De Lisboa a Santarém com Almeida Garrett
De Lisboa a Santarém com
Almeida Garrett
Santarem, Santarem, levanta a tua cabeça coroada de tôrres e de mosteiros, de palacios e de templos! Mira-te no Tejo, princeza das nossas villas: e verás como eras bella e grande, ricca e poderosa entre todas as terras portuguezas.
GARRETT, Almeida. Viagens na Minha Terra.
Lisboa: Typographia Gazeta dos Tribunaes, 1846b, p. 108.
Vista sobre a cidade de Santarém
Fonte: http://www.eugostodesantarem.pt/imagens/outros-tempos/santarem-antigo-largo-das-amoreiras
Envolta em misticismo, dotada de história de um país e fronteira convergente entre a influência da grande metrópole e os ritmos da província, Santarém congrega a riqueza monumental e o património natural, tornando-se um destino turisticamente atrativo. Tal conceção é transmitida na obra Viagens na Minha Terra de Almeida Garrett (1799-1854), cujo título apelativo induz, desde logo, os leitores a viajarem no território português. Apesar de muitas viagens, que são jornadas mentais e sentimentais, reflexões e críticas, numa digressão pela paisagem, pela história, pela literatura e pela cultura portuguesas, o autor centra a sua obra na região ribatejana, nomeadamente, em Santarém.
Poeta, dramaturgo e prosador, Almeida Garrett elabora, em 1843, os primeiros capítulos de uma novela, inovadora no panorama literário português, intitulada Viagens na Minha Terra , os quais surgem, primeiramente, em folhetim, na Revista Universal Lisbonense; publicada, posteriormente, em 1846, em volume, ressalta nela, não só a mistura de estilos e o cruzamento de uma linguagem clássica e coloquial, mas também a análise da situação política, social e cultural do país.
Ao integrar a narração em torno dos primos Carlos e Joaninha com o estilo digressivo da viagem real efetuada por Almeida Garrett, entre Lisboa e Santarém, a convite do político liberal Passos Manuel (1801-1862), Viagens na Minha Terra permite traçar um percurso de turismo literário pela paisagem. Tendo por base o texto garrettiano, os leitores, sensíveis às culturas locais, poderão, assim, usufruir de uma experiência personalizada que enriquecerá os seus padrões culturais e literários.
A viagem faz-nos recuar até ao século XIX, mais precisamente, a 17 de julho de 1843, cuja digressão tem início no Terreiro do Paço, em Lisboa, onde Garrett apanha o vapor “Vila Nova” rumo a Santarém:
Vou nada menos que a Santarem: e protesto que de quanto vir e ouvir, de quanto eu pensar e sentir se hade fazer chronica. Era uma idea vaga […], que eu tinha ha muito de ir conhecer as riccas varzeas d’esse Ribatejo, e saudar em seu alto cume a mais historica e monumental das nossa villas.
GARRETT, Almeida. Viagens na Minha Terra.
Lisboa: Typographia Gazeta dos Tribunaes, 1846a, p. 2.
Planície ribatejana
Fonte: https://www.cm-chamusca.pt/index.php?option=com_k2&view=item&layout=item&id=166&Itemid=430
Viagens na Minha Terra apresenta sítios e ambientes (ver), conversas (ouvir), considerações (pensar) e confidências (sentir) que tornam possível delinear um percurso em que se associa paisagem e literatura, sendo representados diferentes lugares que podem ser interpretados como lugares literários, na medida em que inspiraram e serviram de cenário aos textos do autor.
Garrett começa por chamar a atenção dos leitores para o panorama que observa aquando da partida:
Assim vamos de todo o nosso vagar contemplando este majestoso e pittoresco amphitheatro de Lisboa oriental, que é vista de fóra, a mais bella e grandiosa parte da cidade, a mais characteristica […]. A um lado a immensa majestade do Tejo em sua maior extensão e podêr, que alli mais parece um pequeno mar mediterraneo; do outro a frescura das hortas e a sombra das árvores, palacios, mosteiros, sitios consagrados todos a recordações grandes ou queridas. Que outra sahida tem Lisboa que se compare em belleza com ésta? Tirado Bellem, nenhuma.
GARRETT, Almeida. Viagens na Minha Terra. Lisboa: Typographia Gazeta dos Tribunaes, 1846a, p. 4-5.
Outrora, nesta zona da capital portuguesa, existiam quintas e conventos, sendo que a sua morfologia foi alterada, não só com o terramoto de 1755, mas também com a extinção das ordens religiosas e com a instalação gradual de fábricas, facilitada pela proximidade do rio Tejo e pela instalação da linha de caminho de ferro.
Ao evidenciar a relevância do rio Tejo e a harmonia patente nas edificações que se avistam, o narrador realça a perspetiva observada a partir do Terreiro do Paço, a praça ribeirinha da Baixa de Lisboa, que hoje se considera uma das maiores praças da Europa.
“Baixa” da cidade de Lisboa
Fonte: https://getlisbon.com/pt/historia-pt/baixa-pombalina/
Tal como Garrett, partindo de Lisboa, Tejo acima, a viagem prossegue por Alhandra, Vila Franca de Xira até Vila Nova da Rainha, localidade onde o nobre e militar Nuno Álvares Pereira – o Santo Condestável (1360-1431) – contraiu matrimónio.
O passeio segue até à Azambuja que, desde 2004, integra a Comunidade Urbana da Lezíria do Tejo, sendo considerada a porta de entrada da Grande Lisboa, quer por autoestrada, quer por caminho de ferro:
Ahi está a Azambuja, pequena mas não triste povoação, com visiveis signaes de vida, aceadas e com ar de confôrto as suas casas. É a primeira povoação que dá indicio de estarmos nas ferteis margens do Nilo portuguez.
GARRETT, Almeida. Viagens na Minha Terra. Lisboa: Typographia Gazeta dos Tribunaes, 1846a, p. 20.
A visita continua até ao Cartaxo – ponto de passagem para o interior do país, quer por via fluvial, quer por via terrestre –, que se torna, desde finais do século XIX, no centro de produção vinícola mais característico do Vale do Tejo. Daqui o autor prossegue a visita até ao Vale de Santarém, um lugar privilegiado pela natureza, cuja presença é forte na narrativa garrettiana:
Ca estâmos n’um dos mais lindos e deliciosos sitios da terra: o valle de Santarem, patria dos rouxinoes e das madresilvas, cincta de faias bellas e de loureiros viçosos. D’isto é que não tem Paris, nem França nem terra alguma do occidente senão a nossa terra, e vale bem por tantas, tantas coisas que nos faltam.
GARRETT, Almeida. Viagens na Minha Terra. Lisboa: Typographia Gazeta dos Tribunaes, 1846a, p. 90.
Enaltecendo a harmonização do conjunto paisagístico, em que avulta a defesa do que é nacional – “a nossa terra” –, o autor detém-se na valorização da natureza como um espaço salutar que devolve ao ser humano a sua pureza; um lugar aprazível, equilibrado e simples, privilegiado para a reflexão; um local paradisíaco que exclui os vícios e as paixões mundanas.
É, no Vale, que Garrett observa uma janela que o cativa, sendo a partir desta observação que constrói a novela da menina dos rouxinóis, cuja narrativa se desenrola em plena guerra civil (1832-1834), entre liberais (defensores da monarquia constitucional) e miguelistas (partidários do absolutismo monárquico).
Esta primeira parte contextualiza a visita a Santarém, evidenciando a deslocação a espaços que recordam contextos de outros tempos e concedem um maior pragmatismo à representação do espaço no texto. Tal facto determina os lugares da narrativa, assim como promove a divulgação do autor e da sua obra, correspondendo ao perfil dos novos turistasleitores que procuram os lugares reais representados nos textos literários.
Na segunda parte deste percurso pela paisagem portuguesa, Garrett centra-se em Santarém (de “Scallabis”; mais tarde, “Sancta Irene”), capital do Ribatejo. Situada num planalto, sobranceiro ao rio Tejo, Santarém propicia um panorama que seduz o turista. A região apresenta três áreas diferenciadas: a lezíria, formada pelas planícies inundáveis pelo Tejo, com solos de boa qualidade; os “bairros”, constituídos por culturas arbóreas, situadas a norte, na margem direita do rio; e a charneca, situada na margem esquerda do rio e composta por revestimento florestal, assim como por culturas de cereais e vinha.
Garrett exalta a imutabilidade da paisagem, lamentando, no entanto, a degradação do que melhor identifica a localidade no âmbito do património construído – o gótico. Pelo seu imponente passado artístico, Santarém é considerada a “capital do gótico português”, designação adveniente das manifestações artísticas que tiveram o seu apogeu nos séculos XIV e XV.
Nesta localidade, chegaram a existir catorze conventos e trinta e seis igrejas que foram destruídos, progressivamente, não só pelo terramoto de 1755, mas também pelas invasões francesas que causaram bastantes danos à população e ao património; pelo vandalismo da revolução liberal que destruiu os meios de subsistência, provocando a delapidação dos bens; e ainda pela extinção das ordens religiosas que provocou o fecho dos conventos e o consequente saque do que neles existia de valioso.
Santarém, elevada à categoria de cidade em 1868, é uma urbe histórica, de cujos filões só ficaram escombros no século XIX, estando ligada a muitos episódios decisivos da história nacional, como, por exemplo, a aclamação de D. João II (1455-1495) e a transformação em quartel-general, por D. Miguel (1801-1866) aquando das lutas liberais.
Favorecida pela posição geográfica, pela fertilidade do solo, pela amenidade do clima e pela riqueza artística, Santarém é uma localidade histórica e turística:
À esquerda o immenso convento do Sítio ou de Jesus, logo o das Donas, depois o de San’ Domingos, célebre pelo jazigo de […] San’ Frei Gil […]. Defronte o antiquissimo mosteiro das Claras, e ao pé as baixas arcadas gothicas de San’ Francisco […]. À direita o grandioso edificio philippino […], o Collegio.
GARRETT, Almeida. Viagens na Minha Terra. Lisboa: Typographia Gazeta dos Tribunaes, 1846b, p. 14.
Garrett sintetiza nesta expressão os principais pontos turísticos da cidade, identificando e localizando as diversas construções religiosas, hoje muitas delas classificadas como Monumentos Nacionais e, como tal, de interesse nacional ao representar um valor cultural significativo para o país.
O autor faz uma viagem no tempo, aludindo a alguns dos exemplares de arquitetura e enunciando diferentes locais de visita, como a famosa igreja de Santa Maria da Alcáçova. Sendo o Castelo de Santarém conquistado em 1147, por D. Afonso Henriques (1109-1185), que doou o direito eclesiástico da povoação à Ordem dos Templários, foi o espaço do Paço Real, permanecendo, atualmente, o recinto fortificado; duas portas de acesso à vila – a Porta de Santiago (ou porta da Alcáçova, que era a porta principal do castelo, atravessada, hoje, por inúmeros peregrinos do caminho de Santiago de Compostela) e a Porta do Sol (presentemente, varanda panorâmica) –; e ainda alguns troços das muralhas, classificados como Imóvel de Interesse Público, desde 1917.
Igreja de Santa Maria da Alcáçova
Fonte: https://lifecooler.com/artigo/atividades/igreja-de-santa-maria-da-alcova/350318
Este espaço encontra-se ocupado pelo jardim das Portas do Sol, considerado o cartão de visita de Santarém, de cujo miradouro se pode contemplar a paisagem inspiradora que se desfruta sobre o rio Tejo e sobre a lezíria ribatejana:
No fundo de um largo valle aprazivel e sereno, está o socegado leito do Tejo, cuja areia ruiva e resplandecente apenas se cobre d’agua juncto às margens, d’onde se debruçam verdes e frescos ainda os salgueiros que as ornam e defendem. D’além do rio […], os riccos olivedos d’Alpiarça e Almeirim; depois a villa de D. Manuel e a sua charneca e as suas vinhas. D’aquem a immensa planicie […], semeada de casas, de aldeias, de hortas, de grupos de árvores sylvestres, de pomares.
GARRETT, Almeida. Viagens na Minha Terra. Lisboa: Typographia Gazeta dos Tribunaes, 1846b, pp. 24-25.
Miradouro – Portas do Sol
Fonte: https://ncultura.pt/portas-do-sol-santarem/
Enfatizando a paisagem, numa experiência sensorial que desperta o colorido, a frescura, a fertilidade dos solos e a aglomeração dos povoados, Almeida Garrett enuncia as três características fundamentais de Santarém – a natureza, a arte e a história –, revelando o amor que nutre pelo seu país e defendendo a divulgação das belezas naturais e a preservação do património artístico.
Garrett orienta os leitores na sua visita pela cidade escalabitana, sendo que, após o jantar, na casa do amigo, desce até à Ribeira (velho burgo ligado ao tráfego fluvial), seguindo até ao
Collegio, edificio grandioso, vasto, magnífico, propria habitação da companhia-rei que o mandou construir para educar os infantes seus filhos […]. O edificio do Collegio é todo philippino, ja o disse: a egreja dos mais bellos specimens d’esse stylo, que em geral sêcco, duro e sem poesia, não deixa comtudo de ser grandioso.
GARRETT, Almeida. Viagens na Minha Terra. Lisboa: Typographia Gazeta dos Tribunaes, 1846b, pp. 134-135.
Igreja de Nossa Senhora da Conceição do Colégio dos Jesuítas (Sé Catedral)
Fonte: https://www.rederegional.com/cultura/343-se-de-santarem-faz-3-seculos
Nesta passagem, o autor evidencia um dos principais exemplares da arquitetura e da história de Santarém: a Igreja de Nossa Senhora da Conceição do Colégio dos Jesuítas, construída a partir da década de 20 do século XVII e cuja conclusão ocorre em 1711. Durante a segunda metade do século XVIII, foi instalado, nos edifícios do Colégio, o Seminário Patriarcal de Santarém, passando a designar-se Igreja do Seminário. Mais tarde, foi elevada a Sé Catedral. O interior apresenta uma só nave e capelas laterais, estando classificada como Monumento Nacional por Decreto de 14 de março de 1917.
Expressando, porém, alguma mágoa face à decadência e à incúria a que foram votados alguns monumentos, o autor regressa a Lisboa. Ao destacar a paisagem como pretexto de viagem, a obra Viagens na Minha Terra alinha lugares e palavras que atravessaram o tempo, permitindo contemplar espaços, relembrar memórias e descobrir a riqueza histórico-cultural de Portugal; assim se incluem novos espaços na rota de quem gosta de descobrir o que existe nos lugares onde os textos literários são criados.