A fuga pelas ruas do Rio de Janeiro no romance A mulher que fugiu de Sodoma
A fuga pelas ruas do Rio de Janeiro no romance A mulher que fugiu de Sodoma de
José Geraldo Vieira
VIEIRA, José Geraldo. A mulher que fugiu de Sodoma. [1931]
5 ed. Belo Horizonte: Editora leitura, 2008. p.125
José Geraldo Manuel Germano Correia Vieira Machado da Costa ou simplesmente José Geraldo Vieira, que hoje é um escritor esquecido, encantou inúmeros leitores com sua prosa, no período entre 1931 e 1977, tendo seus livros alcançado tiragens de até 45 mil exemplares.
Em seus romances ecoam os elementos da belle epóque e do art noveau e em sua linguagem, ao misturar elementos do léxico local com o internacional, vemos uma narrativa moderna e metropolitana. Todavia o que mais nos salta aos olhos nos romances de José Geraldo Vieira é a relação que ele mantém com as cidades, o espaço onde situa as suas narrativas. Para todos, existe uma “cidade da memória” que é aquela que criamos a partir de nossa vivência e que se mistura muitas vezes com imagens do cinema, fotografias e cartões postais. Essa cidade construída por essas imagens reflete não só a si mesma como também as pessoas que nela habitam as quais, por vezes, são os verdadeiros personagens das histórias e constituem a “cidade real”. Em A mulher que fugiu de Sodoma, é a “cidade real”, o Rio de Janeiro em 1931, que vai ser mapeado na fuga da personagem Lúcia, o que faz com que o leitor se sinta um flâneur pelos espaços que surgem no texto, tamanha a verossimilhança da narrativa, que pode nos servir até mesmo de guia para descoberta de alguns lugares do Rio de Janeiro.
Esse primeiro livro de JGV foi publicado em 1931, teve quatro edições, chegou a ser traduzido no exterior, em Buenos Aires em 1947 e teve a última edição no Brasil em 2008. No romance em foco, A mulher que fugiu de Sodoma, o escritor traz à baila um dos grandes vícios humanos: o jogo a dinheiro. Esse é o pano de fundo de uma narrativa questionadora e reflexiva, que dentre outros assuntos fala de casamento, amor, sedução, dinheiro, boemia, arte, viagem, amizade e compaixão. Uma variedade de temas que move a trama de suas narrativas tão populares em sua época.
Podemos dizer que, em seu tempo, JGV foi um dos autores que mais retrataram o espaço urbano do Rio de Janeiro, ainda mais num momento em que se iniciava a narrativa regionalista. Mas não só, trata-se de um autor que de fato ambienta suas histórias pelas ruas em que passa, sejam elas no Rio, em São Paulo ou em cidades de outros países, ruas percorridas também por seus personagens. De fato, é um autor que torna a paisagem narrada uma espécie de personagem que participa da ação dramática do texto.
O romance começa com um casal: Mário, médico recém-formado e Lúcia, sua mulher. Ambos são filhos de famílias de classe média alta. Ele é de uma família de nobres decadentes; ela, órfã de mãe, descende de fazendeiros. A vida do casal era normal, sem muitos privilégios e riquezas. Viviam no bairro de Laranjeiras, na zona sul do Rio. A vida de classe média segue equilibrada até quando Lúcia toma conhecimento do vício do marido: o jogo. Isso ocorre quando ele pega uma grande soma de dinheiro de um amigo para depositar e, ao invés de fazê-lo, joga e perde todo o dinheiro. Lúcia, tentando salvar o marido da desonra, sai em busca da ajuda dos amigos para saldar a dívida.
Rua das Laranjeiras (entre Soares Cabral e Leite Leal).
Reprodução: Nireu Cavalcante
Nessa busca desesperada por uma solução, o autor retrata minuciosamente os ambientes e trajetos dos personagens. Há um mapeamento dos espaços que impressiona, tamanha a riqueza de detalhes e definição. É como se o autor estivesse com fotos de lugares em mãos e os descrevesse detalhadamente. As ruas da cidade, sua arquitetura, lugares pobres ou ricos são descritos com cores vivas e realistas, que, no entanto, não ofuscam a visão dos personagens que por elas transitam, e nem são vistas apenas como meros espaços de passagem. São, de certa forma, humanizadas, ao fazerem parte de uma existência. Para o leitor, a descrição do espaço e a montagem das cenas de cada capítulo se integram muito bem ao contexto e à forma de narrar. O Rio de Janeiro, com os bairros das Laranjeiras, Botafogo e Centro, e Paris são as duas cidades que dominam na narrativa.
No início do romance, Lúcia ao saber da dívida do marido faz um verdadeiro périplo em busca de dinheiro, pede a todos que conhecia e, humilhando-se, ela trafega pela cidade. Vai à casa de amigas ricas, assiste à missa na igreja de Nossa Senhora do Parto, depois da missa toma um carro com a amiga:
Interessante perceber que, na primeira fase do romance, enquanto o problema não se resolve, os capítulos separam a trajetória de Lúcia e a de Mário, o que ela faz para salvá-lo e como ele age com seu vício.
Depois de ir com a amiga de casa em casa pedindo dinheiro aos mais íntimos, ela chega ao Largo do Machado. Nesse momento, a paisagem se torna mais humana como em vários outros momentos, ou seja, o romancista constrói sua narrativa tendo por base a paisagem real da cidade e a outra paisagem, a humana. Assim juntas, as duas paisagens dão o tom dramático ao enredo:
O parágrafo descrito traz para narrativa a modernidade que toma conta da cidade, principalmente quando mostra a incipiente sociedade de consumo que começa a se desenvolver. Entretanto, também podemos vislumbrar os problemas que aparecem com esse desenvolvimento tais como o trânsito confuso de veículos, os camelôs que lotam as ruas sem deixar passagem, a poluição sonora, entre outros.
Mas não só a paisagem da urbe seduz o narrador, também a paisagem humana, aqueles que habitam e vivem a cidade são descritos. E os atores sociais mais interessantes são fotografados verbalmente pelo o narrador;
Diante do relato, chama nossa atenção, também, os posicionamentos um tanto críticos a respeito do país, como referir “turismo em terra de febre amarela”.
Recorrendo a todos, sem grande sucesso, correndo pela cidade a pé ou de carro, Lúcia se lembra de uma amiga de colégio que havia se casado com um milionário, Nuno Almada. Nesse momento, esse contato, que será a sua salvação e a do marido, será também o que trará novos elementos para o resto do romance, que se passa em Paris.
Na segunda parte do romance, depois de separada do marido, Lúcia passa a trabalhar como preceptora da filha do casal Almada, para pagar o empréstimo e Mário vai para o interior do Brasil e depois para Paris. É em Paris, cidade da luz e da magia, onde se dará o calvário de Mário. Essa cidade, podemos dizer, possui dois focos: um colorido e um preto e branco. Uma Paris luminosa e rica, de cafés e boemia contrasta com os guetos e submundo da prostituição e do jogo, onde Mário encontra os tipos mais esquisitos: jogadores, trambiqueiros, estivadores, marinheiros, gente sem caráter que vive de dar golpes, mas que também mostra certa solidariedade humana, diferente do lado burguês a que Mário estava acostumado. Entretanto, podemos perceber que, mesmo sendo pessoas de um nível diferente de Mário, essas pessoas o ajudam a sobreviver, dividindo por vezes até o prato de comida. Mário, às vezes, se mantém dono de certa soberba que aos poucos vai perdendo ao longo de seu sofrimento. Seu caráter também parece dúbio em certos momentos, quando ele se exalta por não ter dinheiro e ser humilhado por Delhorme, que o faz a mando de Nuno Almada. Ou seja, todos os paradoxos da alma humana doente ou não são contemplados pelo autor.
O enredo dessa segunda parte insere também elementos de artes plásticas. Pinturas que representam o momento de vida do personagem tais como os dois quadros: A Descida da cruz de Ribera e A Fuga de Lot de Rubens, que se juntam numa interpretação com viés bíblico da própria narrativa. Dessa forma, ao inserir esses quadros, o narrador traz mais um potente elemento para a interpretação do romance. Sodoma não será apenas a cidade da pintura de Rubens, mas todo o contexto a que pertencem os personagens. Para Lúcia, a cidade bíblica é representada pela casa do milionário Nuno Almada, onde vai morar para pagar a dívida. Para Mário, a cidade bíblica é Paris de onde ele tenta fugir, mas não consegue. Podemos dizer que a presença das artes plásticas na narrativa é recorrente na escrita desse autor. De certa maneira, JGV apropria-se das figuras já conhecidas imageticamente, trazendo-as para suas narrativas, o que vai ajudar ou conduzir a interpretação do leitor, a depender do seu repertório artístico.
O romance finaliza de maneira ainda surpreendente. Ao saber da morte de Mário, Lúcia descobre a trama planejada contra ele. Toda a história da dívida, do curso em Paris, responsável pela mudança dele, e os outros acontecimentos em torno disso, tinham sidos arquitetados por Nuno Almada, para que pudesse se aproximar de Lúcia. Por fim, ela termina fugindo mais uma vez, quando sabe a verdade.
Para o leitor atento às paisagens, chama a atenção a primeira e mais forte cena que se descreve ao final da primeira parte do livro: quando Lúcia consegue o dinheiro com a amiga mais rica, mulher de Nuno Almada, paga a dívida do marido, mas o abandona. A cena mostra, no Rio de Janeiro, a rua das Laranjeiras inundada depois de uma forte chuva que lava a alma da protagonista. É possível acompanhar a descida de Lúcia por toda rua até o Café Lamas: