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O Bom-Crioulo
O Bom-Crioulo de
Adolfo Caminha
Aleixo era uma terra perdida que ele devia reconquistar fosse como fosse
CAMINHA, Adolfo. Bom-Crioulo.
Rio de Janeiro: Artium, 1997 (1ª Ed. 1895), p. 124.

Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles (circa 1890)
O olhar do autor volta-se a um passado até então recente. Cerca de vinte anos antes da primeira edição do livro, Pedro II ainda era imperador e a República não passava de uma possibilidade no vasto horizonte de expectativas que se formava no cenário político nacional. Naqueles anos de declínio e queda do Império, que ambientam a história contada por Caminha, Amaro e Aleixo vivem um romance entre o alto-mar e as ruas do centro carioca. Ambos integram a Marinha do Brasil, instituição centenária, onde as relações homossexuais eram mais comuns do que o leitor conservador poderia imaginar.
Amaro, mais conhecido como Bom-Crioulo, é um homem, negro e liberto, na faixa dos 30 anos, descrito como “uma dessas organizações privilegiadas que trazem no corpo a sobranceira resistência do bronze e que esmagam com o peso dos músculos”. O perfil apresenta uma personalidade dividida entre a boa índole – que justifica o apelido –, e o instinto supostamente violento de sua raça, segundo o pensamento racista dominante no século XIX, também adotado pelo autor.
Aleixo, por sua vez, é um grumete, branco e livre, de aproximadamente quinze anos. O “belo marinheiro de olhos azuis” nasceu em Santa Catarina no seio de uma “pobre família de pescadores”. Seus traços adolescentes chamam a atenção do Bom-Crioulo, rapidamente atraído por essa aura alegre e ingênua de Ganimedes.
Apesar da condição de pobreza em comum, Amaro e Aleixo conviviam com um abismo intransponível: a diferença da cor de pele, outro contraste fundacional da sociedade brasileira, também capturado pela pena naturalista de Adolfo Caminha.
Alguns elementos do enredo desse livro se misturam com a vida pessoal do autor. Adolfo Ferreira Caminha nasceu em Aracati, no Ceará, em 1867, e morou boa parte de sua vida na cidade do Rio de Janeiro, onde morreu em 1897. O cenário carioca lhe era, portanto, bastante familiar, o que se manifesta nas referências detalhadas da Baía de Guanabara e das ruas do centro da cidade, entremeadas na ficção. A morte desse jovem de vinte e nove anos foi causada pela tuberculose, doença que acometeu sua geração e que aparece, de certa forma, representada na saúde frágil do personagem-título. Aos dezesseis anos de idade, Caminha ingressou na Escola Naval, a mesma em que seus personagens principais se graduaram. É possível que a experiência como embarcado tenha inspirado as páginas desse romance, ainda que por ressonância, pois não há indícios biográficos de que o autor tenha se relacionado com outros homens. A propósito, sua vida amorosa foi marcada por uma sequência de atribulações, das quais se destaca o relacionamento que manteve com a esposa de um oficial do Exército brasileiro.

No enredo, o desejo reprimido de liberdade é o que movimenta o protagonista. Aos dezoito anos, Bom-Crioulo, até então escravizado numa fazenda de café, decide fugir. Torna-se, no mar, um homem livre. Outro contraste se forma aos olhos do leitor quando “fazenda” e “mar” simbolizam, respectivamente, aprisionamento e emancipação.
O medo que ele sentia de voltar à antiga rotina de trabalhos forçados no meio rural não era injustificado, visto que a escravidão estruturava economicamente aquela sociedade e os processos de reescravização eram bastante comuns na época.
À medida que se afasta da fortaleza – última fronteira da terra firme –, recuada à direita, em primeiro plano, Bom-Crioulo vai encontrando uma calmaria de sensações nunca antes experimentadas. A linha do horizonte, retilínea e tranquila, se contrapõe à agitação do mar, que arrebenta vorazmente nas pedras da encosta. O movimento das águas parece espelhar a sua condição mais íntima, de quem encontra na distância o caminho desejado.
No mesmo dia foi para a fortaleza, e, assim que a embarcação largou do cais a um impulso forte, o novo homem do mar sentiu pela primeira vez toda a alma vibrar de uma maneira extraordinária, como se lhe houvessem injetado no sangue de africano a frescura deliciosa de um fluido misterioso. A liberdade entrava-lhe pelos olhos, pelos ouvidos, pelas narinas, por todos os poros, enfim, como a própria alma da luz, do som, do odor e de todas as cousas etéreas… sobretudo o ambiente largo e iluminado da baía: enfim, todo o conjunto da paisagem comunicava-lhe uma sensação tão forte de liberdade e vida, que até lhe vinha vontade de chorar, mas de chorar francamente, abertamente, na presença dos outros, como se estivesse enlouquecendo…
CAMINHA, Adolfo. Bom-Crioulo.
Rio de Janeiro: Artium, 1997 (1ª Ed. 1895), p. 38 (grifos meus).
Não há paisagem sem sujeito e o Narrador entende essa premissa. Por si só, o espaço da Baía de Guanabara jamais significaria liberdade, não fosse a presença humana a lhe atribuir tal sentido. É a memória recente do cativeiro que ativa o contraste sensorial e nos permite sentir, com o personagem, a luz, o som, o odor “e todas as coisas etéreas” do homem livre. A experiência conjunta e algo sinestésica do sujeito rodeado pelas águas se dá por meio da linguagem, ferramenta da comunicação sem a qual o pensamento permaneceria íntimo, solitário, no mesmo lugar do choro de alívio que o Bom-Crioulo decide conter para não assustar os demais. Ao fim e ao cabo, toda a experiência permanece individual.
Esse primeiro contato com a liberdade, entretanto, não é absoluto. O estigma, uma vez impingido ao Bom-Crioulo pela cor de sua pele, o acompanha também na vida de marinheiro. Os trabalhos forçados e os castigos físicos a que era submetido, bem mais rigorosos que os de seus colegas brancos, revelam o racismo que dá origem à Marinha do Brasil. A denúncia encampada por Adolfo Caminha nas páginas sanguinolentas do romance parece capturar o espírito de indignação que culminaria, anos mais tarde, na Revolta da Chibata. Uma coincidência não deve passar despercebida pelo olhar do leitor mais atento: o ano de publicação do romance (1895) é o mesmo do alistamento de João Cândido Felisberto. Caminha morreu antes de presenciar os acontecimentos que suspenderiam a rotina da capital carioca, não sem deixar o legado de suas letras, que já apontavam o caminho incontornável de sangue, se pavimentado pela violência institucional.
A chibata, instrumento de tortura citado exatas 15 vezes ao longo do romance, causa tanta dor física e moral ao Bom-Crioulo que, passado algum tempo após o primeiro contato com o mar, ele enxerga semelhança entre a Marinha e o cativeiro. Ainda assim, voltar à fazenda seria um contraste muito maior e, por isso, impensável. Afinal, até mesmo a escravidão, instituição nefasta por natureza, permitia que sujeitos escravizados adotassem estratégias de sobrevivência a partir das gradações da violência. Entre o mar e a fazenda, Bom-Crioulo optou pelo primeiro. Do mesmo modo, muitas famílias afrodescendentes, submetidas aos violentos cafezais brasileiros, temiam o ainda mais violento Deep South americano – casos lamentáveis em que a noção de “menos ruim” faz sentido na prática.
Apesar de tudo, tamanha é a liberdade encontrada no mar que, ali, Bom-Crioulo e Aleixo se permitem viver uma noite de prazer. A paixão arrebatadora que o mais velho sente pelo efebo se consuma numa maca à proa do navio, lugar possível e nada ideal. Nem o tempo frio impede uma calorosa aproximação entre os dois, que, muito embora apaixonados, jamais abandonariam o fardo da culpa que sentiam. É o efeito da heteronormatividade e da branquitude; sistemas que, entrelaçados, sufocam esse relacionamento proibido entre um negro e um branco. Naquela noite, o caráter delituoso do ato lhes impõe uma dose de urgência misturada com euforia. A pressa com que Aleixo murmura ao ouvido do amante precede a volta que (ainda hoje) muitos homens precisam dar para amar dentro e fora da cama.
– Ande logo! murmurou apressadamente, voltando-se. E consumou-se o delito contra a natureza.
CAMINHA, Adolfo. Bom-Crioulo.
Rio de Janeiro: Artium, 1997 (1ª Ed. 1895), p. 57 (grifos meu).

Marc Ferrez/Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles (circa 1885)
Uma bela manhã de sol sucede aquela noite. Aos poucos, a paisagem ganha novos contornos na transição gradual do mar para a terra. Sobre as mesmas águas da Guanabara, agora tranquilas como as de uma lagoa, Bom-Crioulo se depara com novos empecilhos à sua já condicionada liberdade. A fortaleza concretiza o passado, à esquerda, de onde o caminho convencional do olhar segue a linha do horizonte até chegar na fina camada de areia branca da praia. A rocha humana, geométrica, mistura-se à do Pão de Açúcar, curvilínea, esculpida pelo mesmo vento que atravessa os poros do sujeito observador. A olho nu, o espaço permanece inalterado; o que mudou foi a perspectiva, espelho literal daquela bonança que só os apaixonados entendem. O ponto de retorno, entretanto, não é exatamente o mesmo da origem. Já se passaram alguns bons anos desde a fuga do cativeiro e o nosso protagonista, agora acompanhado, apresenta ao grumete os principais pontos daquela paisagem urbana que vai se desvelando no ritmo das ondas que conduzem à praia. Seu tom é um tanto professoral:
Lá estava bem defronte, por bombordo, o Pão d’Açúcar, talhado a pique, sombrio, íngreme, batido pelas ondas, guardando a entrada; e mais longe, para o sul – termo final de uma espécie de cordilheira primitiva e bronca – cocuruto da Gávea, cinzento, dominando o mar… E foi indicando, um a um, com exclamações de patriotismo, os acidentes da entrada, os edifícios: as fortalezas de S. João no alto, e de Santa Cruz à beira-mar, olhando-se com a sua artilheria (sic) muda; a Praia Vermelha, entre morros; o hospício; Botafogo… Tudo aquilo, dizia ele abarcando, com um gesto largo, morros e casas, tudo aquilo é a cidade de Niterói, ouviste falar?
– Não…”
– Pois é ali.
CAMINHA, Adolfo. Bom-Crioulo.
Rio de Janeiro: Artium, 1997 (1ª Ed. 1895), p. 59-60 (grifos meus).

Marc Ferrez/Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles (circa 1880)
Os elementos daquela paisagem tipicamente carioca, cartão-postal do mundo, anunciam o desembarque tão esperado do menino Aleixo, que pisaria na capital pela primeira vez. Antes de desvirginá-lo, pela segunda vez, Bom-Crioulo precisa atravessar um velho conhecido portal: o cais Pharoux (atual estação das barcas Rio-Niterói). Movimentado, o lugar torna-se palco das suas brigas, notoriamente conhecidas pelos habituais pedestres das redondezas. Esse entre-lugar, próprio da natureza fronteiriça de um cais, funciona como um novo ponto de encontro do sujeito com a terra. Não se trata mais do cafezal de outrora, cujo horizonte – rural, pacato e violento – contrasta com a paisagem urbana – dinâmica e não menos violenta.

Georges Leuzinger/Acervo Instituto Moreira Salles, 1865
É nesse mesmo lugar do cais que a paisagem descrita por Caminha foge ao modelo pictural na medida em que prefere o dinamismo das ações humanas ao das edificações urbanas ou das condições meteorológicas. Os sons barulhentos que emergem da movimentação naquele porto carioca – mais um contraste com o silêncio contemplativo da baía –, são despersonalizados ao ponto de formarem um todo amorfo, que parece mesmo uma extensão do pensamento aflito do protagonista, tal qual a linha do horizonte fotografado, onde o Pão de Açúcar, à direita, se mistura a
uma multidão de escaleres e lanchas conduzindo oficiais de marinha e senhoras, que acenavam para bordo – aqueles em uniforme de ‘visita’, espada e luva branca, afetando autoridade, aprumando-se no paineiro (sic) com essa desenvoltura natural dos homens do mar; aquelas em toilettes de verão, muito rubras de sol.
CAMINHA, Adolfo. Bom-Crioulo.
Rio de Janeiro: Artium, 1997 (1ª Ed. 1895), p. 62.

Marc Ferrez/Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles, 1890
A dimensão psicológica da paisagem reforça a presença indispensável do sujeito. O barulho do cais apenas anuncia a aglomeração urbana que se formava naquele final de século. Na cidade, destino inescapável do Bom-Crioulo, para onde ele parece voltar invariavelmente até o fim de sua vida, o outrora imenso vazio do mar assume o pano de fundo, tímido, mas sempre na linha do horizonte. Outros elementos passam a compor a paisagem que condiciona os personagens, dos quais se destaca o clima quente do verão, bem diferente do vento frio que embalou aquela noite em alto-mar. Dona Carolina – “que não se podia com o calor de dezembro!” – é outro elemento, humano, próprio da paisagem urbana. Mulher portuguesa, dona de uma pousada no centro, é uma antiga conhecida do Bom-Crioulo; figura decisiva para toda essa trama que, somente nas ruas, começa a se desenrolar.
(…) ao mesmo tempo que seu espírito voltava-se (sic) todo para o sobradinho da Rua da Misericórdia, onde àquela hora D. Carolina encharcava-se num magnífico banho frio de chuveiro.
CAMINHA, Adolfo. Bom-Crioulo.
Rio de Janeiro: Artium, 1997 (1ª Ed. 1895), p. 84 (grifos meus).
O observador agora está na rua da Misericórdia. Aquele emaranhando horizontal de casarões e ruas estreitas retrata o espírito urbano da segunda metade do século XIX, época em que os jornais impressos passaram a ocupar um papel central na comunicação da única metrópole brasileira até então. É bem verdade que essa comunicação ficava restrita aos pouquíssimos leitores, em sua maioria, brancos e homens, cerca de 0,08% da população total, segundo dados obtidos pelo censo de 1870. O Brasil, afinal, era um país de não-leitores; retrato da desigualdade sociorracial de uma nação fundada no regime escravocrata essencialmente patriarcal. Considerando esse contexto, os casos criminais eram um sucesso entre aquele seleto público e ficavam registrados nas folhas dos periódicos. O espaço dedicado aos inquéritos e aos processos criminais cresceu nos editorais que passaram a prestigiar os faits divers, seduzindo seus leitores para acontecimentos macabros.
Tudo indica que D. Carolina seja uma consumidora assídua dessas páginas soturnas. A certa altura, um pensamento seu apronta o leitor do romance para o destino dos personagens. Uma sensação generalizada de medo, causada pelos crimes cometidos nas ruas da cidade, toma conta do ambiente, quando
Assaltaram-lhe ideias horrorosas de crimes, homicídios, de sangue; relembrava casos que tinham alvoroçado o Rio de Janeiro, casos de ciúme, de traições… Na Rua do Senhor dos Passos um sargento esfaqueara uma pobre “mulher da vida”; encontrara-a com outro… A polícia correu ao lugar do sinistro, mas o assassino, como era noite, evadira-se, deixando o cadáver da rapariga crivado de golpes, rubro de sangue. Lembrava-se também de outro caso medonho; fora na Rua dos Arcos: o assassino cortara a mulher em bocados como se esquarteja uma rês.
CAMINHA, Adolfo. Bom-Crioulo.
Rio de Janeiro: Artium, 1997 (1ª Ed. 1895), p. 115 (grifos meus).
Sem revelar o motivo do suspense que ronda as ruas cariocas no final do livro, a formação da paisagem urbana permite algumas conclusões. De um modo geral, naquelas que talvez sejam as páginas mais pungentes do Naturalismo brasileiro, a sina do Bom-Crioulo não permite ilusões: a liberdade do mar, que preenche os primeiros capítulos com uma esperança luminosa, é passageira e encontra na terra firme seu contraste mais sombrio. As ondas não vêm mais do balanço das águas, mas da turba de pedestres. O vaivém das águas ressoa no movimento pendular dos seres humanos, indiferentes. A última volta do Bom-Crioulo é o cumprimento do seu destino, coerente com a narrativa naturalista que faz seu autor reconhecido até os dias de hoje. Para todos os lados da cidade, a pena pessimista de Caminha desenha o romance como um lugar metafórico, não raramente inalcançável.