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Um lisboeta peregrino
Antônio Ferreira
um lisboeta peregrino em sua pátria
quela grã rua nova conhecida
por todo mundo, que outra cousa conta
senão da nau ganhada, ou nau perdida?
(Antônio Ferreira, Livro I, Carta X, p.293)
FERREIRA, Antonio. Poemas Lusitanos.
Edição crítica, introdução e comentário de T. F. Earle.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008.
Dos poetas portugueses nascidos no século XVI, Antônio Ferreira sempre é lembrado como um dos mais notáveis. Discípulo e amigo de Sá de Miranda, sua vida foi razoavelmente documentada e sabe-se, com segurança, que frequentou a Universidade de Coimbra, na qual também chegou a lecionar. Seguiu carreira jurídica, foi um homem de grande estima na corte portuguesa e convidado a ocupar o cargo de Desembargador na Casa do Cível em Lisboa.
Seus textos, moldados pela literatura culta latina (Horácio em especial), grega e italiana, até mesmo para alguns de seus contemporâneos soariam como escritos por um “forasteiro”. O tom grave de suas composições líricas e teatrais parecia “como quem chega de longes terras”. Apesar de peregrino, o amor por sua terra e sua gente está marcado já nos versos que abrem a compilação de sua obra, intitulada Poemas Lusitanos, editada por seu filho, Miguel Leite Ferreira, em 1598.
Eu d’esta gloria só fico contente:
que a minha terra amei, e a minha gente.
As transformações urbanas e o contato com pessoas de diferentes culturas marcaram fortemente a identidade da Lisboa quinhentista. Entendemos Antônio Ferreira como um “peregrino” pois, embora tenha nascido em Lisboa, esta cidade “soa muito diferente aos seus ouvidos”. (Antônio Ferreira, Carta X, Livro I, p. 293)
Nosso poeta nasceu em 1528 e Lisboa já apresentava mudanças significativas em seu espaço, as quais são impossíveis de serem dissociadas da expansão marítima e da intensa atividade comercial que tomava seu tecido urbano. Lisboa é um espaço em que se conjugam diferentes tempos de sua história, uma cidade cheia de contradições e habitava em seu seio movimentos de transformações, mas também de continuidades muito significativas, o que refletiu diretamente no cotidiano de seus habitantes. Na poesia portuguesa do século XVI é possível identificar como alguns poetas sentiam essas transformações e essas mudanças, e a obra de Antônio Ferreira traz algumas dessas marcas:
Pelas ruas mil cambos, mil recambos;
cargas vem, cargas vão, mil mós, mil traves
um arranca, outro foge, e encontro entrambos.
(Antônio Ferreira, Livro II, Carta IV, p. 333.)
Vista do Convento de Stº Jerónimo de Belém e da Barra de Lisboa, de Henry L’Évêque (1769-1832)
Acervo Museu de Lisboa
No século XVI, a Lisboa medieval cristã – com suas ruas estreitas, becos e muralhas – vai partilhando o espaço, principalmente a partir do reinado de Dom Manuel, com uma cidade dinâmica pelo intenso comércio, festas e procissões; pela diversidade dos ofícios, negócios e costumes.
Mapa da Lisboa Manuelina, Arquivo Municipal de Lisboa
Mapa da Lisboa Manuelina, Arquivo Municipal de Lisboa
O deslocamento do centro do poder, do Paço da Alcáçova para a Ribeira, aproximou o poder régio do polo financeiro e comercial e projetou a cidade para o exterior. O cheiro de fumo e canela perfuma as ruas, contorna os edifícios; as sedas e ouro dão um ar de opulência e elegância à corte. No seu conjunto se alternam palácios, edifícios de tipologias e extensões variáveis, mercados e estaleiros. Os moradores, alguns com seus passadiços e balcões, se apropriam dos espaços da rua (não sem algumas medidas restritivas do poder real). A cidade é mais urbana e pública, os cortejos e as procissões exaltam a grandeza de Lisboa, que, ao lado de Sevilha, são “senhoras e rainhas do Oceano”, como a chama Damião de Góis.
Louvarão muitos esta gram cidade,
Esta nobre Lisboa,
Raro Francisco, esta que do ocidente
Com grande nome em toda parte soa,
E soará com gram nome em toda idade,
Que dá leis ó meo dia e ó Oriente.
Seus espantos verão, suas grandezas,
seus nobres edifícios
D’obra antiga e moderna, as variedades
Dos estados, das obras, dos ofícios,
Dos negócios, dos tratos, das riquezas,
Dos costumes, das leis e das vontades.
Livro de Horas de Dom Manuel, Autoria atribuída a António de Holanda. Pertence ao Museu Nacional de Arte Antiga Imagem retirada do catálogo coletivo on-line dos Museus da administração central do Estado Português.
Detalhe do Paço da Ribeira no período manuelino. Este edifício era o centro da vida lisboeta e exaltado por sua extensão.
Diferente da “ruidosa” Lisboa era Coimbra, cidade onde Antônio Ferreira cumpriu seus estudos, onde lhe agradavam o clima ameno, os campos e os vales:
Ó doce campo, ó deleitosa serra,
vales sombrios, claras, e correntes
fontes, que bem secreto em vós s’encerra!
A ti torno, Mondego claro rio,
com outr’alma, outros olhos, e outra vida
(Antônio Ferreira, Soneto XLVI, p. 71)
Gravura: Vista de Coimbra, final século XVI. Jorge Braunio no Urbium Pracepuarum Theatrum.
Destaque para o Paço Real acima e o Mosteiro de Santa Clara.
Mas, por uma determinação régia, Ferreira teve que deixar sua pacata Coimbra para o “o sepultarem entre as rumas de processos nas abobadas da Casa do Cível”, como bem ilustrou Júlio de Castilho.
A contraposição também não era para menos. Sair de Coimbra, cidadinha risonha e festeira, onde o poeta vivia e entrar na grande Lisboa, rumorosa e triste, onde (apesar de ser esta a sua terra) ele se via como hóspede. Deixar os bons ares daquela aldeia episcopal e doutoral, para vir encovilar-se nesta grande Alfama, cheia de casas altas, de pesados conventos escuros, de grossas muralhas bastidadas de torres.
(CASTILHO, 1897, p.128)
ARAUJO, Norberto. Peregrinações em Lisboa. Livro 2. 1938
Entristece-o a artificialidade da paisagem de Lisboa, forjada pelas artes mecânicas.
De area, e cal, e pedra, os que edificam
(baixas, mas necessárias miudezas)
as torres erguem, que tão altas ficam.
[…]
As artes, que mecânicas se chamam,
baixas parecem mas dão ornamento
às ilustres cidades, e as afamam.
(Antônio Ferreira, Livro II, Carta II, p. 322- 325)
O poema descreve uma cidade onde os jardins nascem atados aos edifícios de mármore, às vergas e aos arames, indicando que a natureza está presa às construções urbanas, lutando por liberdade. Provavelmente, esses versos indiciam que o sujeito acostumado à vida no campo também se sente preso na cidade:
Mas atadas aos mármores crescendo
vão mil heras, jardins dependurados,
que das altas janelas s’estão vendo.
Artifícios são, como roubados
à natureza, que por mais que os forcem,
não podem longo tempo ser forçados.
Invejosos do campo assi em vão torcem
as vergas, e os arames; mas c’um vento
ou quebram, se se secam, ou se destorcem.
Leva já a natureza um movimento
a seus tempos contino sempre, e certo,
que arte imitar no pode, ou instrumento.
(Antônio Ferreira, Livro II, Carta IV, p. 333)
Entristece-o também a extensão da cidade, que o privava do contato com seus amigos. Cada um num ponto, para encontrá-los, a cidade furta-lhe longas horas.
Mora um lá fora, além do grã Vicente,
Outro cá na Esperança; e hei-de ver ambos.
Foge inda o dia ao muito diligente.
(Antônio Ferreira, Livro II, Carta IV, p. 333)
Pintura Chafariz D’el Rei, 1570-1580, Anônimo.
Os relatos sobre a Lisboa quinhentista nos mostram um universo dinâmico e um corpo urbano extremamente complexo; modelado, em especial, pelo processo das grandes navegações portuguesas e o conhecimento de novos mundos, novas técnicas e culturas. A significativa presença africana em Portugal – de homens e mulheres escravizados ou livres e alforriados – mostra-se em especial nas áreas urbanas e foi documentada tanto nas artes figurativas quanto em documentos oficiais e a literatura da época. Estima-se, que até o final do século XVI, tinham aportado em Portugal cerca de 150.000 africanos, em sua grande parte como mão de obra escravizada.
Não são muitas as imagens disponíveis acerca das cenas urbanas da vida lisboeta dessa época. Para além dos textos literários e peças de teatro, são os relatos de cronistas e viajantes da época que nos auxiliam no remontar deste quadro. Um depoimento que define a situação das cidades nessa época é de um viajante italiano anônimo que nos diz: “os escravos são em tão grande número que as cidades parecem jogos de xadrez, tantos os pretos como os brancos” .
Uma obra importante posta em evidência nos últimos anos, a pintura O chafariz d’El Rey nos revela algumas dessas cenas. Percebe-se que, nesse ambiente festivo, dos edifícios as mulheres testemunham a movimentação dos diferentes corpos e histórias: um homem negro e uma mulher branca dançam; um casal de namorados passeia em uma balsa, enquanto um homem negro é carregado por oficiais; esses se misturam aos homens de turbante, mercadores, aos que andam com os pés descalços – o que evidencia a sua situação de homem não livre, de escravizado – às mulheres que vendem doces e aos aguadeiros negros que conduzem os potes de água na cabeça.
Aquela grã rua nova conhecida
por todo mundo, que outra cousa conta
senão da nau ganhada, ou nau perdida?
(Antônio Ferreira, Livro I, Carta X, p. 293)
Além do Chafariz d’El Rei, outro local importante da cidade era Rua Nova dos Mercadores, um marco no panorama urbano da Lisboa quinhentista, Aquella gran rua nova de que nos falam os versos de Ferreira. Além de seus altos e belos edifícios, presentes em ambos os lados, é o seu “nervo comercial” tanto de bens alimentares quanto de consumo. Nela se negociava toda a sorte de mercadorias: panos, especiarias, livros, medicamentos. Além de, como relata o cronista Damião de Góis, “muito mais vasta que as outras ruas da cidade […] aqui se juntam, todos os dias, os comerciantes de quasi todos os povos e partes do mundo com extraordinário concurso de gente, por causa das facilidades que o comércio e o porto oferecem.” (GÓIS, [s.d], p. 48)
Díptico Rua Novas dos Mercadores Lisboa. Autor anônimo, Séc. XVI
A Carta X endereçada ao amigo Manuel de Sampaio é um dos melhores textos para entender a relação de desterro que vive o poeta em sua cidade natal. Nos seus versos acompanhamos o movimento de Lisboa, cidade formosa e conhecida em todo o mundo e habitada agora de “povão vão” que leva uma vida triste, dura e perigosa.
com medo dos perigos, que cá vejo
tais, que só seu rosto pasmo, e temo
Tudo se vence cá com atrevimento,
com língua ousada, e mãos, com não temer
Com pôr a proa a todo mar, e vento
[…]
Quão triste, e dura vida a da cidade
cheia de povo vão! Quão perigosa
a da corte a toda alma, a toda idade!
Esta cidade, em que nasci, fermosa
esta nobre, esta cheia, esta Lisboa,
em África, Ásia, Europa tão famosa,
quão diferente em meus ouvidos soa,
quão diferente a vejo, do que a vê
o esprito enganado, que no ar voa!
(Antônio Ferreira, Livro I, Carta X, p. 292-293)
Deambular pelos Poemas Lusitanos de Antônio Ferreira nos aproxima da relação do poeta com Lisboa, mostra-nos mudanças sutis de sua percepção em relação à cidade em que nasceu. Mostra, também, que o homem do século XVI é sensível às transformações da paisagem, sente-se deslocado e falta-lhe o pertencimento ao lugar. Este homem também entende as estruturas inconstantes de um grande centro, dos seus lugares, dos seus espaços materiais e culturais. A cidade cosmopolita como a Lisboa do século XVI encanta e amedronta o poeta, que a considera incontrolável:
Mas em tão cheia, em tão grã cidade,
Onde o esprito, e a vista leva a gente,
Quem pode ser senhor da sua vontade
(Antônio Ferreira, Livro II, Carta IV, p. 333)
Os Poemas lusitanos de Antônio Ferreira mostram um sujeito bucólico que almeja uma vida simples, considerada por ele impossível de ser encontrada na Lisboa mercantil do século XVI. Por isso, confessa ele sobre essa cidade: Donde eu, se tivesse asas, fugeria. (Antônio Ferreira, Livro II, Carta IV, p. 334).
Silvia C S Coelho e Carlos Eduardo da Cruz