A Lisboa remodelada e devoluta de Manuel de Freitas
A Lisboa remodelada e devoluta de
Manuel de Freitas
Foi sempre assim: há os que esculpem versos, recorrendo a aclamadas e simiescas habilidades ou a revoltas de papelão, e existem, nas antípodas (escandalosamente ignorados), os poetas incondicionais, na urgência do seu grito, sussurro ou pranto.
Bem-vindos a bordo. Este é o voo 2021 com destino a Lisboa. O tempo de voo está estimado em 10 horas. Agradecemos a preferência e desejamos a todos uma boa viagem.
Figura 1: Rota de condução Brasil – Portugal
Fonte: Blog MEP – Morar em Portugal
Disponível em: https://moraremportugal.com/conheca-as-principais-empresas-brasileiras-atuantes-em-portugal/
Acesso em: 31 ago. 2021
Figura 2: Vista da cidade de Lisboa, com o rio Tejo ao fundo.
Disponível em: https://www.viajenaviagem.com/destino/lisboa/
Ufa! Demorou, mas chegamos ao Aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa. Por onde vamos começar? Após 10 horas de viagem, com certeza por um café.
O AZUL, DE NOVO
à memória de Ruben Fontoura
e para o José Carlos Soares
Por razões que eu próprio desconheço, foi este
o único café de Lisboa que se dispôs a acolher-
me. Refiro-me ao Estádio, obviamente. Fui lá
pela primeira vez à tarde, com uma espécie de
namorada cujo rasto depressa perdi. Seguiram-
se as noites, sobretudo depois da minha breve
experiência profissional no teatro da Trinda-
de (maquinista, para obedecer ao rigor, numa
peça de António Patrício). Era no tempo do ve-
lho Manel, que sempre me cumprimentou afa-
velmente. Dividia o longo salão, e o respectivo
serviço de mesas, com o também já desaparecido
António, que nunca conquistou as nossas simpa-
tias e que se mostrava bem mais intolerante no
que respeitasse a charros, por muito que os ten-
tássemos dissimular.
As noites foram-se espaçando, enquanto os meus
amigos emigravam ou iam discretamente presos.
Mas mantinha-se o encanto parado das tardes,
com a jukebox ainda funcional e as zaragatas
amorosas do Conde e da Maria Aurora; peças
gastas, como eu, daquela mobília azul. Dos co-
pos, trata agora o Ruben, enquanto passeia os
olhos pelo Record ou alterna a leitura de Dan
Brown com a de Luiz Pacheco, numa genuína
indiferença aos cânones. Foi ali, com o decorrer
dos anos, que acabei por conhecer os melhores e
os piores espíritos da minha geração.
Mas o que me inquieta, cada vez que regresso,
é a ausência escandalosa do Conde e da Maria
Aurora. Seria simples e concludente perguntar
ao Ruben o motivo dessa ausência. Receio, po-
rém, ouvir uma resposta que é demasiado fácil
adivinhar e que se mantém, afinal, a única res-
posta.
Figura 3: Uma rua do Bairro Alto.
Disponível em: https://www.guiadacidade.pt/pt/poi-bairro-alto-15432
Figura 4: Café Estádio, Lisboa, Portugal
Fonte: Site Lifecooler
Disponível em: https://lifecooler.com/artigos/estadio-lisboa/21456
Acesso em: 31 ago. 2021
LARGO TRINDADE COELHO
para o Emanuel Jorge Botelho
Não é uma hipérbole, muito menos uma metá-
fora. O mundo seria quase habitável se houvesse
mais pessoas com a dignidade da senhora que
guarda e limpa as retretes públicas do Largo Trin-
dade Coelho. A proximidade com a instituição
homónima rebaptizou essa praça, para taxistas
e não só, como Largo da Misericórdia. Passei ali
muitas horas, entre bares e alfarrabistas (já para
não falar da Pensão Estrela d’Ouro). Foi também
o único lugar do mundo onde me cruzei com
Gustav Leonhardt.
E desci vezes sem conta até àqueles luminosos
subterrâneos, onde o cheiro a limpeza convive
com plantas discretas e viçosas. À saída, deixo vin-
te ou trinta cêntimos no cesto diminuto, pousado
junto à cadeira. E prometemo-nos saúde, felicida-
de, sabendo-os frágeis anseios – ou comentamos
o tempo, sempre mais frio ou mais quente do que
desejaríamos. Mas até essa branda melancolia
se vê rematada por um sorriso, enquanto subo
de novo ao mundo e finjo acreditar (tal como a
senhora, a quem nunca perguntei o nome) que
desempenho nele uma qualquer função.
Manuel de Freitas. Ubi Sunt
Figura 5: Largo Trindade Coelho, Lisboa, Portugal
Fonte: Site Assembleia Municipal Lisboa
Disponível em: https://www.am-lisboa.pt/503500/1/005688,000157/index.htm
Acesso em: 31 ago. 2021
Já voltou? Foi rápido(a)! É, concordamos. O banheiro do Largo Trindade Coelho é simples, mas bem cuidado. Por que um lugar modesto recebeu destaque no poema LARGO TRINDADE COELHO? A sua pergunta é muito interessante… A cidade é um espaço físico, mas também é um espaço social. Nela são estabelecidas relações afetivas entre o sujeito e o espaço urbano e entre os sujeitos que habitam esse espaço. Infelizmente, em decorrência do automatismo presente no cotidiano citadino contemporâneo, as pessoas estão priorizando, cada vez mais, relações maquínicas, propagando a indiferença e a solidão. Esse lugar modesto, como você disse, é um dos poucos nos quais ainda podemos estabelecer uma relação afetiva, mesmo breve. Compreende? Essa é uma “cidade cada vez mais branca, dissipada e triste”. Não esqueceu nada no banheiro? Ótimo. Vamos agora para a Rua Viriato. Seguiremos pela Rua Nova da Trindade. Isso mesmo! À esquerda.
VGM
para o Tomás Oliveira Marques
Não gostaria de parecer nostálgico, mas houve
um tempo em que Lisboa me aliciava sobretudo
pelas livrarias, cafés e lojas de discos que permi-
tiam o luxo de adiar a morte. Tudo isso se per-
deu, obviamente. Lembro-me das tardes inteiras
que passava a ouvir discos na Ananana, na Con-
traverso ou na VGM, tacteando capas e descobrin-
do nomes como os de Lars Hollmer, Diamanda
Galás, Evan Lurie ou Morton Feldman. Só por
isso valia a pena vir até Lisboa, e parar entretan-
to num café ou numa taberna para antegozar os
discos que comprara.
A VGM terá sido, dos exemplos citados, aquele
que mais fidelidade me exigiu. Comecei a fre-
quentá-la ainda no Príncipe Real, e aí fiz a len-
ta mas necessária transição de Cocteau Twins a
John Adams ou Steve Reich e destes, por fim, a
Bach ou Zelenka. Tornei-me, com o passar dos
anos, um homem barroco, mais permeável à tris-
teza de alaúdes, cravos e teorbas do que ao ruído
lírico ou industrial que me acompanhara o fim
da adolescência. A culpa é de Bach, não duvido,
mas também do Tomás.
Ele soube tirar-me o retrato; perceber que con-
tratenor ou Stabat Mater melhor se adequavam
ao meu gosto musical, e conseguiu – honra lhe
seja feita – converter-me a alguns dos momen-
tos cimeiros da polifonia renascentista. E era
como estar num café, entre contínuos deslum-
bramentos e cigarros, mesmo após a passagem
para a Rua Viriato.
Foi por mero acaso que hoje lá passei, e vi a porta
aberta de mais uma loja fechada. Trouxe comigo
alguns discos em saldo e a firme certeza de que
Lisboa é hoje um deserto rudemente povoado
por quase ninguém.
Manuel de Freitas. Ubi Sunt
Essa é a Rua São Sebastião da Pedreira. Quando virarmos à direita, estaremos na Rua Viriato. Quando ultrapassarmos o cruzamento com a Rua Andrade Corvo, chegaremos à localização da, não mais existente, loja de discos VGM – VENDEMOS O GOSTO PELA MÚSICA. Sim, a mesma citada no poema. Você está interessado(a) em saber se existe um novo estabelecimento comercial, não é? Poderá descobrir daqui a pouco.
Figura 6: Glam-O-Rama, Lisboa, Portugal
Fonte: Blog Evasões
Disponível em: https://www.evasoes.pt/local/glam-o-rama/
Acesso em: 31 ago. 2021
Chegamos! Era exatamente aqui, nesse ponto da Rua Viriato, que ficava localizada a loja de discos VGM, ambiente constantemente frequentado por apreciadores de música e colecionadores de discos. Como você pode perceber, é atualmente o endereço da Glam-O-Rama, uma loja de discos com conceito mais diversificado, que mescla a oferta de CDs e Discos de Vinil – nacionais e internacionais de avant garde, blues, eletrônica, étnica, experimental, indie, industrial, jazz, metal, punk, prog, psych e rock – com concertos artísticos e sessões de autógrafos. A Glam-O-Rama também vende produtos colecionáveis relacionados aos estilos musicais. Muito bem observado. Obrigada! É uma loja de discos diferente da VGM. Até porque não basta compartilhar uma característica comum para ambas serem a mesma coisa. Cada uma, a seu modo, conquista um público e promove um vínculo afetivo. O encerramento das atividades na VGM – VENDEMOS O GOSTO PELA MÚSICA, culminou, para algumas pessoas, na perda de mais um referencial na cidade lisboeta. É a Lisboa atravessada por ausências e ruínas materiais e imateriais… Podemos prosseguir? Está bem. Deixe-me conferir no mapa o melhor caminho para o Jardim das Amoreiras. Só um minuto! Hum… Esse aqui é perfeito. Vamos! É só virar na Rua Tomás Ribeiro e seguir pela Avenida Fontes Pereira Melo. Não é muito distante. Fique tranquilo(a)! Gostaria de escutar um pouco de música enquanto caminha? Podemos dividir o fone de ouvido com você. Não vai nos incomodar. Ok. Vou apertar o play!
JARDIM DAS AMOREIRAS
O mundo continua no mesmo sítio, tal como este
jardim. Apenas a luz mudou, mais parecida hoje
com a dos canais de Amesterdão, ao entardecer.
E passaram, se fizermos bem as contas, catorze
anos desde os nossos primeiros e tímidos encon-
tros, a pretexto de Morandi ou do amor somente.
É estranho, mas agradável, não ser eu hoje o poe-
ta fotografado; antes o que te vê (enquanto poeta
– ou poetisa, se preferires) fotografada num
banco onde, provavelmente, já nos sentámos
juntos. A poesia serve às vezes para nos sentir-
mos um pouco mais tristes, solitários e desloca-
dos. Pois não ignora, indiferente ao olhar breve
que trocámos, a pressa com que a tarde se dissol-
ve e nós também.
Manuel de Freitas. Ubi Sunt
O Jardim das Amoreiras é o mais antigo de Lisboa, você sabia? Pois é! Foi idealizado por Marquês de Pombal no século XVIII. Por que iniciaram a plantação de amoreiras? Bem, não foi com o objetivo de compor um jardim para passeio, isso podemos garantir. O principal objetivo era estimular a Indústria Portuguesa de Seda, desenvolvida no espaço conhecido hoje como Praça das Amoreiras. Exatamente essa em que nós estamos. A árvore amoreira, como o próprio nome indica, produz a amora. Contudo, para o setor econômico, a parte mais importante dessa árvore não é o fruto, é a folha. Sabe por quê? Porque as folhas alimentam o bicho da seda. Isso mesmo! O produtor primário da seda. Interessante, não é? E falando em amoreiras… Olhe o Jardim das Amoreiras, bem no centro da praça. Sim, atualmente é um ambiente com quiosque e parque infantil. Para atrair e agradar o público, sabe como é… Podemos sentar naquele banco vazio, em frente à fonte. O que acha? Observar o ambiente… Ler um pouco mais dessa poesia provocativa, que evidencia, por meio da memória/palavra, a ausência e a perda constante de lugares e pessoas.
Figura 7: Jardim das Amoreiras, Lisboa, Portugal
Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Jardim_das_Amoreiras_-_Lisboa_-_Portugal_%2832809410907%29.jpg
Figura 8: outro aspecto do Jardim das Amoreiras.
Disponível em: https://www.weheartlisbon.com/en/parks-en/jardim-amoreiras
Nossa! O tempo passou rápido! O Sol já está começando a se pôr… Foi bom ler os poemas do livro Ubi Sunt com você. Sim, a poética do Manuel de Freitas, como você percebeu, parece fazer parte de uma conversa cotidiana, visto que apresenta, notavelmente, aspectos prosaicos e narratividade. Exatamente! Os vocábulos são, predominantemente, da oralidade urbana. Tudo isso contribui para que o sujeito consiga expressar a relação que estabelece com a cidade e com a sociedade ao seu redor. Os espaços urbanos citados ou referenciados são inúmeros, assim como os endereçamentos. O que são os endereçamentos? Isso que você chamou de dedicatória. Nós caminhamos por lugares (ou não-lugares) de significativa importância, mas o percurso feito é muito curto quando comparado ao que os demais poemas oferecem. Mas avisamos, antes do início da viagem, que não teríamos tempo suficiente para efetivarmos um deslocamento completo. No entanto, você pode, posteriormente, realizar novos percursos com o auxílio do livro. E do mapa, é claro. Não pode ficar perdido(a)! Lisboa é mencionada e problematizada, mas os arredores da cidade também são. Isso mesmo! Há mais páginas / paisagens para percorrer. Podemos ir para o Aeroporto Humberto Delgado? Está quase na hora de pegar o voo de volta ao Brasil. Está cansado(a) de andar? Tudo bem, tudo bem. Vamos de táxi!