Sobre as Lisboas enterradas e submersas em
Al Berto
de sucata e de casas que se desmoronam
a realidade estragou os olhos das crianças.
In: O Medo. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009, p. 601.
“[…] quantas lisboas estão enterradas? ou submersas”? Na série de poemas dedicados à capital portuguesa de Al Berto (1948-1997), um dos poetas portugueses de maior destaque nas últimas décadas do século XX, há este verso em que o autor aponta para existência de várias Lisboas que estão escondidas ou que permanecem desconhecidas, indicando que, apesar de tanto que se escreveu, falou e refletiu sobre a cidade (ou sobre o próprio Portugal) durante séculos, ainda existe muito a se conhecer e explorar. A paisagem da cidade lisboeta, usualmente representada a partir dos seus elementos mais populares, como sua beleza arquitetônica ou a sua histórica relação com o rio Tejo e o mar aberto, será confrontada com o seu lado mais obscuro por parte de Al Berto, que vai direcionar seu olhar para os lugares mais sombrios e insalubres de uma Lisboa dos anos 80 e 90, evidenciando a dor de todas as ruas vazias. Tais poemas foram reunidos em Horto de Incêndio (1997) , último livro publicado no ano de seu falecimento, e trazem reflexões bastante relevantes sobre o contexto em que foi produzido, além de reunir elementos recorrentes na poesia de Al Berto, como poderemos ver também por meio de outros de seus poemas. Antes, vale relacionar sua poesia com as transformações ocorridas em Portugal pós-70.
A partir de meados da década de 1970, mudanças substanciais foram sentidas na política, na sociedade e na cultura portuguesa. Durante as últimas décadas do século XX, Portugal passou por uma série de transformações decorrentes da Revolução dos Cravos em 25 de abril de 1974, que depôs o regime salazarista e permitiu que o país respirasse outros ares. Além do conturbado processo de redemocratização depois dos longos de anos de ditadura, do processo de descolonização das colônias africanas, da resolução dos problemas econômicos e da busca incessante de redefinir o país como parte integrante do progresso europeu, ainda havia as reivindicações inerentes à transformação dos costumes influenciadas pelas discussões em torno de pautas progressistas, que estavam a despontar nos principais centros urbanos do mundo.
invadem a catedral em celuloide do filme nocturno:
arquitectura de asas abóbadas de vento
pássaros de lixo
som
pálpebras de lodo sobre a boca do homem
que rasteja de engate em engate pelas avenidas da memória
e quando encontra a porta de um bar
mergulha no inferno
bebe furiosamente
o peito encostado ao zinco sujo
duma geração de subúrbio presentes
aqui os jovens, com a canga nos ombros
e o mundo poderia desabar dentro de 5 minutos
In: O Medo. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009, p. 458.
reconheceram-se. beberam cerveja com a sede de antigos amantes, fumaram ganzas para suportar o tédio da noite de Lisboa. segredaram-se tudo o que lhes acontecera desde o dia em que haviam partilhado a mesma cama. […]
separaram-se de novo ao amanhecer. um em direcção da imensa cidade, e o outro de circo em circo, pelas datas dos santos e das promessas. […]
irradiavas malícia quanto te aproximaste montado na velha bicicleta. fendias o asfalto com um sorriso, franzias o nariz para ajeitares os óculos. falámos noite adentro, era verão, uma inocência coalhava em redor, nas árvores, no ar. descobrimos um prédio abandonado, em ruínas quase. a brisa entrava pelo que restava das janelas partidas, cheirava a mijo e a merda, a trapos queimados, a lixo. teu corpo emanava perfume a medronho e a after-shave barato. mordia-te a orelha, desapertava o brinco e tu zangavas-te. amanhecia. hoje passei por ali, já demoliram a casa. sinto-me recompensado quando penso em ti, e o mundo se turva ao décimo copo de vinho. ah! como são tristes as casas destinadas à demolição.
In: O Medo. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009, p. 139-143.
…há uma cidade a rebentar na humidade vertiginosa da noite e um homem com olhar de açúcar encostado ao néon melancólico das esquinas espera o próximo shoot de heroína… há uma cidade por baixo da pele e uma casa de sangue coagulado na memória atravessada por canos rotos e um corpo pingando mágoas… há uma cidade de alarmes e um tilt lancinante de flipper dentro do meu pulmão adolescente e uma dor de chuva fustigando o sexo adormecido no soalho do quarto de pensão… há uma cidade de visco e de esperma ressequido e uma pastilha elástica presa ao fundo dum copo… há um sorriso e um engate e um càmone e um arrebenta e uma boca de lodo aberta sobre o rio… há uma cidade de fome e lixo enquanto o ciúme escorrega das mãos dos amantes… há um dedo de lâminas usadas e um beco sem saída onde se enroscou um puto e um cão de febre… há uma cidade crescendo no grito e na gasolina no fogo nocturno da minha vertigem presa nas alturas de cimento armado onde coabitam sexos mergulhados em naftalina… há um osso branco que perfura a insónia e a madrugada e esta cidade de nojo e de fascínio… há uma navalha cortando o betão das avenidas e um pássaro de enxofre nas feridas duras dos cabelos… há uma cidade de estátuas desmanteladas contra o espelho dum bordel e a luz do teu olhar dentro duma janela antiga… há uma cidade que se escapa para fora da noite espia avança e mata… há uma cidade de trapos queimados e de vozes ardendo e uma toalha para limpar o sono dos poucos brinquedos… há uma alucinação furiosa que me incendeia a veia e revela teu rosto lívido que se suicida… há uma cidade de papel engordurado que eu amachuco com o pânico nos dentes e todo o meu corpo sangra… treme… e tem medo… e morre…
In: O Medo. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009, p. 145.
no seu coração profundo de alicerces
de argilas e de sísmicos arroios – cresce uma voz
que sobe e fende a brandura das casas
da escrita dos enumeráveis povos quase
nada resta – deitas-te exausto na lâmina da lua
sem saberes que o tejo te corrói e te suprime
de todas as idades da europa
[…]
plátanos brancos recortam-se luminescentes no olhar
de quem nos olha contra um céu desesperado – jardim
de íris açucenas palmeiras cobertas de rocio e
a ponte que nos leva aos campos do sul – lisboa
lugar derradeiro do riso
que já não te pode salvar do cemitério dos prazeres
e morres
carregado de tristezas e de mistérios – morres
algures
sentado numa praceta de bairro – o olhar fixo
no inferno marítimo das aves
In: O Medo. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009, p. 145.
de províncias
de esperas diante dos cafés
de vazio sob um céu plúmbeo que ensombra
os jardins de estátuas partidas
há um pressentimento de sono sem fim
refugias-te num quarto de pensão e dormitas
o dia todo – para que lisboa te esqueça.
In: O Medo. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009, p. 599.
Viviane Vasconcelos