Cidade Solitária: A Lisboa de Fernando Namora
Cidade Solitária: A Lisboa de
Fernando Namora
NAMORA, Fernando. Cidade Solitária.
6a ed. Amadora: Bertrand, 1977, p. 221.
Fernando Namora foi um escritor português, autor de uma vasta obra, muito divulgada e traduzida nos anos 70 e 80. Namora dedicou 50 anos de sua vida ao fazer literário. Cursou medicina, mas a paixão pela Literatura fez com que desistisse de atuar como médico e se concentrasse exclusivamente aos livros. Além disso, ainda pintava e adequava alguns de seus romances para o formato de roteiro, visando um dia adaptá-los ao cinema. Por conta dessas inclinações, suas obras são atravessadas por outras artes, permitindo que o leitor tenha uma experiência interartística ao se deparar com seus escritos. Fernando Namora deixou uma produção literária muito significativa e com muitas faces, pois escreveu poemas, contos, romances e relatos de viagem. Sua obra costuma ser dividida em três ciclos: um primeiro momento em que participa efetivamente da afirmação dos ideais neorrealistas, um segundo ciclo marcado pela presença da paisagem rural e um terceiro, no qual prevalece o cenário da cidade de Lisboa.
Na presente página nos interessa a relação que o escritor estabelece com a paisagem da capital portuguesa em um conto que integra o livro Cidade Solitária, publicado em 1959, obra pertencente ao momento de escrita urbana de Namora. Em prefácio ao conjunto de narrativas em questão, Eugênio Lisboa (1977) evidencia a “teia de solidões e os silêncios cheios de coisas não ditas” que Cidade Solitária nos oferece. A figura do indivíduo solitário que deambula pelas ruas de Lisboa começa a ganhar espaço na escrita do autor a partir da publicação do romance O Homem Disfarçado, em 1957, e passa a percorrer seus escritos até O Rio Triste, último livro do escritor.
A solidão associada ao espaço citadino e outros elementos da cidade ressoam também em suas pinturas, conforme podemos perceber nas imagens abaixo. Na primeira observamos uma rua pintada em tons de cinza, colocando em evidência a crescente presença do concreto. Notamos ainda árvores secas, sem folhas ou frutos. As árvores nuas e uma vegetação que parece ser colocada artificialmente nos cenários da cidade são elementos que ganham destaque em seus livros a partir do fim dos anos 50, assim como a presença de um espaço urbano em constante transformação, como podemos notar através do guindaste, sugerido na segunda pintura.
O espaço urbano e a atmosfera de solidão que ecoam das pinturas acima marcam o livro Cidade Solitária. Das 13 narrativas que compõem a obra escolhemos o conto Piquenique, o qual revela a ambiência da cidade de Lisboa como um recurso narrativo capaz de acompanhar a personagem principal do início ao fim, mostrando uma paisagem que se constrói em diálogo com os corpos narrados. A leitura do conto é um convite para um passeio pela solidão de Cristina através das ruas da capital portuguesa. Em Piquenique, Cristina, a personagem central e também narradora, sente-se incompreendida e excluída daquele ciclo citadino, composto por aglomerações, barulhos e assuntos sobre automóveis, enquanto a mesma gostaria de falar sobre belas paisagens e sobre as pessoas.
Cristina revela o quanto se sente engolida pela multidão que não a compreende e destaca que uma das maneiras que encontra de fugir de tudo isso é indo até o Rossio:
NAMORA, Fernando. Cidade solitária.
6ª ed. Armadora, Bertrand, 1977, p. 203.
NAMORA, Fernando. Cidade solitária.
6ª ed. Armadora, Bertrand, 1977, p. 216.
Hotel Metrópole, edifício onde funcionava a
Leiteria Luso-Central e, posteriormente, o Piquenique.
NAMORA, Fernando. Cidade Solitária.
6a ed. Amadora: Bertrand, 1977, p. 203.
NAMORA, Fernando. Cidade Solitária.
6a ed. Amadora: Bertrand, 1977, p. 206.
Através das reflexões da personagem quando está no Piquenique, vamos acompanhando seu relacionamento com a família, com as pessoas que encontra pela cidade e sua interação com o próprio espaço citadino. Sua vida é marcada por desencontros e por uma sensação de deslocamento que ela cria com todosSua crise existencial é reforçada pela relação de distanciamento estabelecida com os familiares. Apesar de morarem na mesma casa, ela e os parentes vivem afastados, não há afeto entre eles. A personagem sente-se oprimida pelo pai, pela mãe, pelos clientes do escritório do pai que “rosnam” ao invés de dar bom dia. Sente-se também julgada pelo chefe de seção da empresa na qual trabalha, pois o mesmo a observa para criticar seus comportamentos, taxando-a de estranha. Ela descreve cenários cheios de gente, mas é nessa multidão que cresce a solidão de Cristina: “… sou uma Cristina tão insignificante que não me veem, não me ouvem, não dão pelo meu desejo de me comunicar confiadamente com as pessoas” (NAMORA, Fernando. Cidade Solitária. 6a ed. Amadora: Bertrand, p. 205.)
Percebemos que em linhas gerais a paisagem citadina e os indivíduos contribuem para intensificar o isolamento de Cristina. Contudo, na Lisboa da personagem há ainda a esperança de um local acolhedor: o Piquenique:
NAMORA, Fernando. Cidade Solitária.
6a ed. Amadora: Bertrand, p. 220.