Caminhar por jardins e praças de Lisboa: as estátuas na poesia de
Inês Dias
um coração com urgência
de anjo exausto,
todo o sangue emparedado
da mais solitária personagem
neste nosso romance
com nome de jardim.
DIAS, Inês. In Situ. Lisboa: Língua Morta, 2012, p. 40-1.
Mapa de Lisboa e percurso de In Situ
A paisagem examinada no espaço urbano difere da paisagem natural ou rural, não somente pela alteração visual e estética, mas pela alteração da percepção de sentidos do sujeito que experimenta a cidade ativamente. Isso se deve ao fato de esse sujeito estar condicionalmente fadado à aceleração do mundo em que vive. Produzido pelo processo de industrialização, esse aumento constante de velocidade faz o sujeito contemporâneo estar cercado de informações, luzes, telas, outdoors, ruídos e sons. Deste modo, a contemplação do espaço urbano está subordinada à sobrecarga de informações, que ocasiona o entorpecimento dos sentidos. O ensaísta francês Michel Collot, estudioso da filosofia da paisagem, destaca que a alteração geográfica produzida no espaço urbano exerce uma barreira entre o “real” e o que dele é representado. Desta forma, o crescimento dos centros urbanos é um fator responsável pelo comprometimento da percepção. A partir daí surge o que vai se configurar como paisagem urbana.
O livro de poemas de In Situ, de Inês Dias, é dividido em três partes distintas, como livros independentes. O ponto que talvez os faça parecer independentes é o mesmo que os une: em cada uma das três partes são abordados diferentes lugares, que funcionam como alegorias, e permitem ao eu lírico se inscrever na paisagem por meio de diferentes linguagens e pontos referenciais. Na primeira subseção, “A morte”, somam-se nove poemas com temática da morte não substancial, alegorizada pelo sentimento esvaziado ou já desgastado por relações efêmeras e cotidianas do sujeito na contemporaneidade. A memória e a morte compõem aqui uma dupla potência: de um lado há vida corporal de “pele”, “osso”, “olhos” e, por outro, há a ausência de sinais vitais no escopo de palavras relacionadas ao corpo humano, aludindo a uma forte presença da ideia de morte. O sujeito lírico é marcado pela perda do rosto, do corpo e do tempo, assim como, de igual modo, seu rosto também desaparecerá na multidão, indicando as inquietações do eu lírico tão basilares ao sujeito contemporâneo. Essa conexão com o vazio transmite o sentimento de perda figurada em maior grau na última parte “As últimas flores distanciam-se” e, como um ciclo, é o regresso à primeira parte, “A morte”.
Em “E as estátuas”, na segunda subseção de In Situ, podemos dizer que há uma experimentação urbana, centralizada, geográfica e bem referenciada nos jardins e praças públicas de Lisboa. A referências geográficas são localizáveis no mapa de Lisboa e encontram-se já referenciadas abaixo dos títulos, sempre entre colchetes e datadas com o ano de inauguração das estátuas. Há, nos títulos de cada poema, uma visualização ecfrástica das estátuas em diálogo com os poemas.
No entanto, devemos nos perguntar onde termina a escultura e começa a poesia. Ao que tudo indica, as linguagens verbais e não verbais estão imbricadas como partes de um conjunto. Além disso, levando em conta uma leitura dotada dos referentes ecoados pela historicidade da cidade e das estátuas, deixam-se entrever, no poema, as nuances que põem o domínio discursivo do sujeito entre o coletivo e o individual. Há, portanto, na tecitura textual, a confluência de memórias históricas e afetivas, produzindo, assim, o entrelaçamento entre o sujeito e a paisagem. Para Collot, essa dicotomia entre o tempo e o espaço, além da interação da natureza com a cultura, ocasiona, na paisagem, uma realidade que se articula com a sociedade.
Foi preciso saltar uma estação
inteira, virar um século, dilapidar
mais anos do que Guerras Mundiais
e uma Guerra Colonial seguidas
para derrotar finalmente
o teu sorriso dessa primavera.
À minha frente, sobram-te agora
os dedos com que sentias,
no escuro, as nossas almas ainda plenas;
e não há palavras que garrotem a tristeza
sem mostrares os dentes em falta,
sem eu contar menos um cabelo teu
até ao infinito.
Lisboa é, na poesia de Inês Dias, retratada nos nossos dias atuais do século XXI, na qual verificam-se traços de eventos históricos que marcaram o povo português. No poema “Figuras de criança, rapaz e rapariga – [Parque Eduardo VII, 1965]”, há a passagem do tempo que atravessa “duas Guerras Mundiais / e uma Guerra Colonial seguidas”, fazendo menção tanto às duas Guerras Mundiais quanto às Guerras de Independência das antigas colônias portuguesas na África, só encerradas com a Revolução dos Cravos, em 25 de Abril de 1974. O poema menciona referências como estas e, a partir delas, faz uma mudança no tom, histórico no começo para um tom sentimental, no final já da primeira estrofe, comunicando, assim, a um interlocutor para quem o poema é dirigido. Por conseguinte, é realizada uma passagem dos maiores eventos da humanidade, que nos marcam com a herança da perda, da falta e dos destroços do que restou da guerra, e, desta forma, na “estação” que “foi preciso saltar”, o eu lírico faz movimentar essas memórias, “virar um século” e relacioná-las à sua melancolia e experiência individual de ruína “para derrotar finalmente / o teu sorriso dessa primavera”. Portanto, o poema transcorre por uma viagem temporal, atravessando séculos, até chegar à estação de metrô Parque, a mais próxima do Parque Eduardo VII. A estátua lá encontrada foi posicionada no jardim em 1965, ainda no período da ditadura. A menção ao rapaz e à rapariga abraçados, assim como o sorriso e a primavera do poema, estão em contraposição com o momento histórico no qual a estátua foi posicionada, pois estes elementos ligam-se diretamente com a repressão daquele momento. O impedimento de circulação de pessoas, principalmente de estudantes desacompanhados e a impossibilidade de manifestações afetivas em público são marcas da ditadura, denunciadas pela oposição do abraço enquanto gesto de união e de afeto. Por isso, a harmonia do abraço da estátua e o sorriso da primavera no poema de Inês Dias vinculam-se à ideia de fim de uma era conflitante com a chegada de um novo tempo, ilustrado pelos direitos humanos exposto na estação de metrô Parque, desde 1994. A “primavera” chega para que se possa sorrir no poema, tal qual a Revolução dos Cravos ocorrida na primavera de 1974 pôs fim à ditadura.
A estação representa não somente o lugar de paragem, de encontros e despedidas, ela alude também aos primeiros transportes expressos, que vão renovar a cidade e colocá-la em movimento mais acelerado. Esse transporte faz a vida correr sempre para frente, ficando na memória apenas a lembrança, como ocorre na estrofe seguinte: “sobram-te agora / os dedos com que sentiam, / no escuro, as nossas almas ainda plenas”. Movido pela tristeza que as palavras não conseguem “garrotar”, o eu lírico, portanto, ao olhar a estátua de dois jovens abraçados e ajoelhados, constrói no poema justamente o oposto ao encontro amoroso: a ideia de que até o amor figurado no “teu sorriso” se torna, à medida em que o tempo transcorre, um lugar esvaziado de sentido e de sonhos, ficando “caídos / como as folhas ao canto do jardim”. A paisagem do Parque Eduardo VII é utilizada com certa melancolia para revelar o encontro tardio dos sujeitos amorosos, reforçado no envelhecimento “[d]os dentes em falta” e em “menos um cabelo teu / até o infinito”. Portanto, há o padecimento do corpo como uma espécie de declínio da vida e deterioração no tempo. Os espaços apresentados surgem como locais reflexivos da dor causada pelos afastamentos, sejam eles motivados pela guerra ou pela ditadura, sejam eles relacionados às relações cotidianas atuais. A herança erguida para os sujeitos marcados pelo pós-guerra é sempre uma experiência de ruína.
A questão que move os poemas de In Situ é uma ideia de perda. Há referências muito claras com a História, mas essa noção de algo que se perdeu parece estar relacionada à falha de visão, como ponto de vista e percepção. Ainda que haja um olhar muito atento ao passado e ao presente, esse sujeito sabe que perde por depender de sua própria perspectiva. É, pois, a individualidade dele que o faz obter parte do objeto percebido. Como resultado, a matéria dos poemas nos dá a ver as nuances dessas ausências.
No poema “Adamastor”, que faz referência à estátua aludida ao gigante mitológico no Miradouro de Santa Catarina, faz-se necessário retornar ao mito e às histórias de navegações portuguesas para confrontá-las com o gesto de perda e fracasso:
Regressámos à praia,
esgotada essa série de acidentes
em que o menor foi o amor,
ao contrário do que se previa.
Deixámos a maré subir
na memória, cancelar-nos
a areia sob os pés, levar
até os restos do navio encalhado
que ressuscitava todas as manhãs,
corpo de ossos já limpos.
Podia ter sido o meu.
Somos, afinal, dos últimos:
desafiamos gerações, contando onda após onda
após onda, até o mergulho final
E escrevemos como vivemos,
na espuma ou nos vidros embaciados
da cidade, com a teimosa certeza de que
nada ficará – nós não ficaremos.
A estátua do Adamastor está em um dos pontos mais altos da cidade, de frente para o rio Tejo. Inês Dias não a toma in situ, uma vez que não referencia dentro do poema o lugar onde a estátua está, mas sim in visu porque desenvolve o poema sob a paisagem de uma praia, que será o lugar de acontecimentos históricos e literários, como os de Sepúlveda. Com base nesta praia e na história portuguesa, o poema presentifica a profecia de morte que Adamastor faz n’Os Lusíadas relacionando outros amores ao caso narrado pelo titã.
A primeira estrofe alude ao trágico episódio de naufrágio de D. Manuel de Souza de Sepúlveda, pressagiado pelo ser mitológico no livro de Camões. O corpo enterrado de D. Leonor é referenciado no poema através de “areia sob os pés” e insere um dos acidentes. O outro acidente é no explícito verso “os restos do navio encalhado” , que reflete ao naufrágio e dá origem a essa história.
Existe ainda um terceiro acidente, que é um poco mais implícito, e que vai se mesclando com o tom melancólico do poema à medida em que a leitura vertical dos versos acontece, apresentando na estrofe seguinte um deslocamento: o acidente da morte de Leonor e dos filhos. Sem recursos, eles morrem de fome antes que D. Manuel conseguisse voltar com ajuda. O amor, então, não será salvo diante das adversidades do caminho. Esse acidente em que “o menor foi o amor, / ao contrário do que se previa” está ligado ao tom da morte enunciado em “corpo de ossos já limpos”, diretamente ligado à morte de D. Leonor e os filhos. Por outro lado, também transfere a ideia de tempo já passado. Como um ciclo de vida, o nascer do dia é um mecanismo temporal de renovação: “ressuscitava todas as manhãs”, e o passar do tempo transcorre “contando onda após onda / após onda,” até que chegue o momento da morte: “até o mergulho final”. Assim, como a vida passa com esse exato sentido e ordem, a espera de D. Leonor cursou o mesmo caminho, de ressuscitação da esperança a cada dia, de espera à vista do mar e, por fim, o perecimento. A segunda estrofe do poema pode ser orientada de fato in situ: está o eu lírico na cidade e olha para a História em uma construção visual da “espuma ou nos vidros embaciados”, dando-nos a perspectiva de observador da paisagem tanto do que se vê de fora quanto do que se vê de dentro, pois, mais uma vez, volta-se o eu lírico para a geração na qual se inclui para afirmar: “nada ficará, nós não ficaremos”. O eu lírico e o outro com quem dialoga formam um “nós”, mais um casal amoroso. É, portanto, Inês Dias, mais uma a cantar de modo “Que dous mil acidentes namorados / Faça sentir ao peito que não sente” , como no soneto de Camões. No entanto, sabe que seu amor também se perderá com o passar o tempo. Não é à toa que nas falas de Adamastor n’Os Lusíadas são enumerados os padecimentos de um casal enamorado, com os quais ele se comove:
Outro também virá de honrada fama,
Liberal, cavaleiro, enamorado,
E consigo trará a fermosa dama
Que Amor por grão mercê lhe terá dado.
[…]
Verão morrer com fome os filhos caros,
Em tanto amor gerados e nascidos;
Verão os cafres, ásperos e avaros,
Tirar à linda dama seus vestidos;
[…]
Com lágrimas de dor, de mágoa pura,
Abraçados as almas soltarão
Da fermosa e misérrima prisão.
(Lus., V, 46, vv. 1-4).
(Lus., V, 47, vv. 1-4).
(Lus., V, 48, vv. 6-8).
Apenas quando narra sua má sorte e engano com Tétis, quando o gigante entra em seu segundo ciclo, e cai em “medonho choro”, passa ele de uma figura forte e sobre-humana para um ser enfraquecido pelo amor não correspondido “castigado pelos deuses e metamorfoseado em terra dura e penedos”, como explica Cleonice Berardinelli. A lembrança que a estátua de Adamastor exerce no poema de Inês Dias é relacionada à comoção pelo amor no canto quinto d’Os Lusíadas e à memória do mito português.
Assim como as referências históricas já tratadas, temos ainda no livro de Inês Dias algumas outras que fazem parte da literatura mundial. No poema “Filha de Rei guardando patos [Jardim da Estrela, 1917]”, há a alusão ao conto de fadas de tradição da Europa Ocidental. Nesta história, o Rei ordena a morte de uma de suas filhas por essa comparar o querer que sentira pelo pai ao sal. A menina disfarçou-se de pobre e abrigou-se, então, em uma casa do bosque com um grande lago, onde recebeu como emprego a função de guardar patos. Você já conhecia esse conto? A estátua alusiva a esta filha do Rei fica no centro do pequeno lago no Jardim da Estrela. Lá é possível alimentar os patos e os pássaros que pousam sobre as águas do lago.
FILHA DE REI GUARDANDO PATOS
[Jardim da Estrela, 1917]
Para a minha irmã,
com quem atravessei tantas vezes este jardim
e a vida, sempre.
Já não nos podem tirar nada:
o castelo estava em ruínas
quando o conquistávamos
e da revolução sobrara apenas
a memória doméstica da água cortada,
toda aquela roupa por lavar.
Mas as estações deixavam-se guardar
nos herbários e o futuro rasgava-se
ainda nesse gesto largo, sem muros,
longe do exercício incerto de descer
a calçada mais íngreme.
Estas eram as nossas estrelas –
açaimadas, coxas, vadias.
E não desistimos de as trazer para casa.
O poema inicia com menção a um castelo – que pode remontar à ideia de castelo da história do conto de fadas, a um castelo de areia feito por crianças (como Inês e sua irmã a quem o poema é dedicado), ou ainda retratar o castelo São Jorge. Há no poema, junto ao castelo, a noção de perda “já não nos podem tirar nada” e reconquista: “o castelo estava em ruínas / quando o conquistávamos” . Antes da reconquista cristã, o Castelo São Jorge foi ocupado por mouros. Esse fato aproxima o poema da História.
Ainda seguindo pelo poema, a Revolução dos Cravos é mais uma vez referenciada, mas dessa vez através de um gesto de repressão manifesto em “da revolução sobrara apenas / a memória da água cortada”, referindo-se explicitamente à perda de liberdade de expressão e falta de proteção social que os portugueses sofreram na Ditadura de Salazar, permanecendo algumas casas sem esgoto e com água potável cortada.
Novamente surge na obra de Inês Dias a palavra “estações”, mas desta vez ela designa as estações do ano, pois, ao passar o tempo, é possível catalogar no herbário todas as espécies de plantas e, do mesmo modo, encontram-se no Jardim da Estrela diversas espécies botânicas, como a figueira-da-Austrália e cedro-dos-himalaias.
A íngreme calçada da Estrela nos leva, pela subida, ao Jardim da Estrela, local apresentado neste poema e dedicado à irmã de Inês Dias, “com quem atravessei tantas vezes este jardim”. O poema está relacionando memórias afetivas de vida como o lugar. O conto de fadas referido pela estátua e a memória da irmã remetem à infância do eu lírico associado à poeta.
As alusões às estátuas e aos jardins dos títulos funcionam como mecanismos ecfrásticos dos poemas. Quando apreciados em conjunto, formam uma paisagem, dando a ver tanto seu lado externo quanto interno. Dessa forma, as estátuas representam o lado de fora da paisagem, o mundo e sua carga significativa, enquanto o poema se põe em relação de conjunto com o lugar. A estátua mencionada no poema, por sua vez, apreende uma relação subjetiva entre a reflexão do eu lírico, contemplada pela carga afetiva e emocional e, por outro lado, estabelece uma relação com a memória coletiva portuguesa e ocidental. Portanto, nesse sentido, percebe-se que a paisagem na poesia de Inês Dias é como a entende Michel Collot, tanto interior quanto exterior.
Inês Dias desenvolve muitas memórias a partir da paisagem da cidade de Lisboa. Mesmo com a forte noção de perda apresentada, atenta-se e evoca as individualidades de múltiplos sujeitos, como forma de deixar entrever, na paisagem criada com as estátuas e os poemas, as nuances entre a cidade e os indivíduos que nela habitam. São formas de intercessão entre os significados da cidade comunicados aos sujeitos e o imbricamento do olhar individual com a paisagem.
Tamara Amaral e Eduardo da Cruz