O cortiço de Aluísio Azevedo
O cortiço de
Aluísio Azevedo:
a paisagem à flor (e à cor) da pele
Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1890, pp. 23-24
Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1890, p. 19
Assim, vemos como, na paisagem socialmente estratificada e espacialmente reduzida, coexistem exploradores e explorados, fixados pelo autor por grupos sociais distintos, marcados pelos princípios do determinismo biológico, social e ambiental que definem o comportamento humano. O bairro de Botafogo, e em particular a vida cotidiana do cortiço, exprime essa realidade paradoxal: ricos e pobres, mulatos e brancos, senhores e escravos, religiosos e pervertidos, homem e mulher. João Romão que arrebanha para si a escrava Bertoleza, escancara e naturaliza a questão racial. Após convencer Bertoleza de que confiar a ele suas economias lhe renderia a alforria relativamente ao antigo senhor, João Romão a toma para si, como seu novo proprietário. A escrava, agora sob a alçada de um novo senhor, segue sendo “sempre a mesma crioula suja, sempre atrapalhada de serviço, sem domingo nem dia santo; essa, em nada, em nada absolutamente, participava das novas regalias do amigo; pelo contrario, à medida que elle galgava posição social, a desgraçada fazia-se mais e mais escrava e rasteira” (p. 221-222). Uma relação que entendemos como uma forma de Aluísio Azevedo, abolicionista convicto, denunciar a existência de uma escravatura encapotada, a perpetuação da fragilidade que mantém escravo um alforriado e o fato de a cor da pele se manter obstáculo à mobilidade social. Pobre, mas branco, João Romão enriquece e ascende; a negra Bertoleza jamais poderá fazê-lo.
Representação de Bertoleza e João Romão.
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro
Com Miranda, João Romão compete em poder, mas também em status social. Ambos nutrem sentimentos vis. O ódio e a inveja são recíprocos em dois homens que se perdem numa busca desmedida pela ascensão, envolvida em questões superficiais que alimentam a degradação e decadência de ambos. Miranda não se conforma com o modo como o vendeiro português fez fortuna. De si próprio lamenta: “— Fui uma besta! repisava ele sem conseguir conformar-se com a felicidade do vendeiro. Uma grandíssima! No fim de contas que diabo possuo eu?… […] Que tenho de meu, se a alma do meu crédito é o dote, que me trouxe aquela sem-vergonha e que a ela me prende como a peste da casa comercial me prende a esta Costa d’África?” (p. 27). Enquanto isso, os negócios de João Romão prosperam e Miranda observa que, para ser muito mais rico do que ele, o rival não teve “de casar com a filha do patrão ou com a bastarda de algum fazendeiro freguês da casa!” (p. 27).
Miranda expressa a sua desilusão, a frustração das expectativas que o levaram ao Brasil, e inveja a riqueza e a liberdade de João Romão. Mas a verdade é que, ainda assim e ainda que esteja fisicamente muito próximo do cortiço, Miranda observa essa ambiência a partir do seu sobrado, de uma posição física e socialmente superior. Constatando que não consegue competir em riqueza, Miranda forma um novo ideal: a conquista de um título. Sim! Um baronato. Isso o diferenciaria do “pobre” vendeiro e o alçaria definitivamente a uma condição de verdadeira superioridade. João Romão, por sua vez, inveja a classe e as regalias com que Miranda aproveita a vida, sem aparente esforço. As idiossincrasias dos personagens portugueses, novos moradores do Brasil, que aqui vieram para fazer fortuna, mostram como isso se dá a partir da exploração dos grupos menos favorecidos (os brasileiros marginalizados), cujo recorte de trama social tão bem representa a sociedade carioca do século XIX e marca as fronteiras entres espaços e lutas, entre periferias e centralidades sociais.
Com efeito, o cortiço funciona na obra como sinédoque que ilustra todo o processo de crescimento da capital. Pela mão de um narrador omnisciente, o leitor acompanha a conceção, o crescimento e as alterações sofridas pelo cortiço ao longo do tempo. O excerto com que abrimos esta página refere-se aos seus primórdios, isto é, ao momento em que o vendeiro João Romão percebe que a expansão da cidade e a chegada de trabalhadores de vários pontos do país e da Europa constituem uma oportunidade de negócio. O português encontra na resposta às necessidades básicas desses trabalhadores uma forma de enriquecer. Assim, cria emprego para os homens, adquirindo uma pedreira; providencia alojamento barato, construindo o cortiço (também referido como estalagem); atende às necessidades de alimentação, abrindo uma venda e uma casa de pasto; e cria uma lavandaria no pátio, cujas tinas aluga às mulheres que ali habitam e sobrevivem como lavadeiras.
Foto: Augusto Malta/Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1890, pp. 43-44.
Foto: Augusto Malta/reprodução
A paisagem se compõe afinal de partes que não são meras “coisas”, pois a elas as pessoas atribuem significados. O componente humano as dota de valor e as constitui enquanto tal. É o que acontece com O cortiço de Aluisio de Azevedo quando objetos, coisas, estrutura físicas (casas, tinas, bicas, pátios, casa de pasto, pedreira) sofrem a atuação dos sujeitos, personalizando-os. Assim é a paisagem nesta obra: uma ação não ingênua e não casual, que se constrói a partir de um encadeamento lógico de acontecimentos de ordem histórica e social e de uma diversidade de comportamentos, costumes e valores que proporcionam a contínua modificação da paisagem e nos permitem a compreensão daquela sociedade, retratada no espaço de um cortiço carioca.
À semelhança de qualquer outro espaço urbano, o cortiço é um mundo ruidoso de imagens e sensações. O olhar do narrador revela os seus habitantes num “zumzum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas.” (p. 44). Ouvimos os sons que produzem, sentimos os cheiros que emanam, visualizamos a cor dos lençóis estendidos ao sol, das peles de homens e mulheres, e quase sentimos as suas texturas. Adivinhamos os sabores dos “refugados de carne fresca” (p.81), do zorô, do vatapá e das pimentas (p. 85). O narrador desvenda meticulosa e detalhadamente o interior do cortiço: os espaços, os seus habitantes e as respectivas culturas, os vícios, as formas de lazer, ambições, preocupações, amores e desamores. A paisagem faz-se de espaço, de lugares, de objetos, mas também de vida, de movimento, de emoções e de sensações. Assim, mais do que um recorte da paisagem física do Rio de Janeiro em finais do século XIX, a paisagem em O cortiço “é um fenômeno holístico que não cria divisões desnecessárias entre cultura/natureza, humano/não humano, individual/coletivo, percebido/físico e assim por diante” (Lindström, Palang e Kull, 2013: 104, tradução nossa). É um fenômeno transformado em experiência que resulta, por um lado, de uma descrição detalhada do espaço físico: da localização, da configuração e, até mesmo, dos materiais usados na construção. Por outro lado, e em grande medida, é o resultado da descrição minuciosa das paisagens humana e sensorial (olfativa, tátil, gustativa, visual e sonora, Malanski, 2011). Ou seja, uma paisagem que “[f]ala connosco através de todas as fibras do seu ser” (Landry, 2012: 5, tradução nossa) e que apreendemos com todas a fibras do nosso ser.
De acordo com o narrador, “durante dois anos o cortiço prosperou de dia para dia, ganhando forças, socando-se de gente” (p.26), “vagava uma das casinhas, ou um quarto, um canto onde coubesse um colchão, surgia uma nuvem de pretendentes a disputá-los” (p.27). É, portanto, um espaço superlotado, povoado por caixeiros, pedreiros, ferreiros, vendedeiras, taberneiros, macaqueiros, cavouqueiros, carroceiros, canteiros, quebradores de pedra, lavadeiras e amas de leite (brasileiros, italianos e portugueses), bem como pelas inúmeras crianças que ali nascem. Uma reprodução numerosa que confirma a incapacidade de refrear os instintos mais básicos, amplamente retratada nesta obra. Um sublinhar da animalidade do ser humano, próprio da estética naturalista: da volúpia incontrolável, da promiscuidade (com representações inéditas no romance brasileiro da homossexualidade masculina e feminina), de uma quase total incapacidade de dominar os ímpetos perante a sensualidade tropical dos corpos, da música e da dança. Através do olhar do narrador, o leitor é confrontado com um torvelinho de ações, emoções e sensações que ocorrem num ambiente próprio das teorias darwinistas, já que o cortiço é apresentado como um meio no qual a violência e a luta pela sobrevivência são permanentes. Resistem apenas os mais fortes, quer fisicamente quer porque a sua beleza lhes confere poder sobre os demais. À semelhança do que sucede com a paisagem física, também a humana apresenta centros e periferias, como referimos acima, sendo que os homens mais fortes ou mais ricos e as mulheres mais belas e jovens formam o centro. Neste recorte da sociedade vemos como centros e periferias mudam de posição em função de se enriquecer ou de se empobrecer, de se obter um título nobre, de se ganhar ou perder uma briga, e de se ser ou deixar de se ser objeto de desejo.
Para além da luta individual do Homem pelo centro dentro de uma comunidade, na obra de Aluísio Azevedo sobressai a disputa entre culturas. De facto, se inicialmente há um claro domínio da cultura portuguesa, se são os casais portugueses que têm a primazia, se é o cheiro da comida lusa que se sente no ar, se são os hábitos, a religião, a saudade e a memória do país de origem que se sobrepõem, em determinada altura Portugal passa a ser apenas a lembrança de um passado distante. Em O cortiço, a assimilação do imigrante pela cultura local é paralela ao processo de abandono da herança lusa. Os portugueses vão-se abrasileirando e o cortiço vai deixando de ser uma paisagem povoada por estrangeiros e marcada pelas culturas dos imigrantes:
Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1890, p. 297.
A figura de Jerônimo simboliza esta metamorfose dos homens e do cortiço. Apaixonado por Rita Bahiana que “tem o aroma quente dos trevos das baunilhas” (p.109), Jerônimo abandona a mulher, a virtuosa Piedade de Deus, na qual passa a reconhecer apenas o “cheiro azedo do corpo” (115). Com Rita, Jerônimo adquire um novo gosto por tudo o que é brasileiro: a música, a dança, a comida, a bebida. Mas é perdido nessa recém-descoberta luxúria que se faz “preguiçoso, amigo das extravagancias e dos abusos” (297), que se lhe vai o “espírito da economia e da ordem” (297) e que acaba por destruir o sonho de enriquecer com que abandonou Portugal.
A decadência moral de Jerônimo e dos demais personagens levará à degeneração e derrocada do cortiço. O incêndio que o devasta é aproveitado por João Romão, sempre focado em seus negócios, para uma remodelação total, aumentando o número de habitações no mesmo espaço. Qual fénix renascida das cinzas, ergue-se agora na Avenida São Romão a Estalagem de São Romão e o novo sobrado do português:
Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1890, p. 308.
Foto: https://bairrobotafogo.com
Foto: Instituto Pereira Passos/César Duarte.
Foto: Pedro Kirilos/Riotur.