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Paisagens do Rio de Janeiro na poética de Angela Melim
Paisagens do Rio de Janeiro na poética de
Angela Melim
Uma casa no ar
é a minha:
vejo do alto
casas antigas, panos ao vento, a luz do mundo
– o verão no Rio –
e sou feliz.
Poeta:
verde e sol
me atravessam.
Fotossintética
clorofílica
transparente
puro ar puro, moro aqui.
MELIM, Angela. Possibilidades.
Rio de Janeiro: Íbis Libris, 2006, p.31.
Nesta “Página em movimento”, percorreremos as paisagens do Rio de Janeiro encenadas na produção poética de Angela Melim: poeta brasileira que estreou na década de 1970, e, de lá para cá, já publicou dez livros, entre prosa e poesia, sendo o último uma coletânea com toda a sua produção poética, intitulado Día más día menos (2019).
A paisagem, enquanto imagem do mundo vivido, tem um papel significativo na obra poética de Angela Melim: não é apenas tema literário, mas, sobretudo, meio para formulação de uma linguagem lírica cuja matéria fundamental nasce da relação sensível-visível entre sujeito, palavras e mundo. Para tal formulação, a poeta prioriza não só a experiência da visualidade, mas também a do deslocamento do sujeito por paisagens naturais e urbanas.
Há duas noções de visualidade que merecem destaque na poética meliniana: a primeira, está relacionada a um olhar crítico, afetado por problematizações. A segunda, está associada à ordem natural das coisas, ao olhar encarnado que não ignora os demais sentidos. Nesse último caso, trata-se de uma experiência enraizada aos corpos, duma visualidade relacionada à ordem do ser bruto, do eu sinto o mundo. Em ambos olhares ou na oscilação entre eles, a paisagem nos é apresentada como um espaço privilegiado, revelando-se, no poema, como uma forma provocadora de sentidos e/ou problematizações.
Em torno das encenações do espaço urbano, começamos nosso passeio pela zona norte do Rio de Janeiro, por intermédio do poema “Pelas ruas do Méier”, publicado no livro Possibilidades (2006):
Jovem de novo
quando o verão vem.
O voo nas mãos
na voz.
Mesmo o verão assim desornado
fora de época
exagerado pelo buraco de ozônio
e outras alterações climáticas
produzidas pelo egoísmo dos homens e das mulheres ricos
e ignorância de homens e mulheres pobres
O calor incha
enche
intumesce
emprenha.
Pelas ruas irregulares do Méier
vou feliz
me sinto no passado
tudo em escala de gente
ao alcance de gente
chinelo de borracha gasta
distâncias
a custo vencidas—vencidas? por lotações poeirentos.
Cascateia o trem
(como em Riabina, Riabina:
poiezdi catchaietsa).
No Méier, os novos tempos
apenas salpicaram lembranças
pela metade e já enferrujadas.
Com o rigor vegetal
a pobreza,
rápida,
domina.
Temos que dar importância as ruínas.
A cada templo
cada tijolo esfarinhado.
Andaimes corroídos
espetados no ar
um dia sustentaram nossas sujas cidades!
Beleza tristealegre do incompleto e misturado—
outra vez jovem no calor do Méier
outra vez jovem no calor desolado do Méier
MELIM, Angela. Poema “Pelas ruas do Méier” in: Possibilidades.
Rio de Janeiro: Íbis Libris, 2006, p.34-35
Como é sabido, uma paisagem depende do ponto de vista do observador, logo “supõe-se como condição mesma de sua existência a atividade constituinte de um sujeito”. No poema supracitado, ao fazermos um percurso pelo Méier, bairro histórico do Rio de Janeiro, notamos que o ponto de vista revela uma experiência na qual sujeito e paisagem parecem coexistir, são inseparáveis. Angela constrói uma paisagem que produz uma espécie de dialética do lugar. Desta forma, ao caminhar pelas ruas do Méier, o sujeito poético recorda o passado, evocando uma sensação física do tempo e da paisagem de outrora. Noutras palavras, temos um cruzamento entre a paisagem do presente e a da memória.
Coreto no Jardim do Méier, zona norte do Rio de Janeiro, outubro de 1970.
Arquivo Nacional. Fundo Correio da Manhã.
O que está em cena no poema é o regresso ao bairro do Méier. Sendo assim, a poeta traz à tona um processo importante para refletirmos sobre a representação do espaço geográfico e/ou paisagístico: o processo de reterritorialização. A priori, o sujeito poético reconhece a paisagem do território que habitou no passado, mas a readaptação ao novo espaço, repleto de mudanças e degradação, não parece fácil. Os “novos tempos” transformaram o bairro numa nova paisagem que, tal como um quadro, exige um certo distanciamento, exige o espaçamento do sujeito: “No Méier, os novos tempos/apenas salpicaram lembranças/pela metade e já enferrujadas. /Com o rigor vegetal/a pobreza, /rápida, domina”.
Rua Vinte e Quatro de Maio – Méier/RJ. Próximo à passarela da estação de trem. Ano: 1975. Disponível em http://oriodeantigamente.blogspot.com/2011/01/meier.html
Conforme o sujeito poético caminha pelas ruas do Méier, vivendo os novos tempos, as reminiscências ocupam o poema. Angela constrói, assim, um espaço que reúne diversos ativadores da memória: “Temos que dar importância as ruínas. /A cada templo/cada tijolo esfarinhado. /Andaimes corroídos espetados no ar/um dia sustentaram nossas sujas cidades!”.
Os versos curtos e pausas dialogam não só com deslocamento do sujeito poético, que observa e caminha pelo bairro histórico, mas também com os movimentos da memória, evocando a relação entre a geografia interna e externa, entre o passado e o presente, entre o espaço memorialístico e o paisagístico. Temos, então, imagens-rítmicas com as quais se deixa fluir um movimento, ora numa fluência contínua/ livre, ora numa fluência interrompida, seja pelas ruas irregulares do Méier, seja pelas reminiscências do sujeito poético.
Já que estamos no Méier, cuja história da estação de trem está intimamente entrelaçada ao desenvolvimento do bairro, vamos então viajar em direção à região central do Rio de Janeiro a partir da leitura do poema “Praça XV”.
Região central do Rio. Disponível em
https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:CentroRJ.jpg
Praça XV
Sua, sufoca
pulsa nervoso
o centro apressado
da cidade no verão.
[…]
Desta abertura, oásis, prata
desta altura
nem brilha essa palavra tonta
encharcada
– nem precisa –
a água brilha, tranquila, ao meio-dia.
MELIM. In: coletânea Mais dia menos dia, 1996, p. 128
No poema “Praça XV”, Angela Melim versa sobre a região central do Rio de Janeiro. Temos um sujeito poético que, provavelmente, observa a praça do alto de algum edifício – “Desta abertura, oásis, prata/desta altura”. Não se trata de descrever a paisagem histórica objetivamente ou de revelar os aspectos arquitetônicos que reúnem o passado e o presente, mas sim de trazer à tona imagens e significações que a urbe produz. “Pulsa nervoso/o centro apressado”, provocando o olhar de um sujeito sensível e atento ao espaço urbano e seus elementos. Um olhar que evidencia os efeitos e combinações diversas da rica paisagem.
Região da Praça XV/ Fonte:
http://www.portonovosa.com/sites/default/files/praca_xv.jpg
Sendo a urbe composta por elementos plurais — vias, limites, bairros, cruzamentos, processos de urbanização, construções simbólicas, contexto socioespacial etc —, corrobora para configurações poéticas que se formam através da sobreposição de imagens que tocam os modos de existência do ser no mundo e a sua relação com a paisagem urbana, revelando subjetividades provocativas e abertas à alteridade, como podemos ler no poema “No peito”, que faz alusão à avenida Presidente Vargas.
Vista da Avenida Presidente Vargas de cima do ‘Balança mas não cai’
(Foto: Liana Leite/G1)
O pivete de óculos escuros
a comerciária
de pé inchado e sapato alto
o bacana de cordão de ouro
a madame mandona chorosa avoada
as varizes tortas da lavadeira
a carne branquela e sarapintada
dentro das bermudas dos aposentados;
suor azedo de termos puídos
bijuteria
peitos caídos
o olho parado da empregada doméstica
a carapinha esticada;
chinelos de dedo
pés derramados
dedos que faltam nas mãos dos operários
bocas sem dentes
e mães sem fim
de unhas escalavradas
a reproduzir toda cidade do Brasil
atravessam
meu peito
e as avenidas presidente Vargas.
MELIM. in: coletânea Mais dia menos dia, 1996, p. 130.
Neste poema, temos encenado um olhar cujo ritmo é dado pelo fluxo de pessoas que passam pela avenida Presidente Vargas, lançando-se, assim, na mobilidade dos que ocupam e percorrem o espaço citadino da região central do Rio de Janeiro. Averígua-se, então, um acúmulo de imagens em sucessão, que revelam uma paisagem desarmônica, problematizada a partir das subjetividades ambulantes e plurais. Do pivete de óculos escuros, passando pelo olho parado da empregada doméstica, e chegando às mães sem fim, notamos uma busca pelo encontro de subjetividades provocativas, que estão de passagem e se entrecruzam numa rua, numa avenida, formando um conjunto que reproduz toda a cidade.
Trata-se de um conjunto heterogêneo que traz à tona a urbe em sua potência: a urbe que se torna paisagem à medida que é percebida e sentida pelo sujeito poético. E, ao se tornar paisagem, atravessa o sujeito, numa relação de intimidade, e, ao mesmo tempo, de alteridade. Este paradoxo reúne pessoalidade e impessoalidade. Desta forma, a paisagem e seus elementos são capazes de exprimir o sujeito, e, ao mesmo tempo, ultrapassá-lo, abrindo-o a uma dimensão fenomenológica: “a reproduzir toda cidade do Brasil/atravessam/meu peito/ e as avenidas presidente Vargas”.
É importante ressaltar que em muitos poemas, como os supracitados, Angela encena uma espécie de crise do espaço urbano e a sua dimensão expressiva. Ao entrelaçar os fenômenos perceptivos, a imaginação, a memória e a linguagem, evocando um olhar crítico e sensível, revela um sentido de profundidade e de pertença à cidade encenada.
Noutro livro, Os caminhos do conhecer, prosa poética publicada em 1981, Angela convoca o mundo da percepção num agrupamento de perspectivas parciais, que se modificam e se completam, ao passo que o sujeito da enunciação se desloca pela cidade-labirinto: uma das paisagens encenadas é o bairro da Lagoa, região no entorno da Lagoa Rodrigo de Freitas, localizado na zona sul do Rio de Janeiro.
Lagoa Rodrigo de Freitas (RJ)/ Foto: Custódio Coimbra / Agência O Globo
https://oglobo.globo.com/rio/no-coracao-da-zona-sul-historia-da-lagoa-rodrigo-de-freitas-13906205
Em Os caminhos do conhecer não temos uma visão panorâmica do bairro da Lagoa, e sim uma que estrutura o horizonte, articulando o visível, invisível e a imaginação. O deslocamento é feito de carro, janelas abertas, tudo enquadrado:
L.M. se viu dentro do carro, no meio do trânsito da Lagoa, indo na direção do túnel Rebouças. Então não tinha abandonado o carro, como pensava, de portas abertas, no meio da rua. Tinha sido um sonho talvez. Desses sonhos de engarrafamento
[..]
Engatou a primeira e avançou alguns metros.
MELIM, Angela. Os caminhos do conhecer.
Florianópolis: Noa Noa,1981, p.1-2.
Como lemos no trecho, o sujeito da enunciação, L.M., está no trânsito da Lagoa, indo em direção ao túnel Rebouças. A cada movimento, um instante é capturado, e novos pontos de vista são apreendidos e revelados no texto. Temos, assim, um movimento de (des)orientação, cujos (des) caminhos parecem simbolizar as possibilidades que a escrita poética pode alcançar, bem como a relação entre o sujeito e o mundo:
Naquela faixa estreitíssima de terra cabia outro universo. Um mundo de lazer, esportivo, cromado: umas meninas queimadas de sol passavam lentamente, montadas em suas bicicletas prateadas; […]havia um grupo de patinadores – movimentos curtos de listas coloridas; no fundo dois barcos de velas amarelas escorregavam. Tudo isso no mesmo ritmo e peso do calor.
MELIM, Angela. Os caminhos do conhecer.
Florianópolis: Noa Noa,1981, p.3.
Desta forma, o livro compõe-se por fragmentos heterogêneos de situações, percepções memórias e pensamentos que têm como pano de fundo a cidade do Rio de Janeiro, mais precisamente a zona sul carioca, com sua paisagem plural: praias, montanhas, e, também, túneis, engarrafamentos, profusão de prédios e transeuntes.
Um milhão de buzinas soando […]. Pela janela não entrava vento nenhum, mas só a cidade mais bonita do mundo: as linhas de água brilhante e as montanhas azuis um tanto esfumaçadas, e aquela confusão de formas retas, quadradas e brancas, que eram as casas e os edifícios entre elas.
MELIM, Angela. Os caminhos do conhecer.
Florianópolis: Noa Noa,1981, p.11.
Lá estava a boca cavernosa do túnel, sugerindo refrigério. L.M. esperava com paciência a hora do prazer, sentindo, com a aproximação vagarosa, a delícia da pedra fria. Quem sabe se passaram dez minutos inúteis nessa espera, posto que ali dentro da terra era tão quente quanto fora. Os ventiladores holandeses voavam como aviões e a rocha pingava água, mas sem trazer alívio. O ar abafado e úmido se misturava à gasolina queimada, queimando e engrossando os ruídos, ainda intensos, mas surdos. O pensamento de L.M. mergulhou nas poças no chão.
MELIM, Angela. Os caminhos do conhecer.
Florianópolis: Noa Noa,1981, p.6.
No que tange à urbe carioca, percorremos, até aqui, a zona norte, o centro e a zona sul. Por fim, vamos explorar, por intermédio da leitura do poema “Metro de maré”, outro território muito priorizado na poética de Angela Melim: a cidade costeira de Arraial do Cabo, situada na região dos Lagos do estado do Rio de Janeiro.
A poeta Angela Melim em Arraial do Cabo (RJ)
Foto: Renata Ferreira
Angela Melim morou durante um tempo em Arraial do Cabo, e é interessante notar o modo como a poeta revisita, em sua produção, as paisagens vivenciadas. O imbricamento entre o espaço poético e paisagístico traz à tona uma experiência marcada pela afetividade e pela abertura ao mundo. Como bem pontou Michel Collot,
a emoção não é um fenômeno puramente subjetivo, e sim a resposta afetiva de um sujeito ao encontrar um ser ou alguma coisa no mundo exterior que ele pode tentar interiorizar ao criar um outro objeto, fonte de uma emoção análoga, porém nova: o poema ou a obra de arte.
COLLOT, Michel. A matéria-emoção. Rio de Janeiro.
Oficina Raquel, 2018, p. 15.
Igreja Nossa Senhora dos Remédios
Reprodução: Prefeitura de Arraial do Cabo
Metro de Maré
Do morro
da igreja
de Nossa Senhora
dos Remédios
um e outro coqueiro roxo contra o céu cor de rosa.
Contra casas baixas –
tábuas de janela à altura dos joelhos.
A montanha e suas roças tortas, cercadas,
de milho e pedra
são cor de rosa
contra o céu cor de rosa.
Na praia
dos anjos
o mar, a areia, os barcos
sobre a areia e os barcos
sobre o mar
são cor de areia
e rosa.
MELIM, Angela. Mais dia, menos dia. Poesia Reunida 1974-1996.
RJ: 7letras,1996, p. 41-42
Praia dos Anjos/ Reprodução: Guia melhores destinos/ foto: Monique Renne
No entanto, não se trata de evocar, apenas, horizontes fugidios, mas de encenar um universo pictural: “Na praia/dos anjos/o mar, a areia, os barcos/sobre a areia e os barcos/sobre o mar/são cor de areia/e rosa”. Reparem que temos uma expressão poético-plástica, que apesar da estrutura fragmentada, forma um todo harmônico. Com esse modo de construção, Angela nos remete a uma sensação de profundidade espacial, e, ao mesmo tempo, a um além espacial, evidenciando a experiência ambígua de aproximação e distanciamento. Neste sentido, não se trata de figurar uma orientação no espaço, numa ótica cartesiana, e sim de encenar a experiência perceptiva sensível. Por essa via, lembrou-nos as reflexões de Merleau-Ponty (1999), ao dizer: “por meu campo perceptivo, com seus horizontes espaciais, estou presente à minha circunvizinhança, coexisto com todas as outras paisagens que se estendem para além dela”.
Nesta “Página em movimento”, pudemos passear pelo Rio de Janeiro e conhecer alguns modos de construção da poética de Angela Melim. A conexão da poeta com o RJ pode ser observada não só em sua obra, mas também em sua biografia. Angela Melim nasceu em Porto Alegre (1952), mas não ficou por muito tempo no território gaúcho. Com um ano de idade veio morar no Rio de Janeiro, onde permaneceu até os dez anos. Morou um período no exterior, em Moscou e em Nova York, até completar dezesseis anos. No final da década de 1960, retornou ao Brasil; morou um tempo em São Paulo, mas regressou ao Rio de Janeiro, onde vive até hoje.
Renata Ferreira