisbonshopping.com/en/place/cais-das-colunas/

A paisagem cotidiana da cidade de Lisboa é representada diversas vezes em Memória de Elefante, sendo o itinerário do médico uma espécie de peregrinação, em uma dedicação quase religiosa a fim de reiterar a própria dor. Algo a se considerar nesse sentido é como os momentos reflexivos proporcionados pelo personagem-narrador ocupam o lugar desses espaços rotineiros. O narrador tenciona seguir um cronograma (fazendo o plantão no hospital, indo ao consultório do dentista, frequentando uma sessão de terapia em grupo) e ainda busca ocupar a cabeça quando aparecem espaços de tempo livre (convidando um amigo para almoçar, indo a um bar antes da sessão, dirigindo-se ao cassino no fim da noite). Apesar disso, a experiência da cidade, ainda que de alguma forma reconfortante, é também opressiva e perturbadora, como na analogia que Lobo Antunes faz com a pintura expressionista:
Eu sou um homem de uma certa idade, citou ele em voz alta como sempre lhe acontecia quando Lisboa, num gesto meditativo de lagosta de viveiro, lhe apertava as pinças em torno dos tendões do pescoço, e casas, árvores, praças e ruas penetravam tumultuosamente na sua cabeça à moda de um quadro de Soutine dançando um charleston carnívoro e frenético.

ANTUNES, António Lobo. Memória de Elefante. 30ª edição [E-book]. Alfragide: BIS/Leya, 2013, p. 27.

Chaïm Soutine, La route de la colline (A estrada subindo a colina), 1924.
Disponível em https://archive.org/details/231N0885049QY8/T00315_10.jpg.
Último acesso em 09/08/2022.

Como reação ao desencontro de referências pelo qual passa — a distância em relação a seu lar, em relação a sua família, em relação ao seu trabalho —, o protagonista se habitua a viajar de carro pela cidade de forma errante, como se reconhecer o espaço fosse a única opção, apesar da dor, de recuperar aquilo que foi perdido, descrevendo uma tentativa, ainda que falha, de reconciliação com a cidade. O mar é, novamente, o seu ponto de segurança, o alívio necessário, representado pelo porto, de onde havia partido anos antes para Angola:

nas tardes livres cavalgava o pequeno automóvel amolgado e procedia com método à verificação da cidade, bairro por bairro e igreja por igreja, em peregrinações que terminavam invariavelmente na Rocha do Conde de Óbidos, da qual largara um dia para a aventura imposta e com quem mantinha, apesar de tudo, a intimidade respeitosa e masoquista que as vítimas reservam aos carrascos reformados. […] dirigiu-se para o parque de estacionamento junto ao rio, onde, desde sempre, passeara a sua solidão […]. As ondas enroscavam-se-lhe aos pés numa fraternidade canina, e era como se pudesse lavar-se das injustiças do mundo a partir dos tornozelos.

ANTUNES, António Lobo. Memória de Elefante. 30ª edição [E-book]. Alfragide: BIS/Leya, 2013, p. 32-33.

Vista do Miradouro da Rocha do Conde de Óbidos, com o porto e o Tejo ao fundo.
Imagem disponível em https://visitar.lisboa.pt/explorar/locais-de-interesse/miradouro-da-rocha-do-conde-de-obidos . Último acesso em 09/08/2022.

Dessa forma, Lobo Antunes faz com que o leitor mergulhe nas águas desse rio. De maneira prolixa e extremamente pessoal, o autor compõe e desmonta as paisagens da sua Lisboa, confusa, desconexa e inconclusiva, gerando reflexões a respeito do poder do esquecimento e da memória no desenvolvimento dos indivíduos — especialmente em um contexto de guerra e de transformação social. A cidade continua no mesmo lugar, mas os espaços não são mais os mesmos. O indivíduo não é o mesmo. Entre o que passa e o que não passa, o texto de Memória de Elefante é o “qualquer coisa que me ajude a existir” ANTUNES, António Lobo. Memória de Elefante. 30ª edição [E-book]. Alfragide: BIS/Leya, 2013, p. 60. suplicado pelo protagonista ao fim da obra.

André Arioza Vargas
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Tipo de dança animada, originária nos Estados Unidos do pós-I Guerra Mundial, muito relacionada à tradição do cabaré.
Chaïm Soutine (1893-1943) foi um pintor, nascido na Lituânia (à época, parte do Império Russo), cuja produção foi vinculada ao movimento expressionista.

Para uma discussão mais detalhada a respeito dos diálogos e das referências artísticas mobilizadas por Lobo Antunes, vale consultar CARIJÓ, Sílvia Herkenhoff. Memória de Elefante de António Lobo Antunes: o texto em diálogo com as artes visuais. Em Tese, 19(2), p. 84-94.

Construído no século XVIII para ser o Convento de Rilhafoles. Ao ser transformado em hospital, já no século XIX, foi a “primeira instituição médica em Lisboa dedicada exclusivamente ao internamento e tratamento de doentes mentais”. Para mais informações, consultar https://maislisboa.fcsh.unl.pt/da-loucura-a-quase-cura-o-manicomio-bombarda/.
Roupa de mergulho de corpo inteiro, normalmente de latão, projetada para alcançar altas profundidades e resistir à pressão submarina.
Veículo aquático para acesso a regiões de alta profundidade.
Cristina Carvalho, em tese de Doutorado defendida na Universidade de Lisboa, identificou, durante as últimas décadas do século XIX e primeiras décadas do século XX, a transformação socioeconômica da região de Cascais e Estoril. Ao investigar tais processos de modernização, que visavam tanto favorecer a qualidade de vida local quanto atrair não-locais (nacionais ou não, a ponto dessa região ter se tornado localidade de férias para muitos estrangeiros, especialmente britânicos) e que foram bem-sucedidos, Carvalho chama atenção para a consolidação de uma imagem turística para a região e para Portugal como um todo, que foi apropriada pelo regime do Estado Novo. Consultar CARVALHO, Cristina. O turismo no eixo costeiro Estoril-Cascais (1929-1939): equipamentos, eventos e promoção do destino. Tese (Doutorado em História). Faculdade de Letras — Universidade de Lisboa (UL), 2012.

Entrevista concedida a Carlos Vaz Marques em abril de 2008. Publicada em MARQUES, Carlos Vaz (org.). As Palavras não se afogam ao atravessar o Atlântico. Rio de Janeiro: Tinta-da-China Brasil, 2015, p. 49.

As cartas que escreveu para a esposa durante o serviço militar foram compiladas por suas filhas no livro D’este viver aqui neste papel descripto: Cartas da guerra (2005) e posteriormente transformadas em filme, Cartas da Guerra, de Ivo Ferreira (2016).

Para saber mais, consulte RIBEIRO, Margarida Calafate. A casa da Nave Europa — miragens ou projeções pós-coloniais? In: _____; RIBEIRO, António Sousa (orgs.). Geometrias da memória: configurações pós-coloniais. Porto: Afrontamento, 2016, p. 15-42.

A Guerra Colonial portuguesa teve suas frentes em Angola (1961-1974), Guiné-Bissau (1961-1973) e Moçambique (1964-1974). A independência da Guiné foi reconhecida com o fim da guerra, enquanto Angola e Moçambique só teriam o mesmo reconhecimento em 1975. De acordo com os dados oficiais do Estado português, mais de 1.300.000 homens foram recrutados, e entre eles, cerca de 800 mil do território europeu. Cf. RODRIGUES, Fátima da Cruz. A desmobilização dos combatentes africanos das Forças Armadas Portuguesas da Guerra Colonial (1961-1974). Ler História, 65, 2013, p. 113-128.

Agradecemos ao artista plástico Gabriel AV as fotos de Covilhã.